domingo, 28 de dezembro de 2008

Gostaria...

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NÃO VALE A PENA ter esperanças desmedidas para 2009. O ano não é bissexto, o que é bem. Mas tem três eleições, o que é mau. As crises internacionais vão prosseguir, o que tem más consequências. Toda a gente anda de bengala de Estado, incluindo bancos e empresas industriais, financeiros e aforradores, o que obriga a pensar que não há bengalas que cheguem. Já sabemos que o crescimento será negativo ou ridículo; que o défice público aumentará; que o défice externo também; que o emprego diminuirá; e que a pobreza se agravará. São certezas. Esperar o contrário é enganar-se a si próprio. Há, todavia, votos que se podem formular. Os meus são modestos. Não são excessivos, nem irrealistas. Custam pouco dinheiro ou nenhum.
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Gostaria que terminassem, de uma vez para sempre, os processos em tribunal que envenenaram o último ano. O da Casa Pia, à cabeça. A Operação Furacão também. Os do futebol, que já ninguém percebe. O da pequena Esmeralda, que afligiu muita gente, mas que tornou todos insensíveis, menos a menina. Os dos bancos, do BCP, do BPP e do BPN, cuja opacidade tem criado as mais sérias suspeitas na opinião pública. E, da economia à corrupção, dezenas de outros que se arrastam e alimentam a impunidade.
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Gostaria que o Parlamento, quanto mais não fosse para reabilitar a sua imagem em ano de eleições, se interessasse genuinamente pela justiça, pelas leis processuais e pelo sistema judiciário, dedicasse a esse tema o melhor dos seus esforços, reflectisse seriamente no melhor modo de acelerar as respectivas reformas, criasse um clima de cooperação entre magistrados judiciais, magistrados do ministério público, advogados, órgãos de investigação e oficiais de justiça, a fim de iniciar um processo de melhoramento do mais degradado e mais ineficiente sistema público do país.
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Gostaria que o governo, num sobressalto de consciência e de preocupação com as liberdades públicas e os direitos fundamentais do cidadão, reconsiderasse todas as medidas e procedimentos em curso que consolidam um clima de intrusão, de violação da privacidade, de despotismo e de controlo dos cidadãos, incluindo, evidentemente, o bilhete de identidade múltiplo, o chip dos automóveis, a legislação sobre escutas telefónicas, a actuação da ASAE e a delação fiscal e económica.
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Gostaria que se adiassem, por muitos anos, os projectos megalómanos do aeroporto, do comboio de alta velocidade e das auto-estradas inúteis, para os quais não há dinheiro, mas que, pela teimosia dos governantes e interesse dos construtores, correm o risco de se transformar em enorme buracos financeiros e em sorvedouro de recursos públicos tão escassos.
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Gostaria que os esforços das autoridades, no governo e nas autarquias, se dirigissem para milhares de projectos com influência na vida real, sejam as pequenas e médias empresas industriais; sejam as obras de interesse público manifesto, como os Metros do Porto e de Lisboa, os transportes públicos das áreas metropolitanas, os jardins e espaços verdes das cidades, o arranjo e a limpeza das ruas urbanas, a rede de comboios, as escolas degradadas, os lares de idosos decadentes, a drenagem e o escoamento das águas nas cidades, a recuperação do património construído, a reabilitação dos centros das cidades históricas e o alojamento de estudantes universitários; sejam, finalmente, os incentivos à exploração dos recursos naturais mais desprezados das últimas décadas, a agricultura, a floresta e os mares.
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Gostaria que o governo explicasse, honesta e seriamente, o que está a fazer com os dinheiros públicos, a pretexto de salvar a imagem do sistema bancário português e de garantir investimentos, aplicações e depósitos. Há cada vez mais dúvidas quanto ao bom uso desses recursos. Aumenta o número de pessoas que pensa que o esforço público se concentra no apoio aos fortes, na ajuda aos mais ricos e na sustentação das empresas e pessoas que mais directamente se empenharam na especulação e nos sistemas internacionais de lucro fácil. Está generalizada a convicção de que o governo dá o ouro aos bandidos. E que está a recompensar os que correram riscos excessivos e os que julgavam que passariam impunes.
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Gostaria que, entre o governo, os sindicatos e os movimentos de professores se estabelecesse, pelo menos até às eleições, uma trégua ou uma moratória honrosa, que permitisse reflectir, estudar e imaginar novas soluções para as questões da avaliação e da carreira de docentes. Toda a gente ficava a ganhar, sobretudo os estudantes e os pais. As eleições, com os debates indispensáveis, poderiam ajudar muito a esclarecer os problemas e a resolvê-los gradualmente, com tentativas e experiências sucessivas, fora do clima de guerra que se criou e que nada oferece de bom.
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Gostaria que a RTP examinasse seriamente o seu papel, a sua função cultural e a sua missão informativa, sacudindo a dependência estreita do governo em que se colocou voluntariamente, pensando na nobreza do serviço que poderia prestar ao país, produzindo programas que não nos envergonhem e cultivando aquelas que poderiam ser as suas mais relevantes qualidades, a independência e a seriedade.
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Gostaria que o governo, depois de ter exigido sacrifícios e de ter conduzido uma política dura de austeridade e de ter obtido alguns ganhos importantes, nomeadamente no que diz respeito ao défice público e à eficiência fiscal, não se deixasse tentar, como já dá sinais inequívocos, pela demagogia e pelo dinheiro fácil, armas tradicionais em ano de eleições.
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Gostaria que alguém explicasse ao Primeiro-ministro, ou que ele percebesse por si mesmo, que o excesso de propaganda, de demagogia e de publicidade enganosa pode ter efeitos contraproducentes, parecidos com os verificados durante a revolução de 1975, que se traduzem no facto de os governantes acreditarem no que eles próprios mandam dizer. De caminho, poderia também compreender que a crispação autoritária não se pode confundir com determinação. Mudasse ele esses atributos, trouxesse ele à vida pública um novo estilo, mais adequado às dificuldades dos tempos, e até talvez voltasse a ganhar as eleições.
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Não é pedir muito, pois não?
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«Retrato da Semana» - «Público» de 28 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Luz - Janelas escritório Lisnave

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Nestas instalações, da Margueira, em Almada, funcionavam os escritórios. Tudo está hoje abandonado. Uma parte das actividades da Lisnave transitou para a antiga Setenave, em Setúbal. Há vários anos que as autoridades nacionais e autárquicas, assim como numerosos grupos privados, estudam o que se deve fazer naqueles locais. (2006).

domingo, 21 de dezembro de 2008

Tudo como dantes, nada como dantes

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A TURBULÊNCIA FINANCEIRA que atravessou o mundo e está longe de se dissipar, já provocou a mais completa série de verdades definitivas e sobretudo contraditórias. Têm de comum o disparate e a inabalável certeza dos seus autores. “Marx tinha razão”; “É o fim do capitalismo”; “Acabou a hegemonia americana”; “Nada será como dantes”; “O Estado tem de tomar conta da economia”; “Vão mudar os padrões de consumo”... Em sentido contrário, também temos: “O capitalismo vai recuperar”; “A iniciativa privada vai ultrapassar a crise”; “Vamos refundar o capitalismo”; “A crise gera novas oportunidades de negócio”; “A União Europeia vai liderar a recuperação das economias”... Sem comentários.
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Mais uma vez, anuncia-se um “novo paradigma”. Não se sabe o que quer dizer, mas é “chique”. E misterioso. Mais poder político? Mais supervisão e regulação? Mais justiça? Mais ética? Novos padrões de consumo? Mais Estado? As únicas certezas são o menor crescimento, o desemprego e a redução do conforto. O resto é uma incógnita. Até porque as mudanças de comportamentos demoram décadas. E as mudanças de leis e de instituições exigem políticos e legisladores à altura, com autoridade e legitimidade. O que também é uma incógnita.
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A regulação falhou. É o que todos dizem, menos os reguladores. Convinha saber por que falhou a regulação. Os vigaristas têm meios mais sofisticados. Os reguladores, a justiça e as polícias estão atrasados. Estas são as razões superficiais. Mas há outras. Os reguladores e os políticos conhecem intimamente os especuladores e os predadores. Não só se conhecem, como se estimam e convivem. Têm mesmo, simultânea ou sucessivamente, interesses comuns. O triângulo formado pelos políticos, os reguladores e os especuladores constitui um percurso pessoal que muitos fazem airosamente nas suas carreiras. Muitos políticos e muitos reguladores consideram que os predadores e os especuladores têm o direito de se entregar às suas actividades, de operar no mercado livre, de ter sucesso e de vencer nos negócios. Se é verdade que houve Estado a menos, também é certo que Estado a mais não é a resposta. Pois o Estado é... os políticos!
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POR UMA VEZ, os políticos deste mundo não parecem ser os principais responsáveis. Mas não estão isentos. Falharam na regulação, na fiscalização e na inspecção. Falharam na justiça, na investigação e na penalização. São, frequentemente, parceiros, cúmplices e amigos dos bilionários e dos predadores. Os governos, a começar pelo português, têm dado lições inesquecíveis que todos os manipuladores do mercado usam como inspiração. Mentira, leis retroactivas, mudança inesperada de regras, intrusão na vida privada dos cidadãos, instabilidade fiscal, falta de cumprimento de cláusulas contratuais, adjudicações de favor, licenças sem concurso público, favoritismo e nomeações de altos dirigentes por confiança partidária, tudo tem justificação, tudo se explica pela necessidade de vencer, de crescer e de ganhar eleições. Os políticos, tanto de esquerda como de direita, contribuíram decisivamente para a criação deste clima doutrinário e espiritual. O poder político, entre nós como no resto do mundo, não revelou ter padrões morais superiores aos dos predadores. Não mostrou ser mais digno de confiança. Não garantiu que impede a promiscuidade e o livre enriquecimento dos políticos. Não tornou evidente seguir uma regra ética superior à que tem guiado os especuladores e seus amigos.
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As doutrinas da força, do líder, da vitória, do condicionamento da informação e da propaganda impuseram a “visão” positiva” do mundo e das coisas, consagraram o “optimismo” como dogma de atitude. Os que duvidam foram definitivamente arrumados na categoria de pessimistas e frustrados. A ideologia do sucesso, a qualquer preço, com qualquer lei, domina a cena pública há anos. As ideias, os valores e as normas que regem a vida dos capitalistas e dos gestores responsáveis pelas crises e pelas fraudes são o resultado de uma consolidação doutrinária e moral com meia dúzia de décadas.
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POR ISSO não é realista esperar pela “mudança de paradigma”. Alguém pensa que é possível as famílias decidirem por si próprias diminuir o consumo? Renunciar às segundas casas? Deixar de passar férias no Brasil ou no México? Abdicar de ter um ou dois carros, dois ou três computadores, três ou quatro televisões? Desligar o aquecimento e o ar condicionado? Reduzir o consumo de máquinas de lavar, de frigoríficos e de Bimbys? Abandonar o carro particular e utilizar os transportes públicos? Ninguém o fará. A não ser que a isso sejam forçados pelo desemprego, pelo corte de crédito, pelos aumentos de preços e pela diminuição de rendimentos.
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As pessoas mudam por consciência e esforço voluntário, quando têm real interesse nisso. Interesse material ou espiritual. Mas não mudam voluntariamente para diminuir o seu conforto e as suas aspirações. Mudam quando não têm alternativas. Por necessidade. Ou por imposição. Quem vai fazer mudar os comportamentos? As forças do mercado? Será doloroso. A necessidade? Ainda mais. Os políticos? Não têm vontade, nem legitimidade para o fazer. Eles aplicam à política os mesmos valores que os especuladores, as mesmas regras que os predadores, os mesmos critérios que os aldrabões aplicam às finanças internacionais.
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Há trinta ou quarenta anos que as populações aspiram às delícias da vida moderna. Os que já lá chegaram querem mais e não renunciam. Os que ainda não chegaram consideram uma suprema injustiça serem agora travados. Foram condicionados pelos mais poderosos aparelhos de publicidade e informação que a humanidade jamais conheceu. A propaganda política deu uma ajuda poderosa. Há décadas que os governos, as televisões, a imprensa e os grandes grupos económicos comungam um punhado de ideais que presidiram à nossa vida colectiva. Para usar o lugar-comum conhecido, o ter substituiu o ser. O critério de vida é vencer. Sempre, a qualquer preço. Vencer significa derrotar e liquidar os outros. Quem vence tem razão. E tem razão porque vence. É a democracia no seu pior. Maior. Mais alto. Mais depressa. Mais pesado. Mais forte. Mais rápido. Já não se trata de jogos olímpicos, eles próprios transformados em feira de animais. Trata-se da vida quotidiana. Para se chegar lá, ao “topo”, para se ser “líder”, tudo o que se pode fazer deve ser feito. Incluindo aldrabices, ilegalidades, golpes, mentira, publicidade enganosa e corrupção. Tudo o que justifique ganhar votos, vender mercadoria e eliminar os rivais não só pode ser feito, como deve ser feito. Sob pena de ser designado na praça pública por perdedor, incapaz ou parvo. E ninguém quer ser parvo!

