quarta-feira, 25 de junho de 2008

O estado da União

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OS PAÍSES EUROPEUS, sobretudo os grandes e com mais responsabilidades, não podem deixar-se submeter às decisões dos mais pequenos, muito menos aos resultados de um referendo de que resultou uma maioria de escassos milhares de votos. Imaginar que toda a Europa possa ficar condicionada pelos irlandeses é quase uma deficiência intelectual. Tal como imaginar que a União, de carácter federalista, se possa fazer com a unanimidade dos Estados e dos povos. A França e a Alemanha, ajudadas pelos seus clientes e arrastando atrás de si os pequenos países que não se importam de ver aumentar as suas dependências, vão pois tomar as providências necessárias para que a constituição do Tratado de Lisboa seja aprovada. No que serão ajudadas pela enorme, luxuosa e apátrida burocracia europeia. Com ou sem Irlanda. Com ou sem favores prestados e dinheiros dados aos irlandeses. Não podia deixar de ser assim. Só nos contos de fadas é que os gnomos mandam e os anões derrotam os gigantes.
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.. O referendo irlandês teve as suas virtudes. Revelou, uma vez mais, a crise europeia. Exibiu a verdadeira natureza desta União. E mostrou, sem deixar dúvidas, o caminho que esta se prepara para seguir. A reforma das instituições europeias ficará na história como um caso exemplar de esbulho de independências, de esmagamento pacífico de autonomias e de tentativa de destruição de culturas e de carácter. Toda a gente percebeu que a saga da aprovação do Tratado de Lisboa, depois de Maastricht e de Nice, tem como principal objectivo o de retirar poder aos povos e de lhes administrar as soluções das elites esclarecidas. O Tratado foi inventado para retirar aos povos a possibilidade de os discutir e aprovar. O Tratado é incompreensível? A Constituição é absurda? Tanto melhor. São documentos que, justamente, não devem ser compreendidos. E que oferecem explicações úteis para a indiferença crescente dos cidadãos. Votam em eleições e em referendo, dizem os iluminados, por razões nacionais e não por razões europeias! Votam, acrescentam, por causa da crise económica, das desigualdades, dos preços dos combustíveis, das questões laborais e da imigração. Na Irlanda, então, para cúmulo, dizem eles, o “não” foi motivado pelo aborto, pela eutanásia e pelos impostos. Tudo, asseguram, questões locais, paroquiais, nacionais, sem a importância dos reais problemas europeus. Estes argumentos, infantis e destituídos de qualquer inteligência, são repetidos candidamente por todos os servos, sobretudo juristas, da plutocracia europeia. E ninguém, entre essas luminárias, se deu ao trabalho de reflectir nas últimas eleições europeias que deram dois resultados inesquecíveis. Primeiro, uma enorme abstenção. Segundo, o facto de quase todos os que perderam essas eleições foram recompensados, directa e indirectamente, com cargos, responsabilidades e decisões nos actos que se seguiram. Chirac, Schroeder, Tony Blair e Durão Barroso, entre outros, perderam as eleições, mas, pelo jogo do federalismo, moldaram a União que se seguiu! De qualquer modo, ficámos a saber, mais uma vez: para os dirigentes europeus, o emprego, os impostos, a liberdade, a demografia, a família, o sistema de saúde, a educação, a idade de reforma, a legislação laboral e as desigualdades sociais não são questões europeias. Não são problemas relevantes!
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.. A crise, muito séria, é a do desajustamento entre as intenções e as realidades. A do abismo irreversível que se instalou entre os Estados e as classes políticas, por um lado, e os povos e as sociedades, por outro. A do desvirtuamento definitivo do, sempre equívoco, “projecto europeu”, que vai perdendo os valores, que tanto proclamou, da diversidade, da autonomia e da liberdade. A da futilidade dos desejos das elites políticas europeias que pretendem unanimidade e federalismo, homogeneidade e uniformização. A Europa é vaidosa como uma velha gaiteira. E arrogante como um fidalgo falido de smoking coçado. Os seus dirigentes gabam-se do Estado de protecção mais generoso do mundo, da construção política mais original, da cultura mais consistente, das mais belas cidades, da liberdade mais enraizada e da paz mais duradoura. Ano após ano, os mitos vão ruindo. A cultura europeia é americana. O trabalho é imigrado. A produção é chinesa. O capital estrangeiro. A economia frágil. A ciência dependente. A tecnologia subalterna. A impotência manifesta. Os europeus não querem correr riscos, nem tratam da sua defesa. Estão disponíveis para negociar com o diabo. Não têm energia, não possuem forças armadas. Comportam-se como se tivessem um inimigo comum, os Estados Unidos. Não os terroristas, não as ditaduras, mas os Estados Unidos. Os europeus são cada vez mais utilizados por terceiros endinheirados que assim perdem o respeito por tanta cultura, tanta originalidade e tão glorioso passado. Os dinheiros do petróleo, dos armamentos, de todos os tráficos ilícitos e da grande especulação começam a mandar na Europa e a condicionar as suas políticas e a sua diplomacia.
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.. A União vai sair, aparentemente, desta crise. Dentro de um ou dois anos, uma nova engenharia terá sido encontrada. Dentro ou fora, a Irlanda deixará de incomodar. Novas perturbações serão evitadas por novos mecanismos. Alguém virá dizer que a crise está ultrapassada e que a União entrará numa nova era. A mecânica da Comissão, do Conselho e do Parlamento Europeu estará oleada e preparada para funcionar a 27 ou mais. As decisões serão mais fáceis. Evidentemente, sabe-se, haverá alguns problemas. Na economia, na sociedade, no comércio externo, na ciência e na tecnologia. Forças centrífugas em acção. Dificuldades no emprego e no crescimento económico. Problemas sociais e demográficos. Conflitos laborais e desigualdades sociais. Deriva dos sistemas de saúde, educação e segurança. Aumento dos preços da energia e dos alimentos. Certo. Mas são todos problemas locais. Nada disso é europeu. A grande Europa, a grande União passa ao lado disso. Passa ao lado de questões menores.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 22 de Junho de 2008

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