domingo, 29 de junho de 2008

Pão e vinho

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AO DENUNCIAR A CNA E A CAP, o ministro Jaime Silva usou os lugares comuns habituais: acusou-as de defender interesses político-partidários! Uma de extrema-esquerda, outra conservadora. Para um ministro de um governo partidário, não é mau. Depois de levar uns açoites, corrigiu: referia-se aos dirigentes, não às associações. A diferença é, como se vê, radical. A CAP suspendeu a sua presença no conselho de concertação. O Primeiro-ministro acudiu e tomou conta das negociações a fim de conseguir assinar o acordo. Sócrates fez bem, o ministro merecia, aliás há muito tempo, o despedimento. Sócrates fez mal e deu um sinal do que poderá ser no futuro: quem se zangar com os ministros, tem como recompensa uma graduação.
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Jaime Silva é um daqueles ministros que não são políticos; um daqueles políticos de um governo socialista que não são socialistas e que não cumprem um programa partidário, mas sim um programa nacional, sem preferências políticas, sem doutrina, só para bem do país. Ainda há criaturas assim. Julga-se impoluto e pensa que os outros são parvos. Este ministro tem brilhado pela sua dedicação a Bruxelas e às políticas europeias. Vindo de lá, para lá deve voltar, um dia, com a satisfação do dever cumprido. Sabe tanto da política comum que se transformou numa espécie de embaixador da União. O que quer dizer, literalmente, um carrasco da agricultura portuguesa, assim como das pescas e da floresta. Tem motivado a ira crescente dos agricultores e dos pescadores, a quem responde com discursos processuais e incompreensíveis. Paga mal e pouco, atrasa-se e não tem orientações que não sejam as directivas europeias. É mais um na linha de executantes da política comum e que, metodicamente, vem desmantelando grande parte da agricultura, das pescas e da floresta. Faz bem em financiar as grandes empresas agrícolas, as que têm tecnologia, competência e dimensão. Faz muito mal em não olhar pelas centenas de milhares de explorações, de lavradores e suas associações e cooperativas que não têm acesso à técnica e à qualificação. Em vez de pensar que muitos destes poderiam ser formados e preparados para aproveitar os recursos, este ministro, assim como os que o antecederam, prefere arranjar uma maneira doce de os matar, de os retirar da actividade e de abandonar terras, mares, recursos e pessoas. Jaime Silva tem vindo a liquidar as hipóteses de aparecimento de novas gerações de agricultores e pescadores, mais jovens, com formação, melhores qualificações e uma visão empresarial da sua actividade.
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Desde os anos setenta, após o pedido de adesão à Comunidade Europeia, quase todos os governos concordaram em meia dúzia de linhas gerais. Era necessário obter a maior quantidade possível de fundos e ajudas. Era urgente gastar depressa esses subsídios. Como não havia fundos que chegassem, foi preciso escolher. As comunicações, especialmente as auto-estradas, as infra-estruturas em geral, a energia, certos equipamentos colectivos e alguma indústria mereceram o privilégio. Depois vieram certos sectores menos evidentes, a formação profissional (que esteve na origem de tanto desperdício!), a educação, o turismo e a cultura. Assim como os dois grandes “pacotes”, o aeroporto e o TGV. Com o andar do tempo, os apoios europeus foram-se multiplicando e diversificando, sendo cada vez mais claro que o importante era dar a muita gente e que os critérios de utilidade a prazo não eram os principais. Neste quadro, há muito tempo que se percebeu que houve uma troca: a agricultura, a floresta e as pescas pelas auto-estradas e as infra-estruturas. Este era o interesse da União Europeia e dos grandes países parceiros, não o de Portugal.
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É certo que, para a agricultura, vieram muitos milhões. A aplicação dos dispositivos da política comum dava esse resultado. Alguns desses recursos foram bem utilizados por grandes empresas modernas. Muitos foram mal utilizados, apenas com perspectiva de curto prazo, colheita após colheita, de modo errático. Mais ainda serviram para retirar pessoas da actividade agrícola e piscatória: abater barcos, fechar empresas e liquidar explorações. Percebe-se a tentação política. A União Europeia não queria mais produção agrícola, nem florestas, muito menos pesca. Os dirigentes portugueses queriam dinheiro rápido, resultados visíveis e “modernização palpável”. E ficavam perplexos perante a imensa tarefa que representava a mudança da agricultura, da floresta e das pescas, com estruturas obsoletas e populações desqualificadas e idosas distribuídas por centenas de milhares de pequenas e muito pequenas parcelas, explorações e empresas. Estas políticas conduziram ao que temos hoje: uma agricultura impotente, umas pescas insuficientes e em deterioração e uma floresta desordenada e pouco produtiva.
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Importamos a maior parte do que consumimos. Mesmo em certos casos (leite, por exemplo) em que parece termos chegado à auto-suficiência, a verdade é que tal não corresponde à realidade. Com efeito, as nossas produções de carnes, ovos e leites dependem de uma colossal importação de cereais e rações. Hoje, a nossa “balança alimentar” é gravemente deficitária. Daí não viria mal ao mundo, se tivéssemos produtos industriais e serviços para pagar as importações. Mas a verdade é que nos faltam esses produtos que permitiriam equilibrar a balança.
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Temos uma área marítima de fazer inveja. Está globalmente subaproveitada, qualquer que seja o ponto de vista: ecológico, económico, científico, energético, de navegação ou turismo. Sem falar nos portos e na construção naval. Portugal tem uma superfície florestal interessante. Tem a maior área do mundo de montado e é o maior produtor de cortiça, mas não se conhece um esforço proporcional dedicado à investigação e ao melhoramento do sobreiro, da azinheira e do sistema de montado. O mesmo pode ser dito do pinheiro, da oliveira e de outras espécies. Portugal não tem clima para a agricultura tradicional, nem para a agricultura europeia. Mas as condições naturais são favoráveis a certos tipos de cultivo, como sejam a floresta, as culturas arbustivas, as plantações permanentes (a vinha, por exemplo), certas pastagens, os prados sob montado e outras espécies, nomeadamente as que podem beneficiar dos Invernos amenos e das Primaveras temporãs. A hortofruticultura tem também, em certos casos, excelentes condições. Nestas áreas, assim como nas do regadio, da correcção de solos, da vinha, da vinificação, da investigação científica, da formação profissional e do processamento industrial, há espaço e necessidade para investimentos colossais, a longo prazo e muito produtivos, sem danificar o ambiente. O ministro Jaime Silva pensa que não. E outros antes dele. Coitados: limitam-se a dizer o que lhes mandam dizer. Em Bruxelas, por causa da política comum. Em Lisboa, por causa das estradas.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 29 de Junho de 2008
Esta coluna interrompe agora por algumas semanas.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Luz - Espelho de água do rio Douro.

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A imagem é vista da quinta do Crasto, perto de Gouvinhas. À direita, na margem Sul do rio, vê-se parte da quinta de São Luís. À esquerda, à beira do rio, o caminho-de-ferro da linha do Douro. Esta já só está em actividade até ao Pocinho, já não segue para Barca d’Alva, muito menos para Espanha. É uma das mais belas linhas de comboio da Europa. Mas os portugueses têm esta sina: desaproveitam o que de melhor têm! (2007).

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O estado da União

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OS PAÍSES EUROPEUS, sobretudo os grandes e com mais responsabilidades, não podem deixar-se submeter às decisões dos mais pequenos, muito menos aos resultados de um referendo de que resultou uma maioria de escassos milhares de votos. Imaginar que toda a Europa possa ficar condicionada pelos irlandeses é quase uma deficiência intelectual. Tal como imaginar que a União, de carácter federalista, se possa fazer com a unanimidade dos Estados e dos povos. A França e a Alemanha, ajudadas pelos seus clientes e arrastando atrás de si os pequenos países que não se importam de ver aumentar as suas dependências, vão pois tomar as providências necessárias para que a constituição do Tratado de Lisboa seja aprovada. No que serão ajudadas pela enorme, luxuosa e apátrida burocracia europeia. Com ou sem Irlanda. Com ou sem favores prestados e dinheiros dados aos irlandeses. Não podia deixar de ser assim. Só nos contos de fadas é que os gnomos mandam e os anões derrotam os gigantes.
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.. O referendo irlandês teve as suas virtudes. Revelou, uma vez mais, a crise europeia. Exibiu a verdadeira natureza desta União. E mostrou, sem deixar dúvidas, o caminho que esta se prepara para seguir. A reforma das instituições europeias ficará na história como um caso exemplar de esbulho de independências, de esmagamento pacífico de autonomias e de tentativa de destruição de culturas e de carácter. Toda a gente percebeu que a saga da aprovação do Tratado de Lisboa, depois de Maastricht e de Nice, tem como principal objectivo o de retirar poder aos povos e de lhes administrar as soluções das elites esclarecidas. O Tratado foi inventado para retirar aos povos a possibilidade de os discutir e aprovar. O Tratado é incompreensível? A Constituição é absurda? Tanto melhor. São documentos que, justamente, não devem ser compreendidos. E que oferecem explicações úteis para a indiferença crescente dos cidadãos. Votam em eleições e em referendo, dizem os iluminados, por razões nacionais e não por razões europeias! Votam, acrescentam, por causa da crise económica, das desigualdades, dos preços dos combustíveis, das questões laborais e da imigração. Na Irlanda, então, para cúmulo, dizem eles, o “não” foi motivado pelo aborto, pela eutanásia e pelos impostos. Tudo, asseguram, questões locais, paroquiais, nacionais, sem a importância dos reais problemas europeus. Estes argumentos, infantis e destituídos de qualquer inteligência, são repetidos candidamente por todos os servos, sobretudo juristas, da plutocracia europeia. E ninguém, entre essas luminárias, se deu ao trabalho de reflectir nas últimas eleições europeias que deram dois resultados inesquecíveis. Primeiro, uma enorme abstenção. Segundo, o facto de quase todos os que perderam essas eleições foram recompensados, directa e indirectamente, com cargos, responsabilidades e decisões nos actos que se seguiram. Chirac, Schroeder, Tony Blair e Durão Barroso, entre outros, perderam as eleições, mas, pelo jogo do federalismo, moldaram a União que se seguiu! De qualquer modo, ficámos a saber, mais uma vez: para os dirigentes europeus, o emprego, os impostos, a liberdade, a demografia, a família, o sistema de saúde, a educação, a idade de reforma, a legislação laboral e as desigualdades sociais não são questões europeias. Não são problemas relevantes!
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.. A crise, muito séria, é a do desajustamento entre as intenções e as realidades. A do abismo irreversível que se instalou entre os Estados e as classes políticas, por um lado, e os povos e as sociedades, por outro. A do desvirtuamento definitivo do, sempre equívoco, “projecto europeu”, que vai perdendo os valores, que tanto proclamou, da diversidade, da autonomia e da liberdade. A da futilidade dos desejos das elites políticas europeias que pretendem unanimidade e federalismo, homogeneidade e uniformização. A Europa é vaidosa como uma velha gaiteira. E arrogante como um fidalgo falido de smoking coçado. Os seus dirigentes gabam-se do Estado de protecção mais generoso do mundo, da construção política mais original, da cultura mais consistente, das mais belas cidades, da liberdade mais enraizada e da paz mais duradoura. Ano após ano, os mitos vão ruindo. A cultura europeia é americana. O trabalho é imigrado. A produção é chinesa. O capital estrangeiro. A economia frágil. A ciência dependente. A tecnologia subalterna. A impotência manifesta. Os europeus não querem correr riscos, nem tratam da sua defesa. Estão disponíveis para negociar com o diabo. Não têm energia, não possuem forças armadas. Comportam-se como se tivessem um inimigo comum, os Estados Unidos. Não os terroristas, não as ditaduras, mas os Estados Unidos. Os europeus são cada vez mais utilizados por terceiros endinheirados que assim perdem o respeito por tanta cultura, tanta originalidade e tão glorioso passado. Os dinheiros do petróleo, dos armamentos, de todos os tráficos ilícitos e da grande especulação começam a mandar na Europa e a condicionar as suas políticas e a sua diplomacia.
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.. A União vai sair, aparentemente, desta crise. Dentro de um ou dois anos, uma nova engenharia terá sido encontrada. Dentro ou fora, a Irlanda deixará de incomodar. Novas perturbações serão evitadas por novos mecanismos. Alguém virá dizer que a crise está ultrapassada e que a União entrará numa nova era. A mecânica da Comissão, do Conselho e do Parlamento Europeu estará oleada e preparada para funcionar a 27 ou mais. As decisões serão mais fáceis. Evidentemente, sabe-se, haverá alguns problemas. Na economia, na sociedade, no comércio externo, na ciência e na tecnologia. Forças centrífugas em acção. Dificuldades no emprego e no crescimento económico. Problemas sociais e demográficos. Conflitos laborais e desigualdades sociais. Deriva dos sistemas de saúde, educação e segurança. Aumento dos preços da energia e dos alimentos. Certo. Mas são todos problemas locais. Nada disso é europeu. A grande Europa, a grande União passa ao lado disso. Passa ao lado de questões menores.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 22 de Junho de 2008