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«Retrato da Semana» - «Público de 21 de Dezembro de 2008

sábado, 20 de dezembro de 2008

"Os Jardins dos Vice-Reis: Fronteira” - Apresentação

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COMO DEVO APRESENTAR a Cristina Castel-Branco? Professora no Instituto de Agronomia? Arquitecta paisagista? Só paisagista? Botânica? Historiadora natural? Historiadora de arte? Qualquer dos epítetos, qualquer das designações lhe serve. E não receio de as utilizar todas, quite a desencadear uma destas lutas corporativas de classificação profissional. O que eu prefiro, acima de tudo, é Jardineira! Gosta de árvores, de plantas, de flores e de jardins. Estuda-os. Faz-lhes a história. Trata deles. Cuida das plantas. Desvenda-lhes os segredos. Restaura e conserva jardins, como fez com o da Ajuda, em Lisboa, a quinta das Lágrimas, em Coimbra, ou este Fronteira, em Lisboa. E faz mesmo jardins, como é o caso do Garcia da Orta, na EXPO de Lisboa. Além de escrever livros, como este agora dedicado ao Jardim Fronteira, o primeiro de uma série sobre os quatro jardins dos Vice-reis.
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Mas Jardineira será, como o foi Adão, o primeiro, segundo nos diz Shakespeare, pela voz de Henrique VI.
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Esta nossa Jardineira escreveu em tempos a biografia académica de Avelar Brotero, um dos maiores cientistas portugueses, do seu tempo e do nosso. Brotero que foi, no início do século XIX, director do Jardim Real do Palácio da Ajuda. Curiosamente, Cristina foi sua sucessora. Não imediatamente, mas, quase dois séculos depois, veio ela a assumir as mesmas funções que, outrora, o mestre. A Avelar Brotero, temos a agradecer o seu inesgotável interesse pelas plantas, o estudo científico das mesmas, a divulgação das espécies portuguesas e estrangeiras, o intercâmbio com dezenas de escolas, academias e jardins do mundo inteiro, a importação de espécies de outros continentes e a respectiva adaptação ou aclimatação a Portugal. E eu, pessoalmente, tenho a agradecer-lhe ter introduzido ou aclimatado o Jacarandá!
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Este livro é sobre o Jardim de Fronteira, adjacente à quinta e ao Palácio do mesmo nome. Nada aqui resumirei, pois o livro diz tudo. E fá-lo de maneira rigorosa, exaustiva e elegante. O anfitrião, Fernando Mascarenhas, que também é o proprietário e o descendente de uma longa dinastia de Mascarenhas, redige o prefácio, emite reservas e parece não concordar ou duvidar de ideias da autora. Creio que é uma das raras vezes em que um prefácio critica directamente o livro que encabeça. É insólito, mas interessante. Mostra a liberdade com que ambos encararam a realização deste livro.
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O livro não é só sobre esse jardim. Tem capítulos muito interessantes sobre as origens de certos jardins, sobre a sua história e sobretudo sobre o enquadramento e o contexto em que certos jardins foram concebidos e construídos. Este é o primeiro de uma série de quatro, na qual a autora nos promete estudar e contar a história dos quatro jardins ditos dos Vice-reis.
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Cristina afirma que os jardins são obra de arte, ponto importante. Aparentemente banal, tal afirmação tem enormes consequências (ou deveria ter...), designadamente no campo das políticas de protecção do património. Por outro lado, sugere interrogações difíceis. Com efeito, um jardim também é uma obra de arte parcialmente viva, que evolui, que pode mudar com o tempo e com a acção dos homens. Ora, o próprio da obra de arte material é a sua fixidez, o seu acabamento. Temos assim que, nas obras patrimoniais, existe uma evolução que, na maior parte dos casos, depende dos homens, e que, nos jardins, depende também da natureza. Mas, para as políticas patrimoniais, é importante que esta característica artística seja reconhecida e que os jardins não sejam considerados apenas como apêndices de obras construídas. Nem como sítios e locais que se podem construir, manter ou destruir a bel-prazer.
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Cristina diz ainda que os jardins, a sua concepção, a sua forma, a sua função e a sua organização traduzem as circunstâncias históricas, sociais, políticas, culturais e artísticas do seu tempo. É a esse trabalho que ela se dedica meticulosamente neste livro. No caso dos jardins de Fronteira, a autora sublinha o seu carácter específico. Para além das influências estrangeiras (italiana e francesa), o que está presente nitidamente na obra em estudo é a sua posição charneira entre o Ocidente e o Oriente. Os temas marítimos e náuticos, assim como as inspirações orientais, estão indelevelmente presentes naqueles jardins. A dinastia dos Vice-reis Mascarenhas é evidentemente uma chave para explicar o facto. Indo mais além, a autora sugere uma inspiração camoniana na concepção do jardim. Mais ainda, pelas suas transformações e reutilizações, estes jardins estão também ligados à ideia de Portugal como país independente, tendo sido mostrados e tratados, no século XVII, como forma de cultivar tal aspiração.
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É muito interessante ver como a jardinagem, a ciência e a estética se conjugam e traduzem as forças de uma sociedade, os seus conflitos e os seus sonhos. Não só na história do jardim, como também, por exemplo, na biografia de Avelar Brotero, a autora mostra bem como a ciência e o exercício de uma profissão acabam por estar influenciados pela sociedade mais geral, pelas lutas políticas e pessoais, pelos conflitos e pelas modas dominantes.
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O livro é formidável pelo que nos revela. Mostra um jardim como produto de uma concepção prévia. A autora chega a falar de “jardim esculpido”, não apenas plantado. Mostra-nos como, num jardim, se descobre o seu autor e, neste, o pintor, o escultor e o arquitecto. Leva-nos pela mão, passo a passo, para nos ajudar a perceber o porquê de um bucho, de uma fonte, do arranjo das eras, do jogo de linhas visuais e da organização tanto telúrica como vegetal. A rega dos Mouros, o desenho italiano, a construção francesa, os motivos orientais e a gesta marítima cruzam-se nestes jardins, acabando por resumir metaforicamente a história e a posição de Portugal no mundo. Mau grado as influências externas, poderosas, há traços específicos que os portugueses inventaram ou concretizaram. O uso do azulejo, por exemplo. Ou a releitura das influências mouras e orientais, muito antes da grande moda do orientalismo do século XIX ou talvez dos finais do século XVIII. Fronteira é um jardim muito mais antigo que essas modas. Precede-as de dois ou três séculos. Este facto foi para mim surpreendente. Fronteira e mais três jardins (curiosamente todos de Vice-reis) têm quatro ou mais séculos de existência, o que parece ser raro no mundo e pelo menos inesperado em Portugal.
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Como em quase tudo o resto, os jardins portugueses mais interessantes, ou mais famosos, foram resultado de influências estrangeiras. Nos séculos XVI e XVII, aquelas foram italianas e francesas. A que se acrescentavam inspirações orientalistas. Mas, pelo que nos ensina Cristina, e outros com ela, há algo de português, há um contributo próprio que ultrapassa e enriquece a influência estrangeira. Esse contributo não é apenas o da épica camoniana, que parece ter sido inspiração, nem o da independência nacional, que parece ser glorificada. O cruzamento de influências, a sua mistura imaginativa e o respectivo desenvolvimento acabam por ter um papel criador.
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A comparação entre dois contemporâneos, Fronteira e Versailles, sugerida por Cristina, mostra bem as diferenças de concepção, de poder e de intenção de cada jardim e de cada Estado. Apesar de terem data de nascimento parecida. Foi à luz dos ensinamentos de Cristina que fui capaz de recordar alguns dos mais belos jardins que visitei. Os de Alhambra, evidentemente. Os de Blenheim, do século XVIII, feitos por um formidável colega da Cristina, Capability Brown. Os pequenos jardins do Palais Royal, em Paris. Ainda na capital francesa, o Jardin des Plantes, de que Cristina tanto fala no seu livro sobre Brotero. Os fabulosos Kew Gardens, de Londres. Os inesperados jardins de São Miguel, nos Açores (de José do Canto, de Jácome Correia, de António Borges e de Thomas Hickling). O Central Park, de Nova Iorque. O da Estrela, em Lisboa. O da Gulbenkian, com certeza. Em Lisboa ainda, o Botânico, o das Necessidades, o da Ajuda e o Tropical. E o do Tourel, que já não é o que era. Os da Bacalhoa, do Buçaco ou de Monserrate. Serralves e o parque da Cidade, aqui no Porto, sem esquecer a Cordoaria, que já conheceu melhores tempos. Ao recordá-los, agora, com a sabedoria que a Cristina me empresta, consigo fazer uma nova leitura, como ela diz. E perceber melhor por que fizeram e como fizeram estes jardins e parques.
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Uma árvore não é uma obra de arte. Um jardim pode sê-lo. A beleza e o sublime não são exclusivos das artes humanas, podem vir da natureza, com a ajuda dos humanos. Sossego, deslumbramento, sombra, oxigénio, vida animal, até sons podem vir das árvores. Tudo isso mais descanso, tranquilidade, passeio, convívio e até cultura podem vir dos jardins. Sem falar no puro prazer estético. São os países desenvolvidos, educados, decentes, cultos que cuidam das árvores e dos jardins.
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A este propósito, o Portugal contemporâneo é ingrato. Quem sabe se não será também ignorante. Os portugueses não cuidam dos jardins, das árvores ou das florestas. Ou cuidam pouco e mal. Dizem gostar, pois claro, mas arrancam-nas à primeira oportunidade. Casebre ou prédio, vivenda ou ginásio, estrada ou rotunda, escola ou fábrica, tudo é motivo para se arrancar uma árvore centenária ou uma promessa de jardim. As árvores urbanas, sobretudo, são mal cuidadas em geral. Sofrem da seca, da poluição, do estacionamento, da porcaria e da falta de tratamentos.
Sinal seguro do pouco interesse dedicado às plantas é o facto de não termos ainda literatura suficiente sobre as árvores, os jardins e as florestas em Portugal. Houve várias tentativas, há trabalhos notáveis, mas estamos longe de poder comprar manuais e guias claros e interessantes para laicos e amadores. Há para restaurantes, hotéis e vinhos, mas as árvores vêm depois, muito depois.
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A ser verdadeira a tese de Cristina sobre o modo como os jardins retratam ou traduzem o espírito do tempo (e, além do espírito, a política, a filosofia, a estética, as relações sociais e de poder...), e eu subscrevo o que ela diz, então que dizer dos jardins modernos portugueses? Não creio, infelizmente, que a democracia fique muito bem representada no elenco das obras de arte jardinadas! O império da economia e das finanças, as vicissitudes dos défices públicos, as prioridades fantasiosas das autarquias e o simples e ordinário descuido das autoridades e, tantas vezes, dos cidadãos, fazem com que os nossos jardins modernos sejam, em geral, tristes e vulgares. Ou então, recuando um pouco, exibem uma monumentalidade duvidosa, como é o caso do parque Eduardo VII. Talvez tenhamos, aqui no Porto, com o Parque da Cidade, um dos melhores, se não o melhor exemplo contemporâneo do que de bom se pode fazer com a natureza em meio urbano.
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Pior do que a falta de criatividade é, no entanto, a incúria. E essa tem sido uma atitude muito frequente das autoridades, dos autarcas e dos proprietários nas décadas presentes. Fazem-se intervenções modernizantes horrorosas de mau gosto e de técnica duvidosa. Não se estuda a história de um jardim e faz-se dele gato-sapato, com design e mobiliários urbano suspeito e incongruente. Mas, sobretudo, não se cuida, ou cuida-se mal do património natural, tanto nas cidades maiores, como nas menores.
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Parece que a sociedade democrática de consumo de massas despreza os seus jardins ou é incapaz de os idealizar e construir. Ocupa-se da praia, das discotecas, dos centros comerciais e dos pavilhões para jovens. Mas o jardim, a mata, o bosque e o parque parecem estar fora das preocupações contemporâneas.
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É verdade que a construção de jardins exige meios, por vezes avantajados. Os aristocratas que os fizeram, no passado, eram gente de poder e recursos. Mas hoje também há ricos, mesmo muito ricos, mas que não brilham pelas suas iniciativas neste domínio.
Será que a beleza feita com a natureza exige um aristocrata? Um poder despótico? Um monarca esclarecido? Uma classe dirigente culta? Talvez. É uma conclusão melancólica, mas não deve andar longe da verdade.

