domingo, 31 de agosto de 2008

Tão felizes que éramos!

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SARAH ADAMOPOULOS seleccionou um pouco mais de trinta pessoas a quem pediu para contarem um pouco da sua experiência de criança. Este é o resultado. Atraente e estranho. Não se trata de uma amostra representativa. São escolhas de Sarah, feitas, creio, ao ritmo e à circunstância de amizades, conhecimentos, camaradagens e afinidades. Muitos deles vêm das letras e das artes. Valem por eles, não valem por universos estatísticos. Mas têm comunidade de experiência e de recordação. A felicidade, em primeiro lugar. Quase todos os entrevistados tiveram infâncias felizes. Depois, vem o espaço, que é uma maneira de sentir a liberdade. Referem os espaços largos da infância e queixam-se da falta de espaço, hoje, o que também quer dizer falta de liberdade. A descoberta do mundo, a seguir. E a descoberta dos outros. Para quase todos, eram tempos em que os pais davam o exemplo e ensinavam coisas, enquanto as mães davam afectos. Vindos de meios cultivados, aprenderam artes e letras: com os pais ou em escolas privadas, nesta que é mais uma revelação da miséria cultural da nossa escola de ontem e de hoje.
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Nem todos estes relatos são iguais. Seria injusto dizê-lo. E pouco objectivo. São histórias diferentes e circunstâncias variadas. E diversos os estilos e os factos. Mas quase todos têm um traço comum: uma infância feliz! Por outras palavras, tempos doces e despreocupados. O carinho dos pais. A atenção dos professores. A revelação da escola. Os jogos e as brincadeiras. Um mundo a descobrir.
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É preciso reconhecer: são clichés! Podem ser verdade: os clichés não são geralmente errados. Mas é certo que são só uma parte dos factos. São o fruto de escolhas contemporâneas e da memória actual. Com certas recordações, não se está a ajustar contas com o passado, mas sim com o presente. O que parece estar em causa é o que se não tem hoje, não o que se tinha ontem. Estes relatos valem mais pelo que se tem ou não tem como adulto, do que pelo que se era ou não era como criança.
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Não creio que exista período da vida mais insólito, para não dizer mais duro ou difícil, do que a juventude, incluindo nesta a infância e a adolescência. As ambições são desmedidas. Os medos permanentes. Os atrevimentos excessivos. O capricho e o amuo são regras de vida. Pensam-se e fazem-se tontarias. Sofre-se, em igual medida, com o amor e a falta dele. Fantasia-se, deseja-se e receia-se o sexo de que se não percebe nada. Os pais nunca compreendem. Os irmãos são sempre incómodos. Vive-se quase sempre à beira do desespero. O egoísmo e a inveja são leis. A contradição é um modo de vida: é na juventude que se encontra a mais completa combinação de crueldade e doçura. E nada disto impede que os jovens sejam também generosos, disponíveis, curiosos e criativos. É neste caos que, muitas vezes, nasce a revolta. Que é o melhor que a juventude traz.
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Sempre tive dificuldade em perceber por que razão as pessoas se reclamam de uma infância feliz. Ou por que motivo apagam as memórias das dificuldades e elegem apenas as da felicidade. Porque sentem as pessoas tanta necessidade de exibir uma juventude encantadora, feliz, mágica? Quando ouço ou leio relatos de infância e juventude, estou sempre à espera dos sentimentos previsíveis. Não tinha o que queria, nunca tinha tudo o que queria. Sentia-se fechado, preso e abafado, tinha vontade de partir, de ir para longe. Os adultos não compreendiam. Os pais não se abriam e não explicavam dúvidas e problemas. Doces, não eram um modelo. Severos, eram odiosos. Os adultos mentiam, omitiam ou proibiam, geralmente sem explicar porquê. Era assim, porque era assim. Rapazes e raparigas, sem conhecimento nem experiência, percebiam-se mal uns aos outros. Zangas e lutas eram tão desmesuradas quanto os desejos e as paixões.
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Fico à espera de ler e ouvir esses sentimentos, mas são raros, muito raros, as testemunhas que os transmitem. O essencial dessas recordações é o que constrói a “infância dourada” e a “juventude feliz”. Mas, quando falo discretamente com eles, sem os pais por perto, sem outras presenças, o que me dizem (quando dizem, do fundo da sua insondável reserva...) em nada se parece com esse período mágico e leve que recordam os seus pais e de que eles seguramente falarão dentro de trinta anos. Contam-me (quando me contam...) a insatisfação e a frustração. Queixam-se da falta de liberdade e de meios. Lamentam a incompreensão dos adultos. Mudam com frequência de projectos e de ambições. Garantem-me que a juventude deles é pior e muito mais difícil do que a dos seus pais. É muito fácil assegurarem que não têm futuro. Ou que este é sem esperança.
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É natural que assim seja. As cabeças não estão organizadas, os sentimentos muito menos. Sabe-se pouco. É-se forçado a entrar na vida dos outros, dos adultos, dos que têm poder sobre eles. Já se quer parecer grande, mas não se consegue. Vive-se quase sempre em competição. Os adultos avaliam tudo. É nesta altura que mais espaços se antevêem, mais possibilidades se adivinham, mas é também nesse tempo que se aprendem os limites, as fronteiras, os termos dos direitos, o peso dos deveres. Cada ano que passa, da infância à adolescência, é mais um ano de interditos e de obrigações. Não podia deixar de ser de outra maneira, mas essa é uma aprendizagem dura. A minha experiência diz-me que a infelicidade e a felicidade preencheram a minha juventude em quantidades exageradas. Ora uma, ora outra. Simultânea e sucessivamente.
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Nunca saberemos exactamente se as recordações que Sarah Adamopoulos