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Luz-Bairro da Sé, Porto

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É um dos bairros urbanos mais antigos do país. De certas casas se diz que as suas fundações e parte do rés-do-chão datam dos séculos XIII e XIV. São belíssimas construções de granito em ruas estreitas. Há muito que este bairro deveria estar restaurado, arranjado, com as infra-estruturas modernas (esgotos, saneamento, águas, redes eléctricas, etc.) e melhores condições de vida. Alguma coisa foi feita, sobretudo nas partes exteriores do bairro. Mas, no seu miolo, há ainda muito por fazer e nem sempre as condições de vida são boas. Por outro lado, esta parte histórica do Porto (é Património mundial da UNESCO!), sobretudo nas áreas que datam do século XIX (o Porto burguês da Mouzinho da Silveira, da rua Nova dos Ingleses, da praça do Infante, etc.) está em curso de despovoamento e de abandono progressivo. É uma enorme tristeza ver o centro histórico do Porto a degradar-se diante dos nossos olhos! (2006).

Aparências

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MANUELA FERREIRA LEITE foi eleita. Pode prever-se seriedade, estudo, trabalho e responsabilidade. Pouca demagogia, também. O resto não se sabe. Com este modo de eleição directa dos líderes, prática populista e demagógica, tem de se esperar pelo congresso para ver a equipa dirigente e o programa. E para avaliar as reacções dos seus opositores. Logo se verá se Ferreira Leite tem condições para governar o partido. São muito altas as probabilidades de dissidência e cisão. Mas qualquer previsão é, por enquanto, arriscada.
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Não se pode é esquecer que Ferreira Leite não tem assento no Parlamento. O que lhe diminui fortemente a margem de acção. Além disso, os deputados foram eleitos por outra direcção. O que agrava as coisas. Mas esta é uma quase tradição nesta democracia tão pouco parlamentar. Na verdade, é longa a lista de chefes de partido que, durante todo ou parte dos seus mandatos, não tinham cadeira no Parlamento, nem tinham sido previamente eleitos: Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Vitor Constâncio, Jorge Sampaio, Freitas do Amaral e Paulo Portas estiveram nessa situação! O que faz pensar sobre a função e a natureza dos partidos.
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PROSSEGUEM AS GREVES e as manifestações. Funcionários públicos, professores, enfermeiros, pescadores, automobilistas, camionistas... O mal-estar social é evidente. A grande manifestação de Lisboa atingiu uma dimensão surpreendente. Mas o governo despreza manifestações e números. Diz o Primeiro-ministro que só os argumentos lhe interessam, não os números. Coitado! Não sabe que as manifestações e os números são argumentos.
A evolução económica não dá sinais de melhoria. Nem agora, nem a prazo. Sócrates e Pinho continuam a divulgar, todos os dias, as dezenas e centenas e milhares de milhões de euros de investimentos estrangeiros, nacionais e do Estado. Parece que nunca mais acabam. Mas a verdade é que a alegada cornucópia é muito inferior ao necessário. E as obras públicas, necessárias ou inúteis, continuam a ser o principal recurso desta economia frágil e destas políticas económicas de curto prazo.
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AO MESMO TEMPO que se ouvem declarações messiânicas sobre as novas fontes de energia e a poupança de combustíveis, anunciam-se mais auto-estradas, pontes e viadutos. A mão esquerda castiga o automóvel, a mão direita protege e incentiva o automóvel. Prepara-se o fecho definitivo da linha de comboio do Tua, assim como do troço do Pinhão ao Pocinho, na linha do Douro. Mas anuncia-se a construção de um túnel luxuoso e pouco útil sob o Marão, ao preço de perto de 400 milhões de euros. Será, dizem o governo e os construtores concessionários, o maior de Portugal!
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ENTROU FINALMENTE em fase de julgamento o caso de um vendedor de apartamentos de um condomínio na Ajuda, em Lisboa. O queixoso ficou sem o sinal e não aceitou um apartamento que não correspondia às condições contratuais. Nada de anormal, até aqui. Acontece apenas que o julgamento começou 12 anos, digo bem doze anos, depois da ocorrência dos factos. Quantas vezes estes “faits divers”, escondidos num canto de uma página de jornal, são um retrato rigoroso e verdadeiro do país!
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A RTP PROSSEGUE na sua via de renovação e de criação de uma televisão mais popular, mais moderna e mais jovem. Perde audiências, assim como alguns dos seus funcionários e artistas, mas descobre novos valores. A última novidade é um programa intitulado “Telerural”. Passa às terças-feiras, às 21.00, a seguir ao jornal, no melhor horário possível. É mais uma demonstração de populismo grosseiro e de desprezo puro pelas populações e pela decência. O programa pretende parodiar um canal de televisão de um município rural, o “Curral das Moinas”. É ordinário como poucos. Os textos e as graças são de uma boçalidade quase inédita. Reina a obscenidade e a piada grossa. O programa foi feito à imagem, não das populações rurais, mas do pior da RTP. Alegrem-se os optimistas: esta concepção de serviço público teve mais de um milhão de telespectadores!
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PARECE UMA METÁFORA para os tempos que correm. Por iniciativa de japoneses amigos de Portugal, com a ajuda dos respectivos diplomatas, criou-se em Lisboa um “jardim japonês” feito de cerejeiras vindas daquele país. Foi há dois ou três anos. Ali à beira Tejo, junto dos restos da antiga Exposição do Mundo Português, perto de um farol, foi instalado um jardim feito de estranhos mas bonitos montículos de terra semeada de erva. No cimo dos montículos, foram plantadas cerejeiras, árvores especialmente cultivadas no Japão. Cada árvore foi plantada com todo o cuidado, amarrada a uma estaca, regada e tratada. Na altura, fiquei radiante. E tentei antever a beleza que seria aquelas árvores todas em flor! Estava tudo perfeito. A atenção ao pormenor era de rigor. O melhor de Portugal associou-se a este empreendimento: governo, câmara, administração portuária, instituições públicas, as mais importantes fundações do país, as maiores empresas portuguesas e algumas das mais conhecidas empresas japonesas. Há três anos que espero que as árvores cresçam e apareçam as primeiras flores e cerejas. Nada! Nenhuma cresce. De um total de cerca de 400 árvores, só três mostraram meia dúzia de miseráveis folhas ressequidas sem futuro nem desenvolvimento. As restantes estão irremediavelmente secas e mortas! Ou parecem. Fui saber. Quem sabe explicou-me. Primeiro, naquele sítio, com aquelas condições de clima e temperatura, com o sal marinho, a vento e a humidade (e a salsugem), só um milagre faria florir e crescer as cerejeiras. Houve quem alertasse, na altura, mas as opiniões científicas foram consideradas cépticas e ignorantes. Segundo, as plantas, quando chegaram do Japão, estiveram uns meses à espera que a Alfândega as deixasse entrar! É assim! Não se aprende nada!
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«Retrato da Semana» - «Público» de 8 de Junho de 2008

Luz-Azenhas

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As escarpas em cima da estreita praia, à beira Atlântico, perto das Azenhas do Mar. É um dos sítios da costa marítima portuguesa que mais aprecio. (1992).

Luz-Bairro 6 de Maio, Amadora

Este Bairro de 6 de Maio é um dos sítios mais pobres e degradados do país. Não é um bairro da lata, não é um conjunto de “barracas”, como havia ainda há poucos anos. É um bairro de pedra, tijolo e cal, em “duro”. Ali vivem, em maioria, imigrantes africanos. Muitas crianças nasceram já em Portugal. Muitos dos habitantes são ilegais. Há sítios, neste bairro, onde as ruas são tão estreitas que mais parecem corredores dentro de casa, até porque não se vê o céu nem o sol. (2006).