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Porto, 16 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Luz

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Outra vista da vinha dos Cardenhos, na quinta do Crasto. (2007).

domingo, 14 de dezembro de 2008

Um encontro. E desencontros.

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TERÇA-FEIRA, 9 de Dezembro. Em Fátima, a Conferência Episcopal toma uma iniciativa inédita: D. Jorge Ortiga recebe os representantes da Plataforma dos professores, encontrando-se estes em pleno processo de luta. Não há comunicados oficiais. Mas há declarações mais ou menos informais. O Bispo presidente garante, diante de câmaras de televisão, que a Igreja está muito preocupada com os professores, as escolas, os pais e os alunos. Sugere a realização de um “pacto social” sobre as questões educativas. E recomenda ao governo que “ouça” os professores. Jornais, televisões e observadores prestam a menor atenção possível ao facto. Toda a gente, a começar pelas autoridades, prefere ignorar o gesto. Mas trata-se simplesmente de um dos factos mais importantes da vida política destes últimos anos.
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QUARTA-FEIRA, 10 de Dezembro. Em declarações justas e severas, o Presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, apela aos grupos parlamentares para encontrarem vias de criar alguma disciplina, de impedir que os deputados faltem às sessões e que cumpram os seus deveres. O PS não gostou e alguns dos seus deputados reagiram mal.
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QUINTA-FEIRA, 11 de Dezembro. Chegou o grande dia. Finalmente, Ministério da Educação e professores encontram-se para discutir tudo. Já se sabia, desde uns dias antes, que a convocatória e as ordens de trabalhos era uma soma de equívocos. Ambos disseram, uma vez, que estava tudo em cima da mesa. Ambos acrescentaram, outra vez, que certos tópicos não se poderiam discutir. Debater a hipótese da suspensão da avaliação era, para os professores, essencial. Tal discussão era, para o ministério, inútil, dado que a suspensão estava totalmente fora de questão. Os professores deixaram uma proposta de sistema de auto-avaliação que nada resolve. A ministra recusou as reivindicações de suspensão feitas pelos professores. Os participantes na reunião separaram-se azedamente, duas ou três horas depois. Fizeram bem em falar. Fizeram mal em não ter encontrado sequer umas pedras para pôr os pés e fazer um pouco de caminho. Nova reunião foi marcada para a próxima semana, desta vez para discutir o estatuto da carreira docente. A ministra garante que, para o ano, está disponível para tudo ver e rever, incluindo o sistema de avaliação e a hierarquia profissional dos professores. Para já, estranhamente, insiste na aplicação do seu sistema. Mas já chegámos a uma conclusão amarga: as propostas dos sindicatos são tão absurdas quanto as da ministra. Com um denominador comum: ambos estão empenhados em impedir que as escolas e os directores assumam as suas responsabilidades. Enquanto não se evitar a tenaz, ministério contra sindicatos a lutar por uma sistema centralizado e integrado, limitar-se-ão a adiar o problema. A tentar afogar o peixe.
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SEXTA-FEIRA, 12 de Dezembro. É dia grande na cidade de Lisboa. Luzidia comitiva, com ministro e presidente da Câmara, desloca-se, para um momento mágico, a uma das praças mais bonitas do mundo. Finalmente, doze anos após o início das obras, que deveriam ter durado três, e depois de dezenas de milhões de euros de desvios, o Terreiro do Paço parece recuperar a sua vistosa figura. O Cais das Colunas é reaberto e inaugurado. Em maré de glória, o ministro diz que não lhe interessa perder tempo a apurar quem são os responsáveis pelos atrasos. O importante é o momento e a beleza do gesto. O Cais é devolvido ao povo de Lisboa. Mas, logo a seguir, o anúncio é feito: só por quinze dias. Após o Ano Novo, o Terreiro do Paço fecha, em grande parte, para novas obras de saneamento que vão durar, espera-se, mais de um ano. Entretanto, o Estado português terá de devolver à União Europeia cerca de 80 milhões de euros indevidamente recebidos, pois não respeitou as regras internacionais nas obras da linha de metro de Santa Apolónia ao Terreiro do Paço. Esta praça é bem uma metáfora do estado do país.
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SEXTA-FEIRA, 12 de Dezembro. Uma semana depois da sessão memorável da Assembleia da República, à qual faltaram umas dezenas de deputados, a reunião da comissão do orçamento, marcada para as nove e trinta, foi adiada. A razão foi a da falta de quórum. Isto é, não havia nove deputados, os necessários para atingir a fasquia legal. Os socialistas que, sozinhos, poderiam garantir o quórum, não estavam em número suficiente. Dos outros partidos, alguns estariam por ali, mas não chegava.
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Esta é seguramente a mais importante de todas as comissões parlamentares.
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O Parlamento português já não surpreende. Ninguém espera absolutamente nada daquela casa. Serve para completar a maquinaria democrática, mas foi rebaixado a um papel secundário. Qualquer câmara de televisão é mais importante do que aquela instituição. Aliás, os que ainda se dedicam a fazer discursos ou aparecer no hemiciclo fazem-no apenas com a televisão no espírito. Já se viram ministros e deputados a falar olhando para as câmaras, nem sequer para os seus pares. O tom geral dos debates, pelo tom e pelos berros, mais parece o de uma lota de peixe. Raros são os deputados que falam normalmente e expõem os seus pontos de vista com argumentos racionais. Mais raros ainda são os que mostram sinais exteriores de pensarem quando falam.
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Começam a surgir ideias e propostas para punir os deputados faltosos. Marquem-se faltas, dizem uns. Reduza-se o vencimento. Excluam-se os faltosos das listas nas próximas eleições. Publiquem-se regularmente os nomes dos que faltam. A verdade é que estas sugestões equivalem a colocar gesso numa perna de pau. Sem funções reais, sem independência, sem responsabilidades individuais, sem mandato pessoal e sem necessidade de prestar contas directamente aos eleitores, os deputados serão sempre o que são, apêndices estatísticos. Este Parlamento não é uma metáfora: é o retrato exacto e verdadeiro da democracia que temos.
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« Retrato da Semana» - «Público» de 14 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Luz - Vinha ou quinta dos Cardenhos

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Vinha ou quinta dos Cardenhos, parte da quinta do Crasto. Esta quinta fica perto de Gouvinhas, à beira do Douro. Tem uma vista magnífica, produz vinhos excelentes. Pertence à família de Jorge e Tomás Roquette. Dois dos seus vinhos, o Maria Teresa e o Vinha da Ponte, estão entre os melhores que se fazem em Portugal e têm obtido as mais altas classificações internacionais. Os “cardenhos” ficavam na casa que se vê em frente. Eram, no Douro, as instalações preparadas para albergar os trabalhadores, sobretudo durante as vindimas, quando as “rogas” vinham fazer esse trabalho. As “rogas” eram uma espécie de rancho de trabalho: homens, mulheres e jovens (até crianças) eram recrutados em regiões vizinhas para as vindimas, época em que faltava força de trabalho no Douro. Nesta imagem, podem ver-se vinhas de várias épocas. Socalcos antigos, patamares mais modernos e “vinhas ao alto”, método relativamente novo que se generaliza na região desde os anos setenta do século XX. (2007).

