segunda-feira, 23 de junho de 2008

Futebol

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IMAGINO QUE UM GRANDE NÚMERO de concidadãos tenha uma ideia clara sobre os problemas do futebol que ocuparam a crónica da semana. Terá ou não havido corrupção de árbitros? Houve coacção com ou sem resultados? Foram efectivamente pagas “luvas”, presentes” e “favores sexuais” e tiveram realmente consequências nos estádios? Houve ou não clubes beneficiados com estes gestos ilícitos? Há provas de actos e de tentativas de corrupção? Depois de ler jornais, ouvido rádio e visto televisão, percebi que quase toda a gente que se exprime sobre o assunto sabe exactamente o que se passou. Confesso que não tenho a mínima ideia. Reparo, todavia, que os campos estão divididos e extremados: conforme a origem, o local de residência, as preferências clubísticas e os círculos sociais, as pessoas dão ou retiram razão à Liga de Clubes, à Federação, aos clubes em concreto e a cada um dos dirigentes e árbitros. Os argumentos de uns e de outros são fortes, plausíveis e simétricos. As denúncias de interferências externas, como a política, os negócios, os clubes rivais e outros interesses merecem igualmente crédito. As acusações feitas a alguns dirigentes de clube, que se consideram intocáveis, são pesadas e credíveis. O argumento de que há perseguições, contra os clubes do Norte, por parte dos interesses de Lisboa, da Federação e da política, tem pés para andar. De qualquer maneira, se vier a demonstrar-se que as provas são sólidas e os castigos justos, podemos quase regozijar-nos com este feito histórico. Quase. Na verdade, o caso deixa gosto amargo. Os processos de justiça, como é habitual, demoraram anos. E, graças aos recursos e apelos, estão longe de acabar. Por outro lado, este vendaval punitivo sobre o futebol e sobre o Porto não esconde o facto de parecer haver várias justiças. Nem os clubes de Lisboa estão sob o mesmo escrutínio. Nem na política e nas actividades económicas se encontra semelhante severidade. O “Apito” dá resultados, mas o “Furacão” fica-se pela estratosfera. E algumas decisões políticas sobre os grandes concursos nem sequer foram examinadas.
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O FUTEBOL CLUBE DO PORTO está a pagar. Começou, há vinte ou trinta anos, por ser um intruso. Apenas tolerado. Depois, transformou-se no clube dominante. O seu perene presidente teve os comportamentos que se lhe conhecem: inteligente, competente, autoritário, organizado, irascível e déspota. Como qualquer cacique político, assentou os pés em terreno sólido: apoio popular, estabilidade da sua organização, bons resultados e uma arrogância dominadora sem quebra. Sem esquecer uma intransigência absoluta e o uso de uma permanente retórica destinada a lembrar, todas as semanas, que o Porto e o seu clube têm inimigos. Ora, não é admissível que um clube da segunda cidade e do Norte provinciano exerça uma hegemonia quase sem falhas. Tarde ou cedo, o Porto haveria de pagar. Ainda por cima, o clube de futebol venceu onde a cidade e a região perderam. A seguir ao 25 de Abril, notou-se um acréscimo do poder político e económico do Porto. Dali vinham os empresários, os exportadores que garantiam a sobrevivência do país, os eleitores que permitiam que a democracia vingasse, a Igreja e a sua reserva moral, as tradições, os grandes caciques locais e as novas iniciativas económicas e empresariais. No Porto, nasciam bancos e grupos económicos. No Norte, trabalhava-se. No Norte, produzia-se. E no Norte cresceu a ideia de que àquela força era necessário acrescentar poder político. Durante uns anos, pareceu que era verdade. Depois, gradualmente, o Norte perdeu. O Porto perdeu. Menos o Futebol Clube do Porto, que ganhou. Até que ponto as vitórias do futebol toldaram o espírito dos seus dirigentes, permitindo-lhes acreditar na sua impunidade e na ideia de que tudo é permitido quando se ganha?
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HÁ ALGUNS MESES, havia um programa que a RTP exibia fora de horas num dos canais de cabo. Creio que era na RTPN. Chamava-se “A Liga dos Últimos”. Para quem não viu, trata-se de um programa especial e insólito: segue e faz reportagem dos clubes de futebol das divisões inferiores e distritais. Em vez das glórias internacionais, das transferências de milhões de contos por jogador, das ligas europeias milionárias e das grandes querelas futebolísticas nacionais, tínhamos o “Portugal profundo” e o “verdadeiro povo” dos domingos. O “conceito” é simples: os pobres e os humildes também têm direito. O futebol não é apenas um desporto de ricos e milionários, de urbanos e classes médias, ou de gente bonita que faz as capas das revistas. Não. O futebol é também do povo. Por isso se mostra o povo. Campos de terra batida, jogadores com quarenta anos e barriga proeminente, clubes carregados de dívidas e destreza desportista mais ou menos nula. Jogos de nenhum interesse e de estética duvidosa. Os desafios desenrolam-se por entre enorme gritaria, piadas da plateia e berraria de toda a gente. Por esse programa passam clubes que nunca ganham um desafio, que estão em vésperas de desistir e que por vezes têm dificuldades em alinhar o número adequado de jogadores. Clubes que vão falir pois não têm dinheiro para pagar os balneários ou a electricidade. Clubes que pertencem à dona de um bar ou ao patrão de uma empresa de mudanças com duas camionetas. Não sei por que carga de água, o programa é hoje de “culto”. Os urbanos gostam e deliciam-se. Dizem-se ali boçalidades cruas. Toda a gente bebe cerveja a mais. Aquelas brincadeiras de bairro ou de aldeia aspiram agora ao momento de glória que lhes é trazido pelo facto de os novos dirigentes da RTP terem passado o programa para a RTP1, às 21.00 horas de sexta-feira. Pega directamente no telejornal, precede o concurso diário. Continuam as graçolas brejeiras de mau gosto. Os palavrões disfarçados. As ordinarices mais rascas. Reina o machismo mais soez que se pode imaginar. Muita gente é filmada deliberadamente para parecer “feia, porca e má”.
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Poderia pensar-se que o programa faz parte da nova “grelha” da RTP, da sua estratégia e das suas novas concepções que preconizam uma televisão popular e divertida, em poucas palavras, uma “televisão para todos”, um “verdadeiro serviço público”. O que resulta é, além de paradoxal, confrangedor. Não apenas intelectualmente, mas sobretudo social e moralmente. É uma hora de autêntico desprezo social pelos aldeões, pelos provincianos, pelos pobres, pelos gordos, pelos mais velhos, pelos ignorantes e pelos analfabetos. Que, aliás, se oferecem em espectáculo de escárnio. É uma espécie de “racismo social”: coitados, tão estúpidos, mas praticam futebol! São tão puros! Tão autênticos!
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«Retrato da Semana» - «Público» de 11 Mai 08

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