A Europa não é o que era

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PARECE QUE FOI FRASE FEITA inventada no século XIX: “Calma no Brasil, que Angola é nossa!”. Verdade ou mentira, o certo é que sobrou para nós, pelo século XX adentro. Já nem se conhecia a sua verdadeira implicação, mas pronunciava-se a propósito de tudo e nada. Até que foi substituída por outra: “Deixa lá Angola, que a Europa está connosco!”. As ideias são parecidas, mas só em parte. Na verdade, perante a primeira perda, a conclusão era a de um novo esforço dos portugueses, mas noutras paragens. Enquanto, diante da segunda, os portugueses se colocavam numa posição de beneficiários de ajuda e assistência.
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.. Durante uns anos, a Europa esteve connosco. Ou antes, alguns países da Europa, designadamente a Alemanha, que nos salvaram das consequências das nossas tropelias. Até chegar a vez da Europa toda, quer dizer, da Comunidade Europeia. Mais uns anos de fartura, as ajudas vieram. Quase tudo o que vinha da Europa era bom. Dinheiros, mercados, importância, reputação e investimento. E um lugar onde os portugueses se sentiam iguais aos outros, o que parecia afastar velhos traumas e indeléveis complexos.
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.. Nos piores momentos destas últimas décadas, e já houve vários, foi frequente pensar-se que, se não houvesse CEE ou UE, se Portugal não pertencesse ao clube, já teríamos conhecido destinos fatais: a absoluta pobreza, uma profunda recessão, desvalorizações consecutivas, golpes de Estado e novos episódios autoritários. Durante anos, a Europa salvou-nos dos nossos demónios, da irresponsabilidade crónica e da demagogia avassaladora que caracterizou quase todos os governos. Pior ainda, protegeu a nossa preguiça e a nossa incapacidade de organizar e prever. A Europa foi manta quente e abrigo, casa acolhedora para os momentos críticos de transição e adaptação.
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HOJE, A SITUAÇÃO é diferente. Tudo o que corre mal vem da Europa. Da Europa e da globalização. Ou porque as coisas são mesmo assim. Ou porque a covardia dos políticos portugueses é moeda corrente. A agricultura foi quase destruída, por causa da PAC. A frota de pesca abatida, os pescadores reciclados e o pescado apanhado por espanhóis e outros, por causa da Europa. A ASAE bate a torto e a direito, por causa da Europa. Os bancos têm lucros obscenos e os gestores têm vencimentos próprios de outras galáxias, porque as regras europeias são assim e porque o mercado está aberto. Mal suportamos a concorrência dos países de Leste, da China e demais asiáticos, por causa da Europa. O Estado não pode intervir, não tem meios legais e não recorre aos mecanismos habituais de subsídio e protecção, por causa da Europa. Mas o Estado concentrou poderes e decisões, talvez como nunca no passado, graças à Europa. Da Europa, não temos os salários, os preços dos bens de consumo, os horários de trabalho, os subsídios de desemprego, o salário mínimo, as pensões, as reformas e a prontidão dos serviços de saúde. Mas temos o imperativo de eliminar o défice e de apertar o cinto, assim como a obrigatoriedade de abrir os concursos a empresas internacionais. Espanhóis, italianos e franceses sabem proteger as suas economias e dispõem de sofisticados instrumentos de protecção ou promoção, enquanto os portugueses obedecem aos ditames europeus e não descortinam maneira de invocar o interesse nacional. A Europa já foi modelo e ambição. Hoje, para muitos portugueses, é ameaça. Excepto para os que recorrem à emigração, que, para surpresa de muitos, recomeçou como nos anos sessenta.
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POR UMA VEZ, em muito tempo, os portugueses não têm para onde olhar. Brasil, África e Europa pertencem ao passado. Com a particularidade de a Europa e o mundo terem deixado de ser fronteiras e horizontes a explorar e se terem transformado em ameaças e fontes de crise. Por uma vez, em muito tempo, os portugueses têm de contar consigo, só podem mesmo contar consigo próprios. O que, numa sociedade livre e num mundo aberto, é muito mais difícil. Habituados e contar com expedientes e bodes expiatórios e mal educados pela demagogia política, os portugueses comprazem-se em aspirar a muito mais do que podem e têm direito. Consomem mais do que lhes é permitido pelos seus rendimentos. Querem mais do que lhes autoriza a sua produtividade. Devem muito mais do que ganham num ano. Adoptaram os tiques da cultura do êxito, dos vencedores, da gente bonita e da exibição de capa cor-de-rosa. E parece não se importarem com as enormes desigualdades sociais que fazem desta sociedade um pesadelo moral e estético.
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A CRISE ECONÓMICA e social está instalada em Portugal. E bem instalada. Não há sinais de qualquer alívio a curto prazo. Ninguém espera uma melhoria efectiva antes de dois ou três anos. Algumas das causas desta situação vieram de fora. A começar pelos custos dos petróleos e da energia em geral, contra cujos aumentos nem sequer a Europa souber tomar providências a tempo. Mas Portugal já estava mal, muito mal, antes deste terceiro choque do petróleo. Há praticamente oito anos que Portugal vem perdendo, em termos absolutos e relativos. A verdade é que a “nossa” crise é em geral muito superior à dos parceiros europeus. Quer isto dizer que somos os principais culpados. Desperdiçámos anos, recursos e oportunidades. Perdemos com a ditadura e a guerra. Perdemos com a revolução e a contra-revolução. Perdemos também com três décadas de facilidade e demagogia. Assim chegámos ao ponto de perceber que ninguém virá em nosso socorro, que não há mais soluções fáceis e que, de fora, não virá mão redentora. Só de nós próprios virá qualquer remédio. E isto não significa orgulho, nem raça. Muito menos talento ou história. Significa tão simplesmente estudo, persistência e organização. E, sobretudo, trabalho.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 1 de Junho de 2008

Futebol

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IMAGINO QUE UM GRANDE NÚMERO de concidadãos tenha uma ideia clara sobre os problemas do futebol que ocuparam a crónica da semana. Terá ou não havido corrupção de árbitros? Houve coacção com ou sem resultados? Foram efectivamente pagas “luvas”, presentes” e “favores sexuais” e tiveram realmente consequências nos estádios? Houve ou não clubes beneficiados com estes gestos ilícitos? Há provas de actos e de tentativas de corrupção? Depois de ler jornais, ouvido rádio e visto televisão, percebi que quase toda a gente que se exprime sobre o assunto sabe exactamente o que se passou. Confesso que não tenho a mínima ideia. Reparo, todavia, que os campos estão divididos e extremados: conforme a origem, o local de residência, as preferências clubísticas e os círculos sociais, as pessoas dão ou retiram razão à Liga de Clubes, à Federação, aos clubes em concreto e a cada um dos dirigentes e árbitros. Os argumentos de uns e de outros são fortes, plausíveis e simétricos. As denúncias de interferências externas, como a política, os negócios, os clubes rivais e outros interesses merecem igualmente crédito. As acusações feitas a alguns dirigentes de clube, que se consideram intocáveis, são pesadas e credíveis. O argumento de que há perseguições, contra os clubes do Norte, por parte dos interesses de Lisboa, da Federação e da política, tem pés para andar. De qualquer maneira, se vier a demonstrar-se que as provas são sólidas e os castigos justos, podemos quase regozijar-nos com este feito histórico. Quase. Na verdade, o caso deixa gosto amargo. Os processos de justiça, como é habitual, demoraram anos. E, graças aos recursos e apelos, estão longe de acabar. Por outro lado, este vendaval punitivo sobre o futebol e sobre o Porto não esconde o facto de parecer haver várias justiças. Nem os clubes de Lisboa estão sob o mesmo escrutínio. Nem na política e nas actividades económicas se encontra semelhante severidade. O “Apito” dá resultados, mas o “Furacão” fica-se pela estratosfera. E algumas decisões políticas sobre os grandes concursos nem sequer foram examinadas.
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O FUTEBOL CLUBE DO PORTO está a pagar. Começou, há vinte ou trinta anos, por ser um intruso. Apenas tolerado. Depois, transformou-se no clube dominante. O seu perene presidente teve os comportamentos que se lhe conhecem: inteligente, competente, autoritário, organizado, irascível e déspota. Como qualquer cacique político, assentou os pés em terreno sólido: apoio popular, estabilidade da sua organização, bons resultados e uma arrogância dominadora sem quebra. Sem esquecer uma intransigência absoluta e o uso de uma permanente retórica destinada a lembrar, todas as semanas, que o Porto e o seu clube têm inimigos. Ora, não é admissível que um clube da segunda cidade e do Norte provinciano exerça uma hegemonia quase sem falhas. Tarde ou cedo, o Porto haveria de pagar. Ainda por cima, o clube de futebol venceu onde a cidade e a região perderam. A seguir ao 25 de Abril, notou-se um acréscimo do poder político e económico do Porto. Dali vinham os empresários, os exportadores que garantiam a sobrevivência do país, os eleitores que permitiam que a democracia vingasse, a Igreja e a sua reserva moral, as tradições, os grandes caciques locais e as novas iniciativas económicas e empresariais. No Porto, nasciam bancos e grupos económicos. No Norte, trabalhava-se. No Norte, produzia-se. E no Norte cresceu a ideia de que àquela força era necessário acrescentar poder político. Durante uns anos, pareceu que era verdade. Depois, gradualmente, o Norte perdeu. O Porto perdeu. Menos o Futebol Clube do Porto, que ganhou. Até que ponto as vitórias do futebol toldaram o espírito dos seus dirigentes, permitindo-lhes acreditar na sua impunidade e na ideia de que tudo é permitido quando se ganha?
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HÁ ALGUNS MESES, havia um programa que a RTP exibia fora de horas num dos canais de cabo. Creio que era na RTPN. Chamava-se “A Liga dos Últimos”. Para quem não viu, trata-se de um programa especial e insólito: segue e faz reportagem dos clubes de futebol das divisões inferiores e distritais. Em vez das glórias internacionais, das transferências de milhões de contos por jogador, das ligas europeias milionárias e das grandes querelas futebolísticas nacionais, tínhamos o “Portugal profundo” e o “verdadeiro povo” dos domingos. O “conceito” é simples: os pobres e os humildes também têm direito. O futebol não é apenas um desporto de ricos e milionários, de urbanos e classes médias, ou de gente bonita que faz as capas das revistas. Não. O futebol é também do povo. Por isso se mostra o povo. Campos de terra batida, jogadores com quarenta anos e barriga proeminente, clubes carregados de dívidas e destreza desportista mais ou menos nula. Jogos de nenhum interesse e de estética duvidosa. Os desafios desenrolam-se por entre enorme gritaria, piadas da plateia e berraria de toda a gente. Por esse programa passam clubes que nunca ganham um desafio, que estão em vésperas de desistir e que por vezes têm dificuldades em alinhar o número adequado de jogadores. Clubes que vão falir pois não têm dinheiro para pagar os balneários ou a electricidade. Clubes que pertencem à dona de um bar ou ao patrão de uma empresa de mudanças com duas camionetas. Não sei por que carga de água, o programa é hoje de “culto”. Os urbanos gostam e deliciam-se. Dizem-se ali boçalidades cruas. Toda a gente bebe cerveja a mais. Aquelas brincadeiras de bairro ou de aldeia aspiram agora ao momento de glória que lhes é trazido pelo facto de os novos dirigentes da RTP terem passado o programa para a RTP1, às 21.00 horas de sexta-feira. Pega directamente no telejornal, precede o concurso diário. Continuam as graçolas brejeiras de mau gosto. Os palavrões disfarçados. As ordinarices mais rascas. Reina o machismo mais soez que se pode imaginar. Muita gente é filmada deliberadamente para parecer “feia, porca e má”.
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Poderia pensar-se que o programa faz parte da nova “grelha” da RTP, da sua estratégia e das suas novas concepções que preconizam uma televisão popular e divertida, em poucas palavras, uma “televisão para todos”, um “verdadeiro serviço público”. O que resulta é, além de paradoxal, confrangedor. Não apenas intelectualmente, mas sobretudo social e moralmente. É uma hora de autêntico desprezo social pelos aldeões, pelos provincianos, pelos pobres, pelos gordos, pelos mais velhos, pelos ignorantes e pelos analfabetos. Que, aliás, se oferecem em espectáculo de escárnio. É uma espécie de “racismo social”: coitados, tão estúpidos, mas praticam futebol! São tão puros! Tão autênticos!
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«Retrato da Semana» - «Público» de 11 Mai 08