domingo, 7 de dezembro de 2008

Colapso

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UM GRANDE CIENTISTA, geógrafo e historiador americano, Jared Diamond, publicou, há uns anos, um formidável livro recentemente editado em Portugal (Gradiva). O título, “Colapso”, refere-se a uma realidade que estudou com pormenor e imaginação: há povos, países ou Estados que “escolhem” acabar, morrer ou desaparecer. Os Maias, os povos da ilha de Páscoa ou das ilhas da Gronelândia e populações do Ruanda contemporâneo são alguns dos exemplos. Por várias e complexas razões, tais povos, a partir de um certo momento, desistiram e caminharam direitos para o fim. Uns fizeram tudo o que era necessário para destruir ou esgotar as bases da sua sobrevivência, outros renderam-se aos inimigos humanos ou às ameaças naturais. Podem as escolhas não ser datadas e deliberadas, mas são actos de vontade motivados, talvez não pelo desejo de morrer, mas sim pela ilusão de outra vantagem ou pela complacência com que se vive uma circunstância conhecida.
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ESTA SEMANA foi fértil em situações e acontecimentos que sugerem o colapso, tal como Diamond o estudou. A analogia pode parecer forçada. Os processos históricos demoram séculos, aqui estamos a falar de anos. Aqueles dizem respeito a povos inteiros, aqui referem-se instituições ou regimes. Mas o paralelo é irresistível. O Parlamento português, por exemplo. Tem vindo gradualmente a falhar os testes de prova de vida. Dá de si uma imagem confrangedora de ignorância e incompetência. Obriga os seus deputados a abdicarem da liberdade e da independência. Aprovou por unanimidade diplomas recheados de inconstitucionalidades. Transforma o orçamento de Estado numa futilidade adjectiva. Faz seu o confronto que o PS deseja criar com o Presidente da República. Cauciona a abertura de uma crise institucional, inventada por motivos menores, sem se preocupar com os efeitos nefastos do seu comportamento. Caminha cegamente para as trevas exteriores. Tal como os Vikings das ilhas da Gronelândia, não percebe que já não é útil e que, por este andar, é dispensável. E não entende que o seu fim pode já ter começado.
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O PSD CONTINUA a dar exemplos de preparação para o suicídio. As mudanças sucessivas de presidente nada adiantaram. Manuela Ferreira Leite não conseguiu pôr o partido em ordem. Poucos meses bastaram para que os seus rivais criassem a desordem habitual. Creio que não existe, na recente história política portuguesa, nenhum caso onde sejam tão frequentes a mentira e a traição. Onde a luta fratricida atinja os cumes do assassinato velhaco. Onde o maior prazer é a derrota dos amigos. Onde a maior festa é a morte dos correligionários. No Parlamento, esta semana e a propósito de uma votação relativa aos processos de avaliação dos professores, as faltas de trinta ou quarenta deputados fizeram com que a oposição perdesse e o governo ganhasse sem mérito nem justa causa. Pode pensar-se que foi preguiça, afazeres, negócios ou prazer. Eventualmente vingança ou vontade de criar o caos. Mas tudo isso, por parte ou atacado, configura a indiferença. Eles estão-se simplesmente nas tintas! E, tal como os habitantes da ilha de Páscoa, não sabem que estão a escolher a morte. Se fosse só a deles, não se perderia grande coisa. Mas também pode ser a do Parlamento.
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O REGIME DEMOCRÁTICO português é frequentemente elogiado. Ou antes, foi. Instalou-se em poucos anos. Tem resistido à prova do tempo. Já foi considerado o “bom aluno” da Europa. Há mesmo quem pense que foi a primeira “revolução democrática” a preceder todas as outras de Leste e alhures. Na verdade, não foi. Terá talvez sido, com as suas ilusões absurdas, a última revolução socialista, mas é indiferente. Nesta democracia que já foi “exemplar”, as recentes agitações financeiras abriram definitivamente uma ferida tão repetidamente mencionada mas raramente concretizada: a da promiscuidade. Infelizmente, os costumes locais não fazer a distinção entre fraude, corrupção e promiscuidade. Para muitos, é a mesma coisa. Ora, não é. A promiscuidade entre a política e os negócios pode ser perfeitamente legal, mas pode matar um regime. Pode levá-lo ao colapso, mas legalmente. A política como fonte de acumulação primitiva de uma classe recém-chegada pode utilizar apenas meios legais ou, no máximo, não recorrer a ilícitos. Até porque os verdadeiros patrícios do regime português têm sabido fazer as leis capazes de sustentar as festividades.
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A sucessão de “casos” que envolvem grandes recursos financeiros, enormes obras públicas e colossais adjudicações sem concurso tem vindo a criar mal-estar e a mostrar as fragilidades do regime. A revelação das galáxias empresariais torna evidentes ligações insuspeitas entre partidos e empresas. Mas também o seu tutano, aquela área feita ora de luz, ora de sombra, onde se ganham eleições, se fazem negócios, se recrutam quadros e prestam favores. Ou aquele espaço intersticial onde se acumulam riquezas e fazem reis. As lutas intestinas de um banco, as rivalidades agressivas entre outros, as fraudes cometidas por um e a falência iminente de outro tiveram um denominador comum: a presença directa ou indirecta do Estado no capital, no negócio, na estratégia, no salvamento, na recuperação ou no amparo. Antes, durante e sobretudo depois das crises. Se o que estivesse em causa fosse só o papel do Estado, talvez houvesse razão e desculpa. O problema é que apareceram os rostos áulicos, com nome e currículo, dos que ora agem pelo Estado, ora por si próprios, ora por mandantes. O facto, em vez de sublinhar a força do Estado, põe em relevo a sua fragilidade e o modo como se deixou apoderar pelos predadores do regime. E exibe os circuitos do Jogo da Glória, ou do Monopólio, por onde circulam os novos Barões. Banca, energia, obras públicas e telecomunicações: parecem ser estes os territórios preferidos dos grandes partidos do regime. É possível que a maior parte dos homens de que se fala hoje não tenha cometido um só crime. É possível que não tenham tido, jamais, um comportamento ilícito. Mas tal se deve ao facto de as leis permitirem que se faça o que se faz. Até porque foram eles que as fizeram.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 7 de Dezembro de 2008

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Luz - Convento do Beato

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O Convento do Beato é um dos belos espaços públicos de Lisboa. Já lá estive para jantares, festas, conferências, feiras e exposições. Em certos momentos, com a luz adequada, é local misterioso. Ficou-lhe dos seus tempos de mosteiro, creio. (1985).

domingo, 30 de novembro de 2008

Debate sobre nada

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FOI APROVADO o Orçamento. Logo veremos, em 2009, a sua consistência e a adequação aos tempos de crise. O debate poderia ter sido um momento propício para uma reflexão séria sobre a crise internacional e nacional. Mas não foi. A chicana é hoje o supra-sumo do pensamento político e da retórica parlamentar. Ministros e deputados aos berros, troca de culpas e de acusações fúteis: o espectáculo não faz bem à cabeça de ninguém. Sobretudo à dos que lá estão. A superioridade moral da oposição é detestável. Uns disseram mesmo que a crise portuguesa é de exclusiva responsabilidade do Primeiro-ministro e do Governo! A auto-satisfação convencida do Governo é abominável. Nunca argumenta, decreta!

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O GOVERNO CONTINUA a distribuir Magalhães, na convicção, fingida ou não, de que com tal gesto está a estimular a alfabetização, a cultura, a curiosidade intelectual, o espírito profissional, a capacidade científica e a criatividade nacional. Será que nas áreas do governo e do partido não há ninguém que explique que isso não acontece assim?
Segundo a OCDE, o abandono escolar na União Europeia foi, em 2007, de cerca de 15 por cento. Portugal, com 36,3 por cento, tem a taxa mais alta. Mais de um terço da população entre 18 e 24 anos não completou a escola e não frequenta cursos de formação profissional. Só 13 por cento da população activa adulta completou o ensino secundário e perto de 57 por cento apenas terminaram o primeiro ciclo do básico.
Ainda segundo a OCDE e um estudo de Susana Jesus Santos (do banco BPI), a distribuição dos tempos de aulas nas escolas, para alunos de 9 a 11 anos, mostra como a juventude portuguesa está orientada. Em Portugal, a leitura (e o português) ocupa 11 por cento do tempo de aulas. Na União Europeia, 25. Em Portugal, a Matemática ocupa 12 por cento. Na União Europeia, 17.
Que é que o Magalhães tem a ver com isto? Nada. Absolutamente nada!
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SEGUNDO OS TRABALHOS de rotina do INE e da União Europeia, o “clima económico” em Portugal nunca esteve, desde há dezoito anos, tão baixo como agora. Trabalhos semelhantes sugerem que as expectativas dos consumidores atingiram o mais baixo ponto desde há cinco anos.
O crescimento da economia e do produto tem vindo a diminuir todos os dias. Diminui na realidade dos factos, assim como nas estatísticas. O governo (o mais optimista...), o Banco de Portugal, a União Europeia, a OCDE e o FMI publicam regularmente as suas previsões para 2008 e 2009, baixando sempre as taxas estimadas. Em princípio, Portugal aproxima-se do zero e de taxas negativas (menos 0,2 por cento em 2009, por enquanto...) Há praticamente oito anos que o país tem visto aumentar o atraso relativamente às médias europeias.
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O DESEMPREGO A SUBIR e a atingir níveis desconhecidos há anos. A prometer ainda mais nos próximos tempos. Mais uma vez, os números são controversos: Governo, INE, Banco de Portugal, OCDE, UE e CGTP oferecem estimativas diferentes. Mas num só sentido: desemprego a aumentar.
O endividamento público líquido é de mais de 140 mil milhões de euros, muito perto dos 100 por cento do produto. Só os juros anuais pagos por essa dívida serão de cerca de 8 mil milhões de euros. Talvez 6 por cento do produto.
O défice orçamental ultrapassou as previsões, assim como as metas nacionais e europeias, tendo agora o governo de, ao contrário do que sempre afirmou, recorrer a receitas extraordinárias, no valor de mil milhões de euros, para respeitar o patamar imposto de 2,2 por cento.
O défice da Caixa Geral de Aposentações (funcionários públicos e equiparados) será, em 2008, superior a 3 mil milhões de euros, cerca de 2 por cento do produto. Era, em 2005, de 1,5 mil milhões.
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OS ÚLTIMOS NÚMEROS disponíveis revelam que a emigração portuguesa retomou e faz agora lembrar alguns anos da década de sessenta. Nessa altura, a emigração era muita, mas o crescimento económico também. Hoje, a emigração é grande, mas o crescimento económico estagna. Calcula-se em cerca de 60.000 a 70.000 o número de portugueses que vão trabalhar para Espanha todos os dias ou todas as semanas, além de dezenas de milhares que já se estabeleceram definitivamente no país do lado. Com a crise económica espanhola, esperam-se tempos difíceis.
O número de imigrantes estrangeiros em Portugal está a diminuir e muitos dos que aqui viveram uns anos já se foram embora. O problema é que não são substituídos: ou não deixam postos de trabalho vagos, porque estes são extintos, ou não há portugueses que queiram ocupá-los.
As estatísticas demográficas continuam a revelar números que nos obrigariam a reflectir, mas essa não parece ser uma inclinação das autoridades. O número de óbitos já é superior ao número de nascimentos. O envelhecimento é muito rápido. A esperança de vida cresce. O número de pessoas com mais de 65 anos já é muito superior ao de jovens. E não se trata apenas de um problema de força de trabalho. Os gastos com as reformas e pensões aumentam na vertical. Mais: os custos da saúde e dos cuidados com idosos em dependência, nos últimos três ou quatro anos de vida, são iguais a toda a despesa verificada durante os 60 ou 70 anos de vida. É lógico, natural e assim terá de ser, mas a pressão criada sobre as finanças da segurança social é enorme.
Esta semana, em Viseu, numa conferência organizada pela Associação Portuguesa de Seguradores, Eugénio Ramos, especialista em questões da segurança social, resumiu em poucas palavras o que nos espera: “Vamos viver mais, trabalhar mais e ganhar menos”. Disto, o orçamento não fala. Nem o Parlamento.

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Apostila: O julgamento dito da Casa Pia chega ao fim. Cada um terá a sua ideia. Não deve haver um português que não tenha uma certeza sobre os eventuais culpados e inocentes. Veremos brevemente o que pensam os juízes. De qualquer modo, é com tristeza que se verifica que o principal culpado nunca foi julgado e nunca o será. Refiro-me à Casa Pia, como instituição. A muitos dos seus dirigentes. A vários dos ministros, secretários de Estado e Directores-gerais que exerceram a tutela. É sabido que algumas dessas pessoas tiveram informações sobre o que se passava, mas não quiseram saber ou não puderam agir. Parece mesmo que alguns arquivaram informações e relatórios. Por outro lado, a estrutura, o modo de organização, a dimensão e o espírito daquela casa deveriam ser discutidos e postos em causa. A Casa Pia deveria, creio, ter sido extinta. E os seus alunos distribuídos por várias instituições. Quando se pode extinguir o Inferno, não basta condenar alguns diabos.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 30 de Novembro de 2008

sábado, 29 de novembro de 2008

Luz - Rio Douro. Espelho de água visto da quinta do Crasto.

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Esta quinta tem estado muito na imprensa, estes dias. Um vinho seu (“Vinhas velhas, Reserva, 2005) ficou em terceiro lugar na famosa lista dos TOP 100 da revista Wine Spectator. Uma das vinhas desta quinta, vinha Maria Teresa, além de ser lindíssima (vinhas velhas plantadas à maneira antiga, segundo as curvas de nível), produz um outro vinho, o “Maria Teresa” justamente, muito bom (mas muito caro!)..

À esquerda da fotografia, vê-se a linha do comboio, mesmo à beira rio. É uma das mais maravilhosas linhas de caminho-de-ferro do mundo, pela paisagem que atravessa e pela distância que percorre. Esta linha já foi reduzida, deixou de haver movimento entre o Pocinho e Barca d’Alva. Como já tinha deixado de haver prolongamento para Espanha. Agora, fala-se de novo em terminar o trajecto de Pinhão ao Pocinho. Quem sabe se um dia a linha desaparece simplesmente. É triste e lamentável. Qualquer outro país faria tudo para preservar e manter esta linha.

Acrescente-se que as linhas dos vales afluentes tiveram o destino fatal. A do Sabor está fechada definitivamente. A do Tua, com o recente acidente e a ulterior barragem, fechada está. A do Corgo terminou entre Vila Real e Chaves, agora limita-se ao percurso Régua a Vila Real. Qualquer destas linhas é de uma beleza impressionante.

Quanto a este espelho de água, lugar de tranquilidade, resulta evidentemente das albufeiras das barragens. Até aos anos sessenta, não era assim. Este rio, em múltiplos locais, era bravo e selvagem. Perigoso mesmo. Com as barragens, foi pacificado. Domesticado, como dizia Miguel Torga. Deixou de ser o que era, ganhou um novo carácter. Mas ainda se impõe aos nossos sentimentos. (Foto de 2007).

NOTA: ver, [aqui], duas dezenas de fotos da Linha do Tua enviadas pelo leitor R. da Cunha.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Políticas educativas

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[Ver NOTA]
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A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO é certamente um dos temas mais discutidos na vida pública nacional. Toda a gente (vários milhões de pessoas) tem um qualquer interesse na educação: pais, professores, jovens, empregadores, autarcas, trabalhadores e políticos. Estes últimos, em particular, pronunciam-se sempre que podem, dado que este tema é propício a declarações de eterno optimismo, de vigorosa determinação e de romantismo seguro. Ainda por cima, a educação (ou a falta dela) é quase sempre a “ultima ratio” que explica tudo, os falhanços, as incapacidades ou a ignorância. Perante um problema difícil, como a baixa produtividade, as taxas de abstenção eleitoral, a criminalidade, o desemprego, a corrupção, os desastres de viação ou a fuga ao fisco, um político, um analista ou um comentador, já para não dizer toda a gente, não deixa de concluir o seu raciocínio com uma frase parecida com esta: “O problema essencial é o da educação”. Também se pode substituir “problema” por “solução”. Uma variante afirma que “o mais importante é mudar as mentalidades. E isso começa na educação”. O problema é que estas declarações nada ajudam a resolver. Quando a última explicação ou a principal solução residem na educação, podemos concluir, sem margem de erro, que quem assim se exprime ou não percebe o que se passa ou não sabe o que fazer.
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A análise das políticas de educação, tal como se encontram expressas nos programas dos governos e dos partidos, é um exercício frustrante. Com excepção de alguns aspectos mais extremistas ou radicais dos pequenos partidos, as políticas parecem-se umas com as outras. Além de que, em cada uma, está sempre tudo: a quantidade e a qualidade; o público e o privado; a autoridade e a democracia; o rigor e a facilidade; a severidade e a complacência; a autonomia e o dirigismo. Os partidos querem tudo, não querem deixar nada, nem ninguém, de fora. Apesar disso, a tentativa de análise é recompensada. Com efeito, percebe-se que, na verdade, se regista uma estranha continuidade de políticas desde os finais dos anos sessenta até hoje, A que não faltam objectivos centrais: o aumento da despesa pública, o alargamento do sistema, a expansão do número de professores e estudantes abrangidos e a ampliação da rede escolar. As diferenças e a evolução, que as houve, foram de pormenor, de instrumentos, de meios e de circunstância. Por isso todos dizem hoje que se deu excessiva importância à quantidade, em detrimento da qualidade. Apesar da unanimidade, não se retiram daí as lições adequadas.
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Uma política é feita de princípios, objectivos, estratégia, organização e meios. A estes itens, importa acrescentar as condições políticas gerais, muitas vezes decisivas. Se olharmos bem, quase todos os partidos e governos coincidem, desde o fim da década de sessenta, nos princípios, na estratégia e nos objectivos. As principais diferenças são de meios, de instrumentos de acção, de medidas concretas de circunstância e mil outros pormenores. Estes factos explicam o paradoxo educativo português: mau grado a mudança permanente e apesar das sucessivas reformas, existe uma continuidade em tudo o que é essencial. É constante a mudança no acessório, o que desorienta a população estudantil, os pais e o corpo docente, mas o essencial fica imutável. Os grandes problemas (como a discriminação social implícita, a mediocridade de resultados, a falta de qualificação e o insucesso) são recorrentes e agravam-se. A preparação cultural e a formação profissional dos portugueses não melhoraram na proporção dos esforços feitos nesse sentido durante trinta ou quarenta anos. Assim é que os progressos quantitativos foram enormes, mas os progressos do conhecimento e do saber foram diminutos e medíocres, a ponto de Portugal ficar sempre muito mal colocado em todas as comparações internacionais.
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Estas comparações, de grande utilidade, oferecem aliás muita matéria para reflexão. Sabe-se, por exemplo, que em Portugal: a) O número de professores é elevado. b) O número de alunos por professor é dos melhores do mundo. c) Os vencimentos dos professores, em proporção do produto nacional, são dos mais altos. d) A despesa pública com a educação é das mais elevadas. Ao mesmo tempo, estas comparações atribuem a Portugal uma posição medíocre, das piores do mundo, relativamente ao insucesso, o abandono escolar precoce, a formação profissional, o conhecimento em várias disciplinas (português, física, química e matemática) e o êxito pedagógico em geral.
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É possível concluir (ou, pelo menos, formular uma hipótese): em Portugal, não existe um problema de insuficiência de meios financeiros, de recursos humanos, de equipamento e de instalações. Mas existem problemas de organização e de orientação. Um deles é a estabilidade política: 26 ministros e perto de cem secretários de Estado em 34 anos! Como se isso não bastasse, tem havido, ao longo dos anos, mudanças bruscas de acção (leis, medidas, meios e organização) dentro do mesmo governo ou do mesmo partido. Outro problema é o da politização excessiva da educação. Quase todos os governos e partidos fizeram da educação um terreno de combate político e eleitoral de primeira escolha, o que tem causado graves danos. Os governos interferem na escola, querem que os seus resultados sejam argumentos eleitorais, oferecem fundos e facilidades, distribuem equipamentos e desdobram-se em visitas às escolas, na esperança de ver a sua acção assim sufragada. A demagogia política, própria da democracia de massas, encontrou na escola um terreno ideal e favorável: é fácil demonstrar, diante de crianças, a generosidade dos políticos.
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Uma observação do sistema educativo português e da sua evolução durante as últimas décadas permite pensar que, se os resultados qualitativos são tão medíocres, algo deve estar errado no essencial, naqueles aspectos que são evitados pelos partidos e pelos governos. Nesse plano, algumas ideias e concepções, recorrentes há décadas, deveriam ser postas em causa e discutidas. Por exemplo, a escola como sujeito da “formação integral do indivíduo”, tema simultaneamente laico e cristão, tradicionalista e republicano. Este modelo retira responsabilidades à família e afasta-a da escola, o que, nos tempos modernos, parece ser aceite geralmente, mas que na verdade cria um défice grave na formação dos alunos. Do mesmo modo, as concepções lúdicas da educação, com menosprezo pelo trabalho e pelo esforço, tanto individuais como colectivo, conduzem a escola a uma espécie de recreio permanente. Ensinar, aprender e estudar exigem trabalho, sacrifício e dedicação, não deveriam ser imaginados como se de um prazer se tratasse.
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Também é nefasta a ideia de que o sistema educativo deve ser centralizado, unificado e integrado, sob a ordem superior, permanente e directa do ministério. Não só desaparecem as responsabilidades da escola e o empenho dos docentes, como são destruídos os laços que deveriam ligar a escola às comunidades. Vigora em Portugal a concepção “esclarecida” da comunidade educativa, limitando esta aos professores e aos estudantes, com exclusão dos pais, dos autarcas e dos cidadãos em geral. Esta escola é uma intrusa nas comunidades, um corpo estranho. Os pais e os autarcas consideram a escola como um fardo, uma ocupação dos jovens e uma guarda dos filhos, não lhe dão o seu melhor e nela não assumem responsabilidades. Esta escola, apesar da demagogia partidária e governamental, nada tem de autónomo, a não ser em algumas competências menores. Este é o modelo dirigista predominante em Portugal, vigente no Estado Novo e na democracia, com partidos de direita ou de esquerda no governo. Nunca os partidos e os governos, muito menos o Parlamento, estranhamente ignorante e absentista, ousaram pôr em causa o modelo e debater honestamente outras vias e alternativas.
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Este modelo de escola é coerente com outra característica permanente do sistema educativo português: a sua opacidade e a sua impermeabilidade às influências externas, da sociedade em geral, dos cientistas, das universidades, das empresas, dos artistas e dos profissionais. Sabe-se hoje, por exemplo, que há graves defeitos de conteúdo, de ordenamento, de progressão e de método em várias disciplinas. Sabe-se que os manuais são em geral de má qualidade. Sabe-se que os programas pecam por excesso de matéria e de dificuldade. Como se sabe que muitos programas e manuais são dominados por concepções políticas e pelas modas. Perante esta situação, seria de aconselhar que pessoas qualificadas e independentes se debruçassem sobre os programas. Ora, o ministério (os governos e os partidos) recusa tal hipótese e repousa nas capacidades de criação e avaliação do próprio ministério e dos profissionais dependentes que formam as estruturas de decisão dentro daquele departamento governamental.
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A instabilidade do corpo docente é outra causa de dificuldades pedagógicas e de mau funcionamento das escolas. Aquela tem como origem fundamental o facto de o recrutamento e a selecção dos professores não dependerem das escolas, nem das comunidades, mas do ministério, o que é coerente com o modelo “esclarecido”. Os docentes “pertencem” ao ministério, não às escolas. Apesar de alguma melhoria recente (três anos de contrato), a verdade é que a ligação dos professores à sua escola e à sua comunidade é frouxa, ténue e efémera. Só tarde na vida e na carreira de um professor é que essa ligação pode assumir uma dignidade mais sólida.
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Em conclusão: estes são apenas alguns aspectos essenciais para formulação de uma política de educação. São temas a que escapa a maioria dos debates contemporâneos, pois a ortodoxia partidária e governamental tem obtido uma curiosa unanimidade. Ou, pelo menos, um consenso alargado. O fiasco evidente das políticas de educação seguidas há quarenta anos em Portugal não se fica a dever a erros intrínsecos das políticas de educação, mas sim às condições políticas gerais, assim como, sobretudo, à unanimidade das opiniões e dos programas relativamente à ordem estabelecida e ao modelo educativo consagrado. Há, sobre a educação em Portugal, toneladas de papel publicado, milhares de opiniões conhecidas. Mas há pouco trabalho independente de análise. Discute-se muito a educação, mas o debate está limitado ao acessório. O sistema de ensino, tal como ele é, e o modelo de escola vigente e predominante parecem tabus que condicionam as políticas de educação. Enquanto formos assim reféns, será difícil realizar um debate aberto e livre, sem constrangimentos. O que quer dizer que será difícil definir políticas de educação mais ajustadas às necessidades do país e dos seus cidadãos.