A arte da irrelevância

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“BOA NOITE, ZÉ”. Este “Zé” também pode ser Manuel, Clara, António, Ana, Júlio, Judite, Rodrigo ou Alberta... É a maneira como os “enviados” ou “correspondentes” dos serviços de informação das televisões entram “em directo” nos boletins noticiosos. Dirigem-se directamente ao locutor de serviço e esforçam-se por dar à notícia um ar simultaneamente familiar, informal e tenso. Qualquer dos canais serve de exemplo. Começou por ser uma moda, acabou por se transformar num padrão. Os canais de televisão amam os directos. Dá mais proximidade. É mais instantâneo. É mais genuíno. Desastre ou festa, conferência de imprensa ou surto de meningite, tempestade ou atentado terrorista: desde que possível, o enviado ou correspondente faz um directo. Quando calha, há mesmo diálogo com o “pivot” do telejornal. Frequentemente, segue-se (ou antecede) “uma peça” previamente gravada, sobre o mesmo assunto, pelo mesmo enviado, não sendo aliás certo que haja diferenças ou evolução entre “a peça” e “o directo”. No meio das notícias, em “directo real” ou “directo gravado”, aí vem o correspondente no Líbano, em Timor Leste ou na praia da Luz... Chegam a fazer-se “directos” para que o correspondente, depois de repetir o “Boa noite Zé”, afirme que “ainda” não se sabe o que aconteceu...
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Os “directos” são, em geral, de má qualidade. Os melhores profissionais tentam fazer trabalho decente, mas a maioria traz o que tem ou lhe encomendam: emoções, sensação de ineditismo e a certeza de que “está em cima do acontecimento”. Mas, naturalmente, gaguejam, hesitam e exprimem-se mal. Pedem licença para interromper pessoas que estão a fazer o seu trabalho ou que fazem a sua vida e disparam perguntas. As respostas são, em maioria, irrelevantes, nada adiantam à notícia ou ao esclarecimento. Há alguns meses, quando a tensão ia alta com o caso da menina inglesa desaparecida, chegámos a ouvir uma “enviada” dizer, em directo pois claro, que nesse dia não tinha acontecido nada e que a “monotonia” só tinha sido quebrada por um grupo de “motards” que viera mostrar a sua solidariedade. Quase todos os dias vemos “directos” deste género: ainda não se sabem os resultados, as pessoas por quem se espera ainda não chegaram, o julgamento ainda não acabou ou o senhor que está a ser interrogado pela polícia ainda não saiu.
Muitos dos enviados tentam mostrar, pela transpiração, pelos trajes ou pelo ambiente em redor, que estão em situação escaldante: se forem ouvidos choros, gritos, tiros ou explosões, tanto melhor. Quando se trata de conferências de imprensa, em especial feitas por políticos, mas os gestores também começam a aprender, o “directo” marca as horas, as pessoas submetem-se aos ditames do “enviado” e da estação de televisão. Após algumas frases ditas pelo interessado, o “enviado” retoma o microfone e faz um resumo do que já se ouviu. Ouve-se este por cima do conferencista. Quem está na sala deve aliás ouvir os dois, quantas vezes o repórter mais alto do que o conferencista.
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Os “casos dramáticos” e as “tragédias humanas” são os preferidos. Suicídio, crime passional, acidente de automóvel, rapto de criança, assalto a banco ou desastre natural são momentos excelentes para os “directos”. Mas um caso de tifo numa aldeia, uma intoxicação alimentar, mesmo benigna, numa escola ou um incêndio de pneus velhos num pardieiro também vêm a jeito. Os boletins de notícias tentam começar sempre por aí. Só depois surgem as notícias de interesse geral, os factos políticos, o desporto e, eventualmente, as notícias internacionais. Durante o boletim, quando é possível, a anteceder ou suceder ao espaço publicitário, entram novos casos humanos, aliás, prévia e repetidamente anunciados com tons de sensação. Como os serviços noticiosos duram uma hora na RTP e mais ainda nos outros canais, é necessário encher, “meter chouriços” como se diz no meio, entrevistar espontâneos, ouvir o povo e pôr emoções no ar. Todos nos lembramos do desastre de Castelo de Paiva que foi o momento crucial de fundação do novo estilo, que já rondava pelas televisões, mas que ainda não tinha o estatuto de pérola profissional. Foi nessa altura que vimos “enviados” a tentar fazer chorar parentes das vítimas ou simples testemunhas e quase agredi-los de microfone em riste. Esta última semana em que todos os canais comemoraram (é o caso de dizer...) o primeiro aniversário do desaparecimento da criança da praia da Luz, uma coincidência pôs logo em agitação as redacções: uma menina de Valpaços teria desaparecido em Matosinhos. As “brigadas” do “directo” apresentaram-se logo ao serviço. Para sua infelicidade, a menina apareceu pouco tempo depois. Foi uma frustração!
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Os serviços de notícias dos três canais ditos “generalistas”, sem excepção, são cada vez mais divertimento e espectáculo e cada vez menos informação. Desapareceram os comentários inteligentes e informados. Foram-se os especialistas que podem ajudar a compreender. Acabou o recurso a documentação e arquivo que permita colocar os factos em contexto e percebê-los melhor. A explicação serena e fundamentada foi abolida. As notícias internacionais, quando há, foram resumidas a rumores e resumos incompreensíveis, a não ser que se trate de terrorismo, pedofilia ou grande desastre. As notícias deixaram de ter o tempo necessário de reflexão. Os jornalistas fazem cada vez menos a “edição” das “peças”, das imagens e das reportagens dos “enviados” e “metem os brutos”, isto é, põem no ar as sequências em bruto, tal como chegaram dos “enviados” ou das agências.
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O “directo” é o maior incentivo à preguiça que se conhece. Dispensa trabalho e reflexão. Não precisa de inteligência ou estudo. É o que existe de melhor como veículo de emoções, até de histerismo. É finalmente o factor de mutação da notícia em espectáculo. É a autorização para não pensar nem investigar. É a troca deliberada, feita pelos editores e pelos jornalistas, de reflexão, do estudo, da investigação e da edição, todo este trabalho que deveriam ser os pergaminhos do jornalismo, pela aparência do imediato, do espectáculo, da concorrência entre canais e do despacho. É o reino das emoções em directo, o contrário mesmo do que deveria ser o bom jornalismo. O “directo” não é a causa primeira, mas é o instrumento de degradação da televisão. É, sobretudo, a destruição da informação e da inteligência.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 4 Mai 08

Luz - Auto-estrada Felgueiras

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Esta auto-estrada está a ser construída em cima das vinhas e das couves, perto de Felgueiras, no Minho. Serve de metáfora para o nosso país. A “modernidade” vai-se construindo em cima da tradição. Por um tempo, coexistem as duas. Será sempre assim? Por vezes, não. Também pode acontecer que as coisas evoluam gradualmente, sem estes saltos bruscos em que Portugal se especializou. Muitas vezes, a sobreposição do moderno e do antigo faz-se com violência, com desprezo pelo património, pelas actividades primárias (agricultura, floresta e pescas) e pelas “fontes da vida”, o ar e a água. (2006).

Luz - Bisca

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A zona do Molhe, na Foz do Douro, é um dos sítios que mais gosto de frequentar. Em qualquer altura do ano, em todas as estações, com calor ou frio, sol ou chuva. É um sítio único! Quase mágico. Tanto pela geografia e pela natureza, como pelas pessoas, as casas, os cafés. Infelizmente, nos últimos anos, tem-se vindo a desenvolver as construções comerciais totalmente incaracterísticas (gelados, pizzas, cervejas...), “modernas” no mau sentido, feias e atrevidas, demasiado perto da areia e das rochas da praia. (1997).

Margem esquerda do Douro

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Na margem esquerda do Douro, velhos socalcos com ciprestes. Por razões óbvias, há poucas árvores na região. A vinha afastou quase tudo. Nos terrenos mais altos podem ver-se mais árvores. Nas encostas onde reina a vinha, as espécies mais frequentes são as oliveiras que estão plantadas em mortórios ou a fazer as bordas das vinhas e das quintas. Outras árvores presentes, conforme os locais: sobreiros, carrascos, azinheiras, amendoeiras, laranjeiras e figueiras. Como no Mediterrâneo. De vez em quando, plantados por gente que queria decorar um pouco estes sítios, vêem-se ciprestes (no Douro chamam-lhes aciprestes) e eucaliptos. (2007).

Luz - Colombo

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Eis a nova catedral. A do consumo. Com deuses pagãos, Neptuno ao centro, ladeado de golfinhos, os novos anjos. As pessoas deslocam-se em todas as direcções, para os lados, para cima, para baixo. Querem comprar. (2006).