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"O Economista", Anuário da Economia Portuguesa, Edição da Ordem dos Economistas, Dezembro de 2008
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NOTA: Será premiado com um exemplar deste clássico da pedagogia o autor do melhor comentário que seja feito, a esta crónica, até às 20h de 30 Nov 08, domingo.
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Actualização (1 Dez 08): o passatempo, que teve a colaboração do Sorumbático, terminou. Ver o resultado [aqui]. Obrigado a todos.

domingo, 23 de novembro de 2008

Por exemplo

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A ESCOLA ADRIANO ZENÃO, pública, tem cerca de 500 alunos do ensino básico e secundário. Pertence à autarquia. O director da escola, Dr. Fabrício, é gestor, especialista em administração escolar e principal responsável pela escola. Foi nomeado pelo Conselho Escolar, sendo este composto por um terço de professores, um terço de pais de alunos e um terço de membros da comunidade (autarcas, empresários e outros). O contrato do director tem a duração de cinco anos e pode ser renovado. A sua nomeação ocorreu após um processo de selecção iniciado um ano antes. A aprovação do seu contrato teve de obter pelo menos dois terços dos votos do Conselho Escolar. O director é assessorado pelo Conselho de Gestão, formado por ele, um técnico e dois professores. Estes três membros do conselho de gestão foram nomeados, sob proposta sua, pelo Conselho Escolar. O Conselho Pedagógico, formado por cinco professores, ocupa-se das matérias exclusivamente desse foro. Há vários planos, muito flexíveis, de organização dos docentes por turma, ano ou disciplina, de modo a permitir a boa informação e a coordenação de certos assuntos. O Conselho Disciplinar é formado pelo director, um professor e um membro da Associação de Pais. O Regulamento disciplinar é elaborado pelo director da escola e aprovado pelo Conselho Escolar. Este último, presidido pelo Dr. Julião Bruno, representante da Associação de Pais, nomeia o director e aprova os orçamentos e relatórios anuais, o plano estratégico de desenvolvimento e os regulamentos, mas não interfere no dia-a-dia da escola, nem nos processos de avaliação ou de recrutamento. Este foi o modelo próprio, construído pela escola. É diferente do de outras e parecido com o de umas tantas.
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O Ministério da Educação não tem qualquer intervenção directa na escola. Mas os seus inspectores visitam-na duas vezes por ano e elaboram relatórios que entregam ao Ministério e à autarquia. Além disso, o Ministério estabelece o currículo nacional que ocupa cerca de 75 por cento das matérias disciplinares. Os restantes 25 por cento são decididos pelo conselho escolar, sob proposta do conselho pedagógico. Para as disciplinas do currículo nacional, a escola organiza os exames de acordo com as regras gerais em vigor para todo o país. Mas a avaliação permanente dos alunos, com ou sem exames, depende exclusivamente da escola que aplica os métodos que julga mais convenientes. O Ministério da Educação tem ainda a responsabilidade de estabelecer anualmente os “rankings” das escolas. Por outro lado, pode intervir, com poderes excepcionais, cada vez que se verifique, na escola e na autarquia, uma crise irremediável de que os alunos são as primeiras vítimas.
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O financiamento público é garantido pelo Ministério, através da autarquia, no quadro de um plano trienal. A escola recebe um orçamento anual, que tem de gerir livremente, não podendo jamais ultrapassar as verbas atribuídas, pois o Ministério está proibido de acrescentar o que quer que seja. A autarquia tem a seu cargo as despesas extraordinárias e imprevistas. A comunidade, sobretudo as empresas, contribui igualmente. Os empregadores da região fazem sugestões sobre cursos e especialidades que a escola pode criar e que têm utilidade para as actividades locais. As despesas de carácter social (bolsas de estudo, apoios alimentares e outros subsídios) dependem da autarquia, que recorre a fundos próprios e a dotações do Instituto de Acção Social.
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Os professores, várias dezenas, pertencem aos quadros da escola. A quase totalidade exerce lá a sua profissão há mais de três anos. Muitos fazem-no há mais de quinze. Os novos professores são recrutados anualmente pela escola, seja através de concursos específicos, seja, em certos casos, directa e pessoalmente. Os novos contratos, com duração nunca inferior a três anos (a não ser a pedido do professor e em caso de emergência), são aprovados pelo Conselho de Gestão, sob proposta do director. Após os primeiros contratos cumpridos, os professores podem obter a nomeação definitiva, tendo para isso que prestar provas. A avaliação dos professores é feita regularmente e ao longo de todo o ano pelo Conselho Pedagógico, pelo Conselho de Gestão e pelo Director. Do processo de cada professor podem constar elementos com origem diversa, incluindo apreciações do Conselho Escolar e dos Inspectores do Ministério, assim como os resultados das provas prestadas e o registo de assiduidade. Esta avaliação, permanente, exclui as “grelhas”, os “projectos individuais” e outros formulários abstrusos. Cada professor redige um relatório anual das suas actividades e dos seus resultados, a que acrescenta uns parágrafos com sugestões de melhoramento e opiniões sobre o funcionamento da escola. A decisão última relativa à avaliação depende do Director da Escola.
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Há várias modalidades de participação dos pais, seja através dos órgãos representativos, com funções e poderes reais, seja por intermédio das reuniões com os professores, regulares mas relativamente informais, durante as quais se tratam dos múltiplos problemas da vida quotidiana da escola e dos alunos. Os professores dedicam umas horas por mês a receber individualmente os pais. Os representantes dos pais participam necessariamente na organização de vários aspectos da vida da escola relativos à saúde, ao desporto, à alimentação, à cultura e a outras actividades culturais. A escola fica aberta todos os dias até às 19.00, por vezes 20.00 horas, mantendo em funcionamento, até essa altura, a biblioteca, as oficinas tecnológicas, as salas de estudo, as instalações desportivas e as salas destinadas à música e ao teatro. Por vezes, para certas actividades extracurriculares, a escola fica aberta até às 22.00 horas.
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Parece difícil, não parece? Mas não é.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 23 de Novembro de 2008
NOTA: Estas crónicas são também publicadas no Sorumbático

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Luz - Escorial

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Só muito tarde na vida fui visitar o Escorial. Durante muitos anos, não tinha curiosidade. Há cerca de trinta anos, depois de a ouvir pela primeira vez, apaixonei-me pela ópera “Don Carlo”, de Verdi. Uma parte passa-se neste palácio, mandado construir por Filipe II, que ali morreu. Não descansei enquanto não fui visitar. É de grande beleza severa e rude. Tem uma estética de tempos difíceis e de autoridade. (1990).