Esta foi a semana

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ESTA FOI A SEMANA em que foi ratificado o novo Tratado da União Europeia, vulgo Tratado de Lisboa, alcunhas da Constituição Europeia. A aprovação, no Parlamento, foi triste e sorumbática. Quase clandestina. A cerimónia foi recheada de banalidades. Um viveiro de lugares-comuns. Esta ratificação, a que falta a promulgação pelo Presidente da República, substituiu o referendo nacional (e os outros referendos nacionais) que os governos europeus tudo fizeram por afastar e proibir. Referendo esse que o governo de José Sócrates tinha prometido realizar. Desapareceram a discussão e o debate sobre a Europa e a sua União. Desapareceram o entusiasmo e o interesse. Em toda a Europa, o debate sobre estes temas, cruciais, transformou-se numa cacofonia burocrática. De “furtiva”, como lhe chamavam os pais fundadores, a “construção europeia” tornou-se velhaca. A União Europeia assume de modo crescente a sua característica de Europa dos Estados contra os povos. Esta é uma atitude concertada e deliberada dos dirigentes europeus. Apesar disso, ou por causa disso mesmo, estes são depois férteis em queixumes sobre a falta de participação dos povos e, sobretudo, dos jovens. Criaram o silêncio e chamaram-lhe paz!
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ESTA FOI A SEMANA em que se fez, mais uma vez, a comemoração oficial do 25 de Abril. Na Assembleia da República. Com intermináveis discursos, geralmente bacocos. Tentando fugir à banalidade, o Presidente da República trouxe uma sondagem sobre a participação política da juventude. Parece ter ficado genuinamente surpreendido com o estado em que se encontram as mentes juvenis. Mais que o desinteresse pela política, o que realmente choca é a incultura dos jovens inquiridos, em grande parte estudantes. Como em quase tudo na vida portuguesa, todos se voltam para as soluções milagrosas. Quase todos pensam que, com o ensino da História e uma disciplina de “educação cívica”, se resolveria o problema. Para alguns, a resposta é ainda mais simples: uma versão “correcta” do 25 de Abril nos manuais de História bastaria! “O problema é da educação”, dizem uns. “A comunicação social tem um papel muito importante a desempenhar”, acrescentam outros. “O problema é das mentalidades”, concluem ainda outros. Há décadas que se ouve isto. A propósito de tudo, do civismo, do ambiente, das desigualdades, da educação, da justiça, dos graffiti nas paredes e dos acidentes de viação. Não se aprende nada!
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ESTA FOI A SEMANA em que as lutas no PSD atingiram a cor e a temperatura do ferro em brasa. A fazer lembrar a família Adams, mas com menos ternura e graça. Ou será a família Soprano, noutro ramo de negócios? Nunca, em mais de trinta anos, o debate dentro de um partido atingiu um tão baixo nível de educação e inteligência. Eles próprios se tratam de barões e baronetes, caciques, incompetentes, demagogos, oportunistas e suicidas. Não se consegue perceber o que politicamente os divide. A protecção social? A empresa privada? O mercado? A justiça? A educação? A saúde? A defesa nacional? Ninguém diz ao que vem. Ninguém anuncia programas e estratégias. Uns desgrenhados, outros arrumados. Uns bem-falantes, outros a vociferar. Uns básicos, outros sofisticados. Parecem bandos à solta, grupos esfomeados à procura de poder e poleiro. É possível que a luta entre famílias do PSD venha ajudar Sócrates e os socialistas. Mas esse é o menor dos males. Grave é o mal que faz ao país.
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ESTA FOI A SEMANA em que o governo aprovou a sua proposta de revisão do Código de Trabalho, que entra agora em fase de negociação com os sindicatos e os patrões. É uma proposta razoável e moderada, feita pelo mais competente dos ministros do actual governo, Vieira da Silva. Insuficiente, em muitos aspectos. Apesar da redução dos prazos, ainda mantém um ano de processo judicial para resolver um litígio por despedimento. Inventa bonificações para os empresários que reduzam os recibos verdes e aumentem os contratos sem termo, criando assim mais regimes especiais, uma das pragas do sistema em que vivemos. Cria ou desenvolve uma cláusula de “inadaptação tecnológica” cujo principal valor é o da ambiguidade. Insiste em procedimentos burocráticos, a fazer cumprir pelos empresários, que tornam tudo mais difícil. E não obriga o Estado aos mesmos deveres que os privados. Mas o projecto melhora em vários aspectos: na segurança e na flexibilidade. Aumenta as possibilidades de uma empresa e os seus trabalhadores arranjarem sistemas próprios, como sejam os bancos de horas ou os créditos de tempo. Faz caducar contratos colectivos obsoletos. Dá mais liberdade às negociações bilaterais entre trabalhadores e empresas. O projecto é socialmente equilibrado, mas não será por causa disto que o investimento e o emprego aumentarão. Até porque, nos últimos anos, têm sido justamente os empregos a recibo verde que têm sido responsáveis pela maior criação de emprego.
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ESTA FOI A SEMANA em que, mais uma vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado português e os seus tribunais por terem considerado um jornalista culpado de comportamento impróprio e ilegal. O jornalista Eduardo Dâmaso teria infringido a lei do segredo de justiça. O Tribunal Europeu considerou, novamente, que os tribunais portugueses têm uma concepção limitada das liberdades de imprensa e de expressão e uma noção restrita do interesse público.
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ESTA FOI A SEMANA em que a flor dos jacarandás voltou à cidade! Os primeiros a florescer, tímidos, apareceram no Rato (mão amiga me levou lá!), em Belém e na Av. D. Carlos I. Mesmo previsíveis, as rotinas e as repetições têm destas coisas. Umas, como as comemorações oficiais do 25 de Abril, são cada vez mais maçadoras e destituídas de sentido. Outras, como a floração anual dos jacarandás, anunciam, com alegria, o eterno recomeço.
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Correcção: Há duas semanas, citei, nesta coluna, uma carta atribuída ao antigo Alto-comissário em Angola, Rosa Coutinho. Esse documento fora reproduzido em fac-símile num livro de Américo Botelho editado em Lisboa em 2007, “Holocausto em Angola”. Desde então, que eu soubesse, a sua autenticidade não tinha sido posta em causa. O Almirante Rosa Coutinho acaba de negar, na revista “Visão”, a autoria de tal carta. Lamento ter utilizado como argumento esse documento apócrifo. As minhas desculpas ao senhor Almirante e aos leitores.
«Retrato da Semana» - «Público» de 27 Abr 08

Luz - Chelas

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Na zona de Chelas, há de tudo. Edifícios degradados, casas bonitas, prédios mal construídos, locais promíscuos, agitação nocturna, tráfegos estranhos, imigrantes, portugueses da província, terras baldias, bares da noite, famílias sossegadas, violência, comunidade de vizinhança, marginais e conflitos... (2006).

Luz - Socalcos do Douro


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Além de olivais em mortórios, há sobretudo socalcos modernos, com dois “bardos” por patamar, devidamente separados para se poder utilizar o tractor. (2007).

Os inimigos da democracia

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TODA A GENTE SABE que os desejos, as intenções, os projectos e a realidade são coisas diferentes. E mutáveis. Por isso é difícil prever o que vai acontecer ao PSD se nos basearmos exclusivamente nas frases ditas por L. F. Menezes. Ou mesmo por qualquer outro participante neste enredo. O que podemos saber, analisando os factos, é que Menezes decidiu jogar as cartas todas e repetiu o que muitos dirigentes políticos, desde a antiguidade, fizeram: baralhou os cálculos dos adversários, surpreendeu-os e demitiu-se. Por cálculo? Desespero? Táctica? Desistência? É o que verá depois. Mas sabemos mais. Marcou eleição para cinco semanas depois. Garantiu e repetiu que não era candidato. Prometeu prosseguir, durante um mês, as iniciativas partidárias que tinha encomendado, sobretudo as visitas às bases. Desprezou uns candidatos perigosos de que não gosta especialmente (Marcelo Rebelo de Sousa e Aguiar Branco), não se referiu ao seu inimigo mais querido (Santana Lopes), desafiou os que considera mais perigosos (Manuela Ferreira Leite e António Borges), ignorou o que mais detesta (Rui Rio) e foi condescendente com o mais júnior e que ele pensa poder influenciar (Passos Coelho). E ameaçou: vai, em contacto com as bases, ficar atento ao que se passa e vigiar o que os outros fazem.
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UM MINUTO APÓS O ANÚNCIO das suas decisões, a especulação começou. Quer ou não voltar? Deseja ou não uma “vaga de fundo”? É um truque ou é sincero? Acontece que pode ser tudo, dissimulação e sinceridade. Como pode ser as duas coisas: quer ir-se embora e quer regressar. Além de que a verdade pode mudar com os dias. E a sinceridade com as horas. O que mais importa, se é que o problema importa realmente, é que os dados objectivos têm uma interpretação difícil de contestar. Menezes quer condicionar o futuro imediato do partido, seja com ele de novo a presidente, seja com ele a prosseguir na sua vocação primordial, a de “troublemaker”, disfarçado de provedor das bases.
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É PENA QUE ASSIM SEJA. O PSD é um dos pilares do Estado democrático português. Como tem sido o mais interessante partido existente depois de 1974. Faz a ponte entre o rural, o industrial e os serviços. Está tão bem enraizado na Administração Pública como na empresa privada e na sociedade civil. Navega facilmente entre a capital, a província e as regiões. Congrega, como nenhum outro, ricos, remediados e pobres. Acolhe catedráticos e analfabetos. Federou uma extraordinária colecção de notáveis, “barões”, caciques e chefes de claque. Conservador na doutrina, é capaz de grandes movimentos de inovação e de inconformismo. Já mostrou elevada competência no governo e muita habilidade na oposição. Ora, tudo isto se tem vindo a perder desde há três ou quatro anos. E agora a perda parece irremediável. Depois das próximas eleições, qualquer que seja o vencedor, este partido vai fatalmente romper com estas tradições e muita gente vai romper com ele ou ser forçada a isso. O PSD já teve poder, ideias atraentes, um programa necessário, uma aliança entre povo, classe média e elites, muita energia e alguma racionalidade. Com Barroso, Santana, Mendes e Menezes, o partido fez como as famílias fidalgas: desbaratou o capital. Não tem nada. A não ser saudades, sede e fome. De poder.
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MENEZES DERROTOU-SE A SI PRÓPRIO como quase ninguém conseguiu derrotar outrem. Sem apelo, sem remédio, sem misericórdia. E sobretudo sem saber o que estava a fazer. Mostrou que também nos partidos, não apenas nos governos e nos parlamentos, os seus dirigentes caem por si, muitas vezes nem precisam que alguém os derrube. Não mostrou competência. Fez-se de vítima. Acusou os seus correligionários de perseguição e cinismo, coisas que nunca lha faltaram quando era oposição dentro do partido. Deixou-se influenciar por aqueles assessores, vampiros por procuração, que pedem aos seus príncipes sangue e guerra, mas que são eles próprios incapazes de um gesto de carácter. Usou a demagogia sem contenção. Inventou e cultivou inimigos, pois julgou que era essa a força de um político. Não mostrou ter qualidades de líder ou de homem de Estado capaz de destroçar aquela que é a maior fonte de conspiração e de intriga do país, o PSD. Fez como os maus estudantes: espalhou-se ao comprido. E como eles reagiu: acusou os outros.
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É UMA VELHA TEORIA, tão velha quanto falsa: os inimigos da democracia (e da liberdade republicana, como alguns gostam de dizer) são os fascistas, os comunistas, várias espécies de extremistas, os fundamentalistas religiosos, os plutocratas, os monárquicos, às vezes os capitalistas, eventualmente os sindicatos e quase sempre os anarquistas. Por outras palavras, os inimigos da democracia são os que estão fora da democracia. Os que não participam directamente, os que não beneficiam do sistema e os que querem sobrepor os interesses próprios ao “bem comum” ou à sociedade aberta e plural. Portugal, durante as últimas décadas (e quem sabe se nas primeiras do século XX), é uma demonstração interessante da falsidade desta “tese”. Se excluirmos as tentativas de alguns militares e do PCP, nos anos da revolução de 1974 e 1975, quem ameaçou a democracia foram sempre os democratas. Por incurável demagogia. Por má gestão. Por incapacidade de decisão. Por adiamento de reformas e iniciativas. Por sobreposição dos interesses partidários e pessoais aos problemas do país. Por lutas intestinas inúteis e perniciosas. Por desmedida ambição de algumas pessoas. Por um grosseiro partidarismo. Por uma irreprimível vaidade de alguns dirigentes. Pela complacência perante a corrupção, a fraude, a irregularidade e o expediente. A derrota de Menezes, em si, é um facto menor da vida portuguesa. As perturbações do PSD já nem surpreendem. Mas o mal que estes episódios fazem à política nacional e à democracia é grave. Os partidos e a vida democrática devem estar, em Portugal, no mais baixo do apreço público. Descrença, desconfiança e desprezo são sentimentos que não faltam na população. Se quiserem encontrar os verdadeiros inimigos da democracia, não é preciso ir procurar muito longe: basta começar pelos partidos e pelos políticos democráticos.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 20 Abr 08

‘Angola é nossa!'

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SÓ HOJE ME CHEGOU ÀS MÃOS um livro editado em 2007, “Holocausto em Angola”, da autoria de Américo Cardoso Botelho (Edições Vega). O subtítulo diz: “Memórias de entre o cárcere e o cemitério”. O livro é surpreendente. Chocante. Para mim, foi. E creio que o será para toda a gente, mesmo os que “já sabiam”. Só o não será para os que sempre souberam tudo. O autor foi funcionário da Diamang, tendo chegado a Angola a 9 de Novembro de 1975, dois dias antes da proclamação da independência pelo MPLA. Passou três anos na cadeia, entre 1977 e 1980. Nunca foi julgado ou condenado. Aproveitou o papel dos maços de tabaco para tomar notas e escrever as memórias, que agora edita. Não é um livro de história, nem de análise política. É um testemunho. Ele viu tudo, soube de tudo. O que ali se lê é repugnante. Os assassínios, as prisões e a tortura que se praticaram até à independência, com a conivência, a cumplicidade, a ajuda e o incitamento das autoridades portuguesas. E os massacres, as torturas, as exacções e os assassinatos que se cometeram após a independência e que antecederam a guerra civil que viria a durar mais de vinte anos, fazendo centenas de milhares de mortos. O livro, de extensas 600 páginas, não pode ser resumido. Mas sobre ele algo se pode dizer.
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O HORROR EM ANGOLA começou ainda durante a presença portuguesa. Em 1975, meses antes da independência, já se faziam “julgamentos populares”, perante a passividade das autoridades. Num caso relatado pelo autor, eram milhares os espectadores reunidos num estádio de futebol. Sete pessoas foram acusadas de crimes e traições, sumariamente julgadas, condenadas e executadas a tiro diante de toda a gente. As forças militares portuguesas e os serviços de ordem e segurança estavam ausentes. Ou presentes como espectadores.
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A IMPOTÊNCIA OU A PASSIVIDADE cúmplice são uma coisa. A acção deliberada, outra. O que fizeram as autoridades portuguesas durante a transição foi crime de traição e crime contra a humanidade. O livro revela os actos do Alto-Comissário Almirante Rosa Coutinho, o modo como serviu o MPLA, tudo fez para derrotar os outros movimentos e se aliou explicitamente ao PCP, à União Soviética e a Cuba. Terá sido mesmo um dos autores dos planos de intervenção, em Angola, de dezenas de milhares de militares cubanos e de quantidades imensas de armamento soviético. O livro publica, em fac-simile, uma carta do Alto-Comissário (em papel timbrado do antigo gabinete do Governador-geral) dirigida, em Dezembro de 1974, ao então Presidente do MPLA, Agostinho Neto, futuro presidente da República. Diz ele: “ Após a última reunião secreta que tivemos com os camaradas do PCP, resolvemos aconselhar-vos a dar execução imediata à segunda fase do plano. Não dizia Fanon que o complexo de inferioridade só se vence matando o colonizador? Camarada Agostinho Neto, dá, por isso, instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando e incendiando, a fim de provocar a sua debandada de Angola. Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os mais corajosos. Tão arreigados estão à terra esses cães exploradores brancos que só o terror os fará fugir. A FNLA e a UNITA deixarão assim de contar com o apoio dos brancos, de seus capitais e da sua experiência militar. Desenraízem-nos de tal maneira que com a queda dos brancos se arruíne toda a estrutura capitalista e se possa instaurar a nova sociedade socialista ou pelo menos se dificulte a reconstrução daquela”.
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ESTES GESTOS DAS AUTORIDADES portuguesas deixaram semente. Anos depois, aquando dos golpes e contragolpes de 27 de Maio de 1977 (em que foram assassinados e executados sem julgamento milhares de pessoas, entre os quais os mais conhecidos Nito Alves e a portuguesa e comunista Sita Vales), alguns portugueses encontravam-se ameaçados. Um deles era Manuel Ennes Ferreira, economista e professor. Tendo-lhe sido assegurada, pelas autoridades portuguesas, a protecção de que tanto necessitava, dirigiu-se à Embaixada de Portugal em Luanda. Aqui, foi informado de que o Vice-cônsul tinha acabado de falar com o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Estaria assim garantido um contacto com o Presidente da República. Tudo parecia em ordem. Pouco depois, foi conduzido de carro à Presidência da República, de onde transitou directamente para a cadeia, na qual foi interrogado e torturado vezes sem fim. Américo Botelho conheceu-o na prisão e viu o estado em que se encontrava cada vez que era interrogado.
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MUITOS DOS RESPONSÁVEIS pelos interrogatórios, pela tortura e pelos massacres angolanos foram, por sua vez, torturados e assassinados. Muitos outros estão hoje vivos e ocupam cargos importantes. Os seus nomes aparecem frequentemente citados, tanto lá como cá. Eles são políticos democráticos aceites pela comunidade internacional. Gestores de grandes empresas com investimentos crescentes em Portugal. Escritores e intelectuais que se passeiam no Chiado e recebem prémios de consagração pelos seus contributos para a cultura lusófona. Este livro é, em certo sentido, desmoralizador. Confirma o que se sabia: que a esquerda perdoa o terror, desde que cometido em seu nome. Que a esquerda é capaz de tudo, da tortura e do assassinato, desde que ao serviço do seu poder. Que a direita perdoa tudo, desde que ganhe alguma coisa com isso. Que a direita esquece tudo, desde que os negócios floresçam. A esquerda e a direita portuguesas têm, em Angola, o seu retrato. Os portugueses, banqueiros e comerciantes, ministros e gestores, comunistas e democratas, correm hoje a Angola, onde aliás se cruzam com a melhor sociedade americana, chinesa ou francesa.
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PARA OS PORTUGUESES, para a esquerda e para a direita, Angola sempre foi especial. Para os que dela aproveitaram e para os que lá julgavam ser possível a sociedade sem classes e os amanhãs que cantam. Para os que lá estiveram, para os que esperavam lá ir, para os que querem lá fazer negócios e para os que imaginam que lá seja possível salvar a alma e a humanidade. Hoje, afirmado o poder em Angola e garantida a extracção de petróleo e o comércio de tudo, dos diamantes às obras públicas, todos, esquerdas e direitas, militantes e exploradores, retomaram os seus amores por Angola e preparam-se para abrir novas vias e grandes futuros. Angola é nossa! E nós? Somos de quem?
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«Retrato da Semana» - «Público de 13 Abr 08

'Software'