domingo, 16 de novembro de 2008

Os três poderes

DUAS TEIMOSIAS. Dois fanatismos. Nos actuais termos, a guerra das escolas não tem saída. Mesmo que esta ministra consiga, pela lei da força, uma qualquer vantagem, terá, a prazo, uma grande derrota. Os professores, de futuro, não farão o que ela hoje pretende. Aliás, muitos já o não fazem. O próximo ministro da educação, até do mesmo partido, terá necessidade de alterar muita coisa e procurar um novo pacto. Se for de outro partido, a primeira coisa que fará será alterar este quadro legal e as práticas que são hoje impostas. Nas próximas eleições, poderá ver-se na campanha e nos respectivos programas: todos, com excepção do PS, vão sugerir a revogação das actuais leis e os mais imaginativos acabarão por propor um novo sistema de avaliação. O próprio PS fará uns “ajustamentos”...
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Não se trata apenas de teimosia. Muito menos da força da razão. Há muito mais do que isso. A começar pela ideia de imagem, um dos maiores venenos da política contemporânea. Não se pode perder a face. Não se desiste. Não se devem reconhecer erros maiores. Não é bem visto recuar. A insistência, mesmo no erro, é sinal de carácter. Estes são alguns dos sentimentos que passam pela cabeça dos governantes e dos dirigentes dos sindicatos. Mas há mais. O governo recorda com especial carinho o episódio de Souselas. Já ninguém se lembra, mas Sócrates não esquece. Foi essa história menor da política portuguesa que criou Sócrates e lhe ofereceu um trampolim para o lugar que hoje ocupa. Nunca ceder, ir até ao fim, são imperativos.
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Mas a superfície não explica tudo. Estas batalhas não se limitam a estilos e imagens. Está em curso uma luta entre três poderes. Luta verdadeira, de cujo resultado vai depender o futuro da educação e da escola. Quais são esses poderes? Em primeiro lugar, o do ministério (ou do governo), em tentativa de reforço e consolidação. Segundo, o dos professores, em queda. Terceiro, o da escola, largamente fictício.
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O governo quer centralizar ainda mais o sistema educativo, deseja reafirmar o seu poder sobre a escola e sobre os professores e pretende uniformizar regras e critérios. Procura manter as autarquias sob a sua alçada e transformar os professores em verdadeiro regimento fabril ou militar. Entende que, obedientes, as escolas e os professores darão melhor contributo para as suas estatísticas. De passagem, tem outros objectivos, eventualmente mais nobres: poupar dinheiro e obrigar os professores a trabalhar mais.
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Os professores, tanto “os movimentos” como os sindicatos, não querem ser esbulhados da enorme parcela de poder que as reformas lhes deram durante as últimas décadas. Como não querem ser obrigados a seguir as ordens regimentais e as enxurradas de directivas que o ministério lhes envia regularmente. Não querem ver as suas carreiras transformadas em função burocrática e automática. Não desejam ser avaliados. Não querem perder os privilégios que os sucessivos governos e as modas pedagógicas lhes conferiram. Não aceitam ser, além de parte interessada, juízes, fiscais e polícias em nome do ministério que abominam. E não querem ser cúmplices desta nova ordem burocrática que se anuncia.
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Quanto às escolas, coitadas! Não têm porta-voz, praticamente não existem como instituição. Não cultivam espírito de corpo. Não têm meios. Não têm relações verdadeiras e genuínas com os pais, nem com as comunidades. Não são entidades autónomas, com identidade e carácter. São fortalezas dos professores ou repartições do ministério. Não têm nada a perder com esta guerra, pela simples razão de que nada têm.
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A ministra tem algumas razões. Mais trabalho, por parte de alguns que folgam. Um qualquer princípio de avaliação. Poupar recursos e dinheiro. E impedir que todos os professores tenham sempre as classificações de muito bom e excelente, pragas conhecidas em toda a função pública. Mas o Inferno está no pormenor. Como sempre. Os jornais já publicaram mil pormenores sobre o sistema de avaliação, dos formulários às regras e procedimentos. O escárnio é constante. A ministra queixa-se de que o seu sábio sistema foi ridicularizado! É verdade. Mas não merece menos do que isso. Além de absurdo e inútil, este exercício parece uma punição, a fazer lembrar os castigos infligidos, por praxe sádica ou despotismo, nas forças armadas de muitos países. Não é só este sistema que está errado: é o princípio mesmo de uma avaliação centralizada, de âmbito nacional e uniforme.
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A avaliação ministerial, burocrática, formal e pseudocientífica é um enorme erro. A grande tradição centralista, integrada e unificada da educação pública em Portugal é responsável pela mediocridade de resultados e pelo desperdício de enormes recursos financeiros vertidos, desde há trinta anos, por cima do sistema, sem resultados proporcionais. É essa tradição que é responsável pela ausência de espírito comunitário nas nossas escolas. Pelo desdém que as autarquias dedicam às escolas. Pela apatia e impotência dos pais. Pelo facto de tantos professores desistirem do orgulho nas suas carreiras e do brio no exercício da sua profissão. É provável que muitos não queiram trabalhar quanto devem ou que tenham outros interesses. Como em todas as profissões. Mas o seu sentimento de dignidade ferida parece genuíno. E é compreensível.
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São quase misteriosas as razões pelas quais não se permite que sejam as escolas, os seus directores e os seus conselhos de direcção, ajudados pela comunidade e pelos pais, a avaliar a escola no seu conjunto. E não se deixam os responsáveis das escolas observar e avaliar o desempenho profissional dos docentes. A República, o Estado Novo, a democracia, o socialismo e o comunismo coligam-se facilmente para manter a escola sob o punho do ministério, cuja proverbial incompetência é uma das raras constantes na história do século XX. Entre o ministério e o sindicato, parece haver terra queimada, campo de batalha. Não terão percebido os professores, desta vez, que a autoridade do ministério é o pior que lhes pode acontecer? Apetece dizer que chegou a hora de sair deste impasse, de quebrar a tenaz dos dois fanatismos. Uma visão optimista levar-nos-ia a pensar que, finalmente, os professores perceberam que a autoridade da escola pode ser a solução. Dá vontade de acreditar que este é o momento de deixar de escolher entre a guerra e a peste. Mas a esperança numa solução sensata e num esforço de imaginação criativa, em vésperas de eleições, é uma doença grave. Livremo-nos, ao menos, dessa.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Novembro de 2008 .
NOTA: Estas crónicas são também publicadas no Sorumbático

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Luz - Douro, Vale do Rodo

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Esta imagem do Douro é ligeiramente diferente daquelas que vemos com mais frequência. Trata-se do Vale do Rodo, na parte mais ocidental da Região Demarcada, aquela que é conhecida por Baixo Corgo. A traço grosso, esta paisagem situa-se entre Santa Marta de Penaguião e a Régua. É uma área mais povoada, com mais vegetação, mais pequena propriedade, terra mais fértil, com mais árvores e mais água do que o Cima Corgo (perto do Pinhão, por exemplo) ou o Douro Superior (para os lados do Pocinho, do Côa e de Barca d’Alva. Mas também se diz que o vinho do Porto desta zona não é tão bom como o das zonas mais quentes e secas. Para que o vinho seja bom, é preciso que a videira sofra! (1992).

domingo, 9 de novembro de 2008

A luta final

Por António Barreto
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ESTADO E SOCIALISMO não são sinónimos. Há quem esqueça esta banalidade, mas é por vezes preciso lembrar. Não são. Pode haver, há Estado, muito Estado, até Estado a mais, sem socialismo. O que não há é Socialismo sem Estado. Até mesmo sem Estado a mais. Nas crises actuais do sistema financeiro e nas que ainda aí vêm, incluindo as económicas, uma palavra tem servido de receita miraculosa: o Estado! Primeiro, como fiscal e regulador; depois como juiz e polícia; agora como proprietário e accionista. A esquerda delira de entusiasmo. Falhou o regulador. Vai falhar o juiz e o polícia, pois os ricos escapam sempre. Sobra o Estado proprietário. É a grande oportunidade. Talvez se consiga, pensam uns, construir o socialismo, à socapa, sem luta de classes e sem revoluções. Grandes esperanças!
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Nos anos noventa, com o fim do comunismo e da União Soviética, os socialistas julgaram que tinham ganho. “Enfim, sós!”, suspiraram. Sem ninguém à esquerda, sem ameaças de ditadura da mesma família política, respiraram aliviados. Nunca perceberam que, com o fim do comunismo, morriam também um pouco. E mudavam de natureza. Os socialistas desistiram dos seus combates seculares, das suas razões genéticas de vida e de luta. Apesar da existência de variantes, sempre lutaram por mais Estado, a ponto de, frequentemente, serem condescendentes com a violência, o abuso de poder e a violação de direitos fundamentais. Quando o fim último é o Estado e as esperanças que nele depositam, os socialistas e outros companheiros de esquerda hesitam pouco. Para um socialista de gema, o Estado tem sempre razão.
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Além do Estado, o outro princípio primordial era a propriedade. Os socialistas perfilhavam vários conceitos, desde a propriedade dos meios de produção à nacionalização dos sectores estratégicos da economia. Dado que a propriedade era o alicerce do capitalismo, o seu derrube exigia a expropriação e a nacionalização. Estado e propriedade eram os factores essenciais do movimento socialista. Tal como os comunistas, viveram décadas com a certeza de que a sociedade sem classes e o progresso dependiam da destruição das classes proprietárias e do estabelecimento da propriedade dos meios de produção pelo Estado. A Constituição portuguesa de 1976, da autoria de ambos, preconizava “a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais”!
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As duas últimas décadas viram transformarem-se os credos socialistas. E sobretudo a sua acção. Converteram-se ao mercado, mesmo se algumas vezes só em aparência e por cinismo eleitoral. Gradualmente, passaram a considerar a iniciativa privada como essencial. Tomaram a dianteira ou ajudaram a desnacionalizar as economias e a reprivatizar as empresas. Contribuíram para emagrecer o Estado. Colaboraram com os capitalistas, as grandes multinacionais e os grupos económicos. Uns limitaram-se a executar essas políticas, outros converteram-se mesmo pessoalmente. A propriedade deixou de ser o factor divisor das classes e das políticas. A iniciativa privada e o mercado deixaram de ser fronteiras. A luta das classes deixou de ser o motor da História. Os socialistas passaram a desejar ser eficientes, produtivos e responsáveis. Depois de terem mostrado a sua incapacidade, até para gerir um carro eléctrico, começaram a ser ou a aspirar ser bons gestores. E a retirar, do capitalismo, o melhor possível. O Estado nacional, um pouco, e o Estado europeu em construção, muito, continuam a ser credo e crença, mas domesticados agora pela boa gestão dos negócios e pela competitividade.
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A crise económica e financeira deste ano trouxe nova alegria aos socialistas. Era a derrota do capitalismo, gemeram. Depois da do comunismo, a vitória parecia total. Ouvem-se pessoas, lêem-se textos que não escondem a jovialidade com que olham para “a crise”, ainda por cima americana. “Estava-se a ver”, “era inevitável”, “tiveram o que mereciam”: eis tons das suas recentes cantilenas. Os mais brutos chegam a pensar que talvez seja esta a maneira de construir o socialismo. Mas a maioria já só pensa em salvar o capitalismo. Na sua megalomania, querem mesmo “refundar o capitalismo”. Com o Estado e os socialistas, pois claro.
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Liberais, conservadores, populares, social-democratas, socialistas e trabalhistas estão unidos num propósito: salvar o capitalismo! Na sua quase totalidade, é isso mesmo que querem fazer. Sem cinismo. Do lado das esquerdas, é possível que haja algum sentido da oportunidade: sob a capa do salvamento do capitalismo, entra o Estado. Entra e fica! Mesmo para esses, a ideia de construir o socialismo é absolutamente utópica e risível. Também querem salvar o antigo inimigo. Só que, se puderem ficar no cockpit ou pelo menos partilhar a torre de controlo, ficam felizes. Com o Estado e o capitalismo, pois claro!
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Os socialistas louvam o Estado, murmuram de contentamento com as nacionalizações americanas, as de Gordon Brown, as portuguesas que vêm a caminho e as espanholas prometidas. Os socialistas já não estão convencidos de que esta crise é a do fim do capitalismo e a da vitória do socialismo. É a vitória do Estado, em qualquer caso. Não perceberam é que se trata da derrota final do socialismo. Já não é alternativo. Já não tem modelos a defender. Os socialistas interessam-se agora pela vida privada dos cidadãos, por causas culturais e pelos costumes. Casamento e divórcio, aborto e adopção, eutanásia e suicídio, homossexualidade e droga são as causas dos socialistas e de muitas esquerdas. A derrota dos socialistas é a que os transforma, não em coveiros, mas em curandeiros do capitalismo, em ajudantes dos que querem refundar o capitalismo, em decoradores que lhe querem dar um rosto humano. Uma espécie de serviço de assistência, de garagem ou de cuidados intensivos do capitalismo. Se existe uma derrota final, é bem esta.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 9 de Novembro de 2008
Esta e outras crónicas do autor estão também no blogue
Sorumbático