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MAIS UMA VEZ, a segunda ou terceira este ano, é anunciada a construção da ponte entre Chelas e o Barreiro. Vem juntar-se aos anúncios do aeroporto de Alcochete e do TGV, das Plataformas Tecnológicas, de uma mão cheia de grandes hospitais e de mais um pacote de auto-estradas. O progresso material avança. Entretanto, ficaram para trás, entre outros, o Choque Tecnológico, as Novas Oportunidades e as Unidades de Saúde Familiar. Assim como, de acordo com a OCDE, o Ensino Superior. Anúncio que encheu o governo de orgulho, com alguma razão, foi o do défice a 2,6 por cento, o mais baixo em décadas. Foi tão auspicioso, que serviu para esconder o fiasco do programa de diminuição de funcionários públicos, substituído agora por novo regime de reformas do Estado, favorável para os que querem sair mais cedo, contrariando assim o que tinha sido aprovado há menos de dois anos. Mas é verdade que o baixo défice, obtido, sem dúvida, a altos preços sociais, é um sinal positivo. Talvez o único, ou o principal, que este governo nos deu. Não chega para diminuir impostos, nem para acelerar o investimento público, muito menos para aumentar vencimentos e benefícios sociais. Mas é um princípio. Se continuar a descer, se baixar para zero por cento dentro de dois anos, se traduzir constância nas políticas financeiras e económicas e se for o resultado de uma severidade sem demagogia, é caso para dizer que melhores tempos vêm aí. Um país e um Estado sem ou com poucas dívidas são condições de progresso. A estabilidade financeira e fiscal é uma protecção aos rendimentos das famílias e um factor de promoção do investimento.
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ESTE RESULTADO é, uma vez mais, uma boa notícia. Mas não autoriza o governo a preparar as suas festas eleitorais, como já deu mostras de ser sua intenção com a redução de um por cento do IVA, medida dispendiosa para os agentes económicos, eventualmente inútil e seguramente perturbadora. Nesse sentido, pois que já entrámos em campanha que vai durar mais de um ano, todos os receios são fundados e legítimos. As últimas décadas deram numerosas lições que se não deveriam esquecer. Mal um governo obtém um indicador favorável (na inflação, no défice, no crescimento do PIB, na balança comercial) envolve-se de imediato em políticas demagógicas de aumentos, benefícios e facilidades. Em três décadas, nunca se conseguiu um período de cinco anos de crescimento, de estabilidade e de moderação. Para este desaire, houve, por vezes, causas externas, mas a maior parte delas foi por má gestão política e por demagogia eleitoral.
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HOJE, QUASE TODOS os indicadores importantes são desfavoráveis. Além da crise europeia e americana que se desenha, assim como da alta dos preços dos alimentos, das matérias-primas e do petróleo, há sinais mais que suficientes para inquietação. O investimento, tanto interno como externo, caiu muito e os poucos novos projectos que o governo anuncia com estrondo não chegam sequer para compensar as unidades que fecham, reduzem operações ou se “deslocalizam”. O desemprego persiste a níveis exagerados. E a perda real de rendimento de muitas famílias mantém-se. Perante isto, já se percebeu a intenção fundamental do governo: fazer obras públicas. Grandes projectos e grandes empreendimentos. Como, há tempos, dizia Miguel Beleza, o que o governo quer é gastar. Gastar muito, gastar depressa, gastar o mais possível. Se a obra for cara, melhor ainda. Se a obra não for a melhor, a mais adequada, a mais útil, é indiferente. O que é preciso é gastar e, por arrasto, criar emprego. O que é necessário é trabalhar para a estatística. Nas obras, tanto como na educação ou na saúde.
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PORTUGAL CONTINUA atrasado. Não se deve evidentemente confundir atraso com estagnação ou ausência de mudança. Não. Portugal mudou muito. Esquecemo-nos é que os outros também e, agora, mais depressa. E nem queremos saber que os outros estão a mudar melhor. Nos países de Leste, por exemplo, a educação, o património e a vida nas cidades fazem a inveja dos portugueses. Estamos seguramente menos atrasados, relativamente aos países desenvolvidos, do que há quarenta anos. Mas entrámos, desde o princípio do século, num período de atraso crescente. O progresso da civilização material, regra primeira da governação portuguesa, é feito à custa do Estado e das obras públicas. É tudo o que parece fácil. Assina-se o cheque e pronto, já está. O construtor faz a obra, o ministro inaugura. A instrução fica para trás, a cultura também. A formação técnica e profissional é medíocre. O investimento das pequenas e médias empresas definha. O património degrada-se, as ruas das cidades igualmente. Perde-se a floresta e a água. A ciência avança ao retardador. Nas grandes metrópoles, a vida continua esquálida e desconfortável. A circulação automóvel agrava-se e o tempo perdido é cada vez maior. Mas faz-se obra. Constrói-se. É preciso dar nas vistas. Gastar o que custou a poupar. Dar emprego depressa, mesmo se mal e precariamente. Gastar o que vem da Europa. Fazer obra pesada.
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HÁ QUEM DIGA que o que faz falta é o software. Isto é, inteligência política, sensibilidade, instrução, conhecimentos, experiência e sentido da responsabilidade. É bem possível. As origens deste nosso atraso recente podem ser mais fundas e mais antigas do que as aparentes causas contemporâneas. A transformação dos dirigentes socialistas em empresários de sucesso (na banca, na energia e na construção) é apenas um epifenómeno. Mais do que uma causa, a vacuidade plastificada do Primeiro-ministro é uma consequência deste atraso. Não é razoável considerá-los culpados do atraso, nem do antigo, nem do recente. Mas é possível responsabilizá-los por não fazerem o que devem. Ou fazerem o que não devem.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 6 Abr 08

Crónicas 'RdS' de 7 Jan 07 a 30 Mar 08

A transcrição, para o Jacarandá, dos "Retratos da Semana" afixados no Sorumbático, foi afectada por problemas relacionados com o funcionamento do próprio Blogger que impediam que, em certos casos, elas aparecessem na ordem cronológica correcta.
Assim, e até que esse problema seja superado, as crónicas de 7 Jan a 30 Mar 2008 estarão apenas acessíveis através de links - clicando nos títulos respectivos:

PS, S.A.

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QUEM QUISER PERCEBER as últimas movimentações do governo e do Banco de Portugal no BCP, na Caixa Geral de Depósitos e na RTP terá de se interrogar sobre os seus antecedentes e o seu contexto. E não poderá esquecer outras intervenções do governo, eventualmente menos ruidosas, em casos de fusões e compras ou vendas de empresas, de privatizações, de concursos públicos e de nomeações de administradores por parte do Estado. Como não poderá perder de vista decisões que envolveram a PT e a PT Multimédia, a GALP, a EDP, a IBERDOLA e outras. Nem deve subestimar decisões futuras, mas iminentes, sobre o quarto canal de televisão, o novo operador de telemóveis, a televisão digital terrestre, o aeroporto de Lisboa e o TGV. Não é tarefa fácil, dado que o jornalismo parece especialmente contido. As informações são escassas. Muito jornalismo depende seja das empresas, seja do governo. Além disso, o próprio Banco de Portugal não é generoso na explicação das suas acções e sobretudo das suas omissões.
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É UM VELHO MITO DAS ESQUERDAS: o poder político deve comandar o poder económico. Uns consideram que o “poder político” é o do soberano, do eleitor. Outros têm um entendimento mais vasto: é o poder dos políticos, sejam ministros ou vereadores, directores gerais ou deputados. Com o tempo, o poder político foi perdendo. Precisa do poder económico para investir, para o desenvolvimento, para mostrar boas taxas de crescimento, para fazer favores aos partidos e aos clientes. Com a globalização, novas formas de poder económico surgiram e ficaram à margem das leis nacionais e das directivas europeias. Foi o que bastou para que os governos se adaptassem. Mantendo embora as formas da democracia parlamentar, o poder político vive cada vez mais obcecado pelo poder económico, pelos favores das empresas e pelos investimentos que possam ilustrar a boa obra do governo. Vivemos tempos em que as únicas coisas de que os governos se vangloriam são os indicadores económicos, o crescimento, o emprego, o investimento, as exportações e os rendimentos. Para isso, precisam das empresas, dos capitalistas, dos bancos e dos investidores.
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ESTES ÚLTIMOS TÊM, EVIDENTEMENTE, prazer em ajudar. Depois, ganham concursos, recebem benefícios de toda a espécie, auferem subsídios, aproveitam de adjudicações directas e fazem projectos. Trabalham impunemente nos off shores. Constroem edifícios públicos, centrais de energia, redes de comunicações, estádios de futebol, aeroportos, caminhos-de-ferro e tudo quanto ajuda à modernidade do país e aos lucros das empresas. Em especial, obtêm licenças para o que for necessário, designadamente a construção, que é a suma especialidade do capitalismo português.
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PARA AJUDAR ÀS DECISÕES, criaram-se sistemas de vário tipo, uns crus, outros sofisticados. Há quem pague as obras nas sedes dos partidos, quem simplesmente financie as suas actividades e quem subsidie as campanhas eleitorais. Há também quem encontre outras maneiras de facilitar as decisões: depósitos no estrangeiro, transacções em “dinheiro vivo”, subsídios a instituições desportivas, culturais ou mesmo de beneficência. Nos partidos, há gente especializada nesse negócio. Uns são brutos, tratam dos trocos e recebem percentagem. Outros são delicados gestores ou representantes de boas famílias que se ocupam dos grandes números. Mas também há outros modos de estabelecer estas novas relações entre poder económico e poder político. As nomeações de políticos e simpatizantes para as empresas públicas e privadas podem ser feitas tanto pelos empresários como pelos ministros. Através dos seus direitos de accionista ou de outros direitos menos palpáveis, a influência do governo nas grandes decisões económicas só tem o seu equivalente na influência dos grupos económicos nas decisões do governo. Este tem a sorte de ter diante de si um capitalismo miserável, mesquinho e dependente. Estamos a viver episódios de real perda de autonomia do capitalismo nacional. Alguns dos seus dirigentes prestam-se com agilidade e gratidão à promiscuidade. Uns com interesse puro e simples. Outros com receio de serem presos. Ou apanhados na operação Furacão.
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O PARTIDO SOCIALISTA tem vindo a estar atento a esta evolução do mundo, da política e da economia. E tem vários objectivos. Manter o contacto com a decisão económica. Encontrar empresas dóceis perante as suas necessidades políticas. Colocar alguns dos seus mais notáveis dirigentes, mas também empregar muita “arraia-miúda”, de secretárias a técnicos, de burocratas a assessores. Arranjar financiamento para as suas actividades eleitorais. Identificar parceiros para todas as formas de “mecenato” que aliviem os orçamentos de certos ministérios. Recentemente, o partido do governo parece ter enveredado por vias de superior entrosamento. O PS quer ficar com interesses económicos estáveis e duradouros, ao abrigo de resultados eleitorais sempre voláteis. A sua penetração no mundo do dinheiro tem vindo a crescer, no que está a seguir a via inaugurada pelo PSD. Como é evidente, tal actuação é formalmente apresentada como uma prerrogativa do governo, um dever cumprido no interesse nacional. Acreditemos ou não nessa versão, a verdade é que o PS está hoje directamente envolvido, através dos seus amigos, antigos dirigentes, filiados, sócios, simpatizantes e antigos governantes, em vários sectores da economia, da banca, dos petróleos, da televisão, das telecomunicações, da multimédia, das redes de electricidade e gás e outros. O PS mantém-se uma associação, mas parece estar a desenvolver-se como uma sociedade anónima de capitais públicos e interesse privado. O PS procura transformar-se num grupo económico com poder efectivo. Através da presença do governo em sectores estratégicos, este partido adquire um papel de peso na economia. Até há pouco tempo, essa posição era essencialmente a do PSD. Mas o equilíbrio alterou-se. Ainda se mantêm zonas de partilha entre os dois, mas a maioria absoluta de Sócrates foi um instrumento decisivo para a irresistível ascensão financeira do PS. Os três maiores bancos portugueses têm, a partir de agora, relações especiais com o governo e os socialistas. Temos banqueiros no governo e socialistas na banca.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 30 de Dezembro de 2007

Misérias domésticas

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DEPOIS DAS GLÓRIAS INTERNACIONAIS, chegou a vez das nacionais. Antes mesmo de acabar a presidência portuguesa, foram inauguradas as estações de metropolitano do Terreiro do Paço e de Santa Apolónia. Foi momento alto para a obra pública e para a vida do governo. A luzidia comitiva fez o que tinha a fazer, accionou os sistemas, inaugurou e cumprimentou. Sócrates fez discurso. O melhoramento dos transportes que se anuncia é indiscutível. O conforto para os que fazem a trasfega todos os dias aumentou muito. Há décadas que estas obras deveriam estar feitas. A principal estação de caminho-de-ferro da capital não tinha metro, caso certamente único em metade do mundo, sendo que a outra metade não tem metro! O mais importante ponto de passagem, durante décadas, entre as duas margens do Tejo não tinha ligação directa entre barcos, comboios, autocarros e metropolitano! Toda esta obra é discutível, pelo sítio, pela dimensão e pela solução adoptada. Com certeza. Mas os benefícios parecem, para já, inquestionáveis.
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SÓ QUE... A obra demorou dez anos a mais. E custou muitos milhões de euros a mais, pelo menos 140. A Câmara e o Estado foram relapsos, as empresas construtoras não previram os graves acidentes ocorridos, nunca foram apuradas as responsabilidades pelos atrasos, pela imprevidência, pelos prejuízos e pelos custos exagerados. As inspecções não funcionaram, a fiscalização também não. Muito menos a justiça. A impunidade, a irresponsabilidade e o branqueamento parecem indispensáveis às obras e aos concursos públicos. Esta é apenas a última de uma longa e permanente série de obras públicas sem controlo nem planeamento. E, ao que parece, sem honestidade e rigor.
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O JULGAMENTO DA UGT e de mais de trinta dos seus dirigentes, entre os quais o antigo secretário geral Torres Couto, chegou ao fim. Com uma excepção (mas com crime prescrito), os arguidos foram todos absolvidos. Falta de provas. Acusações não fundamentadas. Ausência de documentação demonstrativa. Foram estas as conclusões do tribunal. Os factos alegados datam de 1990. O processo foi iniciado em 1995. Foram necessários 17 anos! Perderam-se vidas e carreiras. Não se fez justiça.
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A ASAE DECIDIU RESPONDER aos seus críticos. Ou antes, o Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor publicou um comunicado no qual investe contra os críticos da actuação daquela polícia da segurança alimentar. É, a todos os títulos, um comunicado notabilíssimo. Muito daquilo que a ASAE e o governo são acusados é totalmente confirmado por este comunicado que é uma verdadeira obra-prima! Num estilo de grande burocrata despótico e num exercício de puro cinismo técnico e jurídico, garante que nada é proibido, “desde que...”. Bolas de Berlim na praia, castanhas assadas, facas de cozinha, colheres de pau, açorda de pão velho e produtos artesanais, tudo é permitido, “desde que...”. No “desde que...” está a chave. Os produtores têm de estar certificados, as facas descontaminadas, as colheres higienizadas, as gorduras medidas, os aromas calibrados, as licenças actualizadas, os géneros embalados, os procedimentos normalizados, as torneiras automatizadas, as mãos desinfectadas, as temperaturas aferidas, os queijos datados, o fiambre etiquetado, a ventilação assegurada, os transportes refrigerados, as licenças regulamentadas, as certificações validadas, as inscrições conferidas, os funcionários identificados, os géneros protegidos, os produtos separados e os operadores licenciados. Desde que tudo isto seja feito e esteja assegurado, há bola de Berlim e croquete.
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COM ESTE MÊS DE DEZEMBRO, iniciou-se mais uma campanha de promoção de Portugal no mundo. São dezenas de cartazes, de enormes dimensões, nas cidades portugueses e centenas de inserções em revistas e jornais do mundo inteiro. Portugal foi transformado na “West coast of Europe”. As imagens reproduzem as caras dos portugueses de sucesso, Mourinho, Ronaldo, Mariza e outros. É a mais vistosa de todas as saloiices em que este governo (e outros antes dele...) se empenhou. É um velho hábito dos países do Terceiro Mundo e de algumas ditaduras que consiste em comprar páginas de jornal e minutos de televisão para se promover. Escolhem-se umas personalidades com hipóteses de serem reconhecidas e tenta-se convencer os putativos clientes de que este país é todo assim, feito de belas paisagens e de pessoas excepcionais. O dinheiro que se gasta com isto é colossal, mas talvez nada de muito grave. Apesar de inútil. O que mais choca, além da capacidade de influência no governo que as agências de publicidade assim exibem, é a atitude de quem encomenda estas campanhas. Quem assim procede está a dizer aos outros que o país, sem campanha, é desconhecido e ninguém dá conta dele. São justamente os países que têm pouco a oferecer, que nem pela sua mediocridade se distinguem, que não pesam nas balanças da fama e da reputação, que são destituídos de interesse especial e que se revelam razoavelmente simplórios e longínquos, que sentem a necessidade de se promover e de repetir a sua excelência, a paz, o sossego, a beleza e os tesouros escondidos. Quem assim age, está plenamente convencido de que o seu país não vale grande coisa e de que tem de fazer estas campanhas. Os responsáveis julgam que tudo se compra com publicidade, mesmo ridícula. O resultado é o previsível. Quem vir os cartazes e seja capaz de reconhecer aquelas individualidades de excepção pensará imediatamente que o país não tem mais nada a oferecer e pretende, com as excepções, convencer os estrangeiros. Portugal não precisava desta campanha para nada. Para absolutamente nada! Talvez o governo precise, mas o país não.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 23 de Dezembro de 2007

Armas de arremesso

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TAL COMO OUTRAS ACTIVIDADES HUMANAS, a política tem as suas regras. Assim como tradições, hábitos, leis e rotinas. Quase tudo se sabe e conhece. É difícil haver surpresas. Mesmo assim, há ilusões e as pessoas, muitas pessoas, acreditam ou vivem nelas. Os políticos falam verdade e mentem indiferentemente. Realizam o prometido ou não, sem qualquer dúvida ou remorso. Defendem, sucessiva e metodicamente, o interesse geral, o partidário e o pessoal, sem nunca deixar de garantir que se trata do interesse nacional. Procuram sobretudo os votos e tentam conquistar, manter e renovar o poder, afirmando sempre que o essencial é o bem-estar da população. Acusam os adversários, ora no poder, ora na oposição, de tudo quanto fazem eles próprios, exibindo sempre a pureza original dos servidores do público. Com os impostos e o emprego na função pública, fazem quase sempre o contrário do que disseram, acusando-se mutuamente de mentira e hipocrisia. Demitem impiedosamente os adversários e até os amigos, em nome da transparência e da legitimidade democrática, sem esquecer de denunciar o despotismo dos opositores quando fazem exactamente o mesmo. Em nome da modernidade e da eficácia, favorecem as empresas, os capitalistas e as associações civis que os ajudam e prejudicam os que a tal se negam, estando sempre disponíveis para, na oposição, expor a promiscuidade dos adversários. No poder, interferem discretamente na justiça e na investigação policial, actuação que, na oposição, desvendam prontamente. No governo, condicionam e tentam manipular a informação, mas, na oposição, proclamam-se os mais inocentes defensores da liberdade de expressão e do pluralismo.
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TUDO ISTO É SABIDO. Mesmo assim, os políticos persistem no seu comportamento e o público vai acreditando. A ilusão e o interesse são as regras deste jogo aparentemente complexo. Como no amor, na economia e no futebol, o facto de haver regras e de se conhecerem os hábitos não impede que se viva na ilusão e se mantenha um comportamento dúplice. No amor, é frequente interditar ao parceiro aquilo que se permite a si próprio. E acreditam na sedução mesmo os que conhecem as suas regras. Na economia, ganhar e vencer são os únicos critérios válidos, enquanto roubar ou trair só são criticáveis se foram vistos. Com o dinheiro, a moral é quase sempre para uso alheio. No futebol, fracturar a perna de um adversário temível só é condenável se não for bem feito. São estranhos estes comportamentos. Conhecem-se as regras, percebem-se os interesses, sabe-se que é ilusão e tem-se a exacta consciência da encenação. Mesmo assim, vive-se como se estivéssemos diante de factos genuínos e situações novas. Faz pensar naqueles filmes que vimos dezenas de vezes e que guardam toda a sua capacidade de nos comover e até talvez de surpreender. Mas a política não é cinema. As emoções da arte não são comparáveis aos interesses da política.
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TERMINADA A PRESIDÊNCIA PORTUGUESA da União, atiraram-se imediatamente as armas de arremesso. Entre outras, o referendo e a remodelação. O primeiro é já usual. Nenhum dos grandes partidos acredita nele, nem no seu contributo para a democracia. Só se lembram dele quando pretendem agredir ou incomodar o adversário. Sócrates e o PS garantiram, durante anos, que se faria referendo europeu. A direcção nacional do PSD prometeu, por unanimidade, realizar um referendo. Agora que não vêem nenhuma vantagem puramente partidária, ambos negam o que garantiram. Para o que recorrem aos conhecidos argumentos defensivos. Os resultados são previsíveis. O referendo é tão democrático quanto o parlamento. Não é uma constituição, é um tratado. Este tratado é igual ao anterior. Um referendo é caro. A participação dos cidadãos é reduzida. Os outros parceiros europeus também não fazem. Não se pode pôr em causa a eficácia da União. Não os choca o facto de ser evidente que não há referendo porque não interessa directamente a um partido. Nem os incomoda saber-se que a Nomenclatura europeia combinou não o realizar e força quem tem dúvidas. Aos dois grandes partidos é-lhes totalmente alheia qualquer preocupação relativa à participação política ou à identificação dos cidadãos com os ideais europeus. Interessa-lhes, isso sim, o que pode ajudar o seu próprio partido e prejudicar o adversário.
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QUANTO À REMODELAÇÃO, é o habitual. Os partidos da oposição não querem que o governo a faça, pois seria sinal de que ainda tem energia. Para tal conseguir, dizem depressa que é necessária, na esperança de a ver recusada pelo Primeiro-ministro que não quer remodelar sob pressão. Caso se faça, os partidos da oposição já sabem exactamente o que dizer: “é insuficiente, foi só cosmética, o essencial não foi feito”. É sempre assim. Sempre foi assim. E assim será. Os socialistas fizeram-no sempre. Os social-democratas também. Tal como os outros. Sabemos isso. Eles sabem isso. Mesmo assim, o jogo de espelhos continua. A ilusão vigora. Muitos acreditam nela. O mais provável é que não haja remodelação. Ou simplesmente uma substituição casual. Nenhum ministro faz sombra ao Primeiro. Nenhum tem peso suficiente, nem sequer para o disparate, para inquietar o Primeiro. Todas as políticas são suas. Como exclusivamente suas são as inaugurações, as distribuições, os aumentos e os subsídios. Nada disto impede que a remodelação ocupe primeiras páginas e telejornais durante uns tempos. A ilusão funciona assim. É este o jogo de espelhos. É contra os espelhos que se atiram pedradas.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Dezembro de 2007