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

“Cidades sem nome”

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Fernanda Câncio - Edições Tinta da China
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O LIVRO É MAGNÍFICO! Interessante, pertinente, racional! Sem facilidades. Sem pieguice, mas comovedor.
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A Fernanda Câncio correu os riscos de um estilo difícil, de uma narrativa complicada, tentando colocar-se ora dentro, ora fora, destes bairros, destes sítios e destas comunidades. O livro está a meio caminho de vários géneros, da reportagem, do estudo, do ensaio. Este cruzamento nem sempre é fácil. Creio que a Fernanda soube resolver os problemas de estilo e de narração.
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Deu a palavra a muitas das pessoas que visitou ou com quem conviveu, mas nunca foi condescendente. Ela parece saber que “as coisas” e “os factos” não falam por si próprios. E que a palavra das pessoas, mesmo sendo genuína, mesmo sendo verdade, não é toda a verdade. Não estou a insinuar, generalizando, que as pessoas mentem. Podem mentir, claro, mas esse não é o ponto. O que as pessoas sentem e dizem, se for genuíno, é sempre verdade. Mas apenas uma verdade. Um ponto de vista. Uma versão. Como uma carta. Como uma fotografia. Apenas uma parte da verdade.
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O livro é sobre as periferias. Os subúrbios. Os arredores. “Cidades sem nome” é um belo título. Belo e real.
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São as periferias das áreas metropolitanas. Eu creio que a Fernanda quer dizer que ali se vive “normalmente”, como ela defende nos seus programas em exibição na RTP2 a horas inadmissíveis.
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Apesar de tudo nos levar a pensar e dizer a dizer que as periferias são uma espera, um espaço adiado, um local de passagem, um sítio para dormir, apesar disso, ela diz-nos que ali está também uma comunidade, ou parte dela. Suspensa, talvez. Destroçada, por vezes. Resignada, geralmente. Resistente, também. Mas tudo isso faz uma vida. Uma comunidade.
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Mais do que locais, os bairros são gente. Boa e má. Bem comportada e delinquente. Corajosa e desistente. Mas gente como todos nós.
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Apesar disso, apesar da normalidade, apesar do habitualmente, há qualquer coisa de especial nas periferias. De adiado ou de suspenso. Por vezes de provisório. Quando as pessoas, algumas das quais falam neste livro, afirmam insistentemente que o bairro é uma comunidade, que não é uma periferia, que não é um subúrbio... Quando o fazem com essa insistência, é porque o problema existe. É talvez porque se trata mesmo de uma periferia. Afirmar que esta não existe é uma maneira de lhe garantir existência. Mas também um modo de sobreviver e de se atribuir a si próprio uma identidade. Do que as pessoas não abdicam.
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São quatro as periferias escolhidas pela Fernanda Câncio: a Brandoa, a Bela Vista (em Setúbal), o Clube de Campo de Belas (um condomínio fechado) e Vila Franca de Xira. Por esta lista se vê que se trata de realidades bem diferentes. Mais ou menos comunidades à parte, mais ou menos de populações especiais, mais ou menos territórios com umas vagas fronteiras (quando não fechados, uma espécie de gueto da classe média e média alta, como o Clube de Campo). Têm de comum pertencerem ou serem tratados como subúrbio, arredor, periferia.
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Os bairros são gente, dizia eu. Diz a Fernanda. São essas pessoas que falam neste livro. É dessas pessoas que a autora fala. É sobre elas que ela escreve. Mas não há só isso. Há momentos de grande beleza narrativa. Como a descrição de abertura do capítulo sobre Vila Franca de Xira. De grande sensibilidade. Mas, ao mesmo tempo, sem se deixar tentar pela veia poética que pode esbater o real, FC teve o sentido da precisão e da impressão. (Pág. 129).
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Leiam essas páginas.
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Dizia-se, há poucas décadas, que havia dois países, dois Portugal, o do litoral e o do interior. Eram os famosos dualismos da sociedade portuguesa de que falavam os sociólogos, tanto portugueses, como Adérito Sedas Nunes, quanto estrangeiros.
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Hoje não é assim. Os bairros da periferia de Lisboa parecem-se com os do Porto, de Setúbal ou de Évora. Os bairros sociais de todo o país são parecidos. Os condomínios fechados de todo o país, com mais ou menos campo e natureza, mais ou menos SPA, parecem-se todos.
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O que há então de diferente? Há mais dualismos dentro das áreas metropolitanas do que entre estas e o interior.
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Os grandes problemas sociais, as desigualdades, a pobreza, a doença, o desenraizamento, a marginalidade, estão hoje nas áreas metropolitanas.
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Os cidadãos de todo o país têm os mesmos direitos e o mesmo estatuto. Há diferenças de rendimento e de acesso a certos bens. Mas os serviços estatutários são os mesmos.
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Há vida na periferia. Há vida no subúrbio, para além da miséria ou da pobreza.
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Há vida ali, apesar do que pode parecer. Ou do que se diz nos jornais e nos livros académicos. Há vida ali, apesar da aparência, que Fernanda descreve de maneira única e comovedora, apesar de enxuta, sem tentativas de fazer drama. (Pág. 11).
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Subúrbio ou periferia: sinónimos de pobreza, miséria, desemprego, marginalidade, crime, vida sem lei, local inacessível às forças da ordem, desordem urbanística, fealdade, ausência de equipamentos sociais, crianças sozinhas na rua, pais ausentes durante o dia, prédios esquálidos, edifícios degradados, ruas porcas, espaço público descuidado, locais onde não se vai...
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Chega a esquecer-se que há lá gente. Famílias inteiras, milhares de pessoas. Centenas de milhares de pessoas. Gente como nós. Apesar de lhe chamarem frequentemente deserto, vive lá mais gente do que nos centros das cidades. Estes, aliás, estão talvez hoje mais desertos, depois das 18 horas e aos fins-de-semana, do que muitos arredores, muito subúrbio.
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Nunca FC resvala na complacência. Ela poderia ter sido muito politicamente correcta e afirmar que ali, no fundo, no fundo, se vive melhor do que na cidade, isto é, nos centros da cidade ou nas suas avenidas. Não é. Este livro não é uma fábula sobre a felicidade da vida suburbana, é apenas o relato da vida suburbana, que tem, à sua maneira, modos de viver a felicidade e a infelicidade.
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Há por vezes a tentação de afirmar que as comunidades periféricas, as comunidades pobres, para não falar das comunidades de minorias étnicas, exibem uma espécie de felicidade ou de bem-estar superior à vida urbana corrente. Há quem torne idílica a vida nesses locais. Mas a Fernanda Câncio não se deixa enganar. O que ela relata, com a sua ideia de normalidade, é a de uma vida difícil, com infelicidade ou mal-estar, mas cujos protagonistas tentam moldar e organizar para uma sobrevivência humanamente aceitável.
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Muitos subúrbios esquálidos de há vinte ou trinta anos são hoje, após a chegada da civilização, vilas e cidades como todas as outras. Talvez não sejam belas de ver e boas de viver. Mas são como as outras. Um parágrafo de FC sobre a Brandoa... (pág. 27).
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FC não esquece a história destas cidades sem nome. O modo como começaram nas décadas de sessenta ou setenta ou mais tarde. E revela como a clandestinidade não é bem clandestinidade. Não é, na maioria dos casos, auto construção. Há projectos. Houve projectos. Houve arquitectos e empreiteiros. Em muitos casos, são clandestinos, mas pagam impostos. São ilegais, mas têm água e electricidade.
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Grande mérito do livro: a autora não tem políticas alternativas, nem formula soluções. Nunca diz “Há que... fazer isto ou aquilo... É só fazer... Há que...”. Ela parece saber que o que há a fazer deve resultar da acção de muita gente, a começar pelas pessoas elas próprias e pelas autarquias. E que o que se deve fazer pode ser muito diferente de bairro para bairro, de cidade para cidade, de situação para situação.
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Nem sequer o lugar-comum mais frequente da política social, a integração. “Isto de integrar não é fácil”, diz ela a pág. 67. Não é, de facto. Nem sequer de definir. Entre a integração e o multiculturalismo. É um dos grandes dilemas da sociedade e da política. Que fazer? Deixar cada grupo étnico e cultural ter a sua vida, os seus códigos de conduto, as suas leis, os seus deuses, as suas línguas, os seus costumes? Ou integrar, fazer com que os estrangeiros, os de fora, assimilem, respeitem, cultivem e pratiquem os valores e os costumes?
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Os bairros públicos que foram feitos para lutar contra a injustiça e acabaram por gerar mais injustiça! (Pág. 62).
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Este livro terá sido escrito em 2003 ou 2004. Foi inicialmente publicado, em 2005, por uma entidade pública, a Comissão de Coordenação Regional de Lisboa. Aparece agora, felizmente para nós, em livraria. A sua actualidade é total. Os problemas da vida nas periferias são hoje ainda mais urgentes do que há cinco anos. As questões envolvendo os bairros sociais ainda mais. Seria bom que as entidades públicas continuassem a proporcionar a realização de estudos deste tipo, independentes, inteligentes, não condescendentes e com um elevado sentido do humano. Mais ainda: seria bom que as entidades públicas os lessem!
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Obrigado Fernanda.
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Lisboa 2008 FNAC, Vasco da Gama, Novembro de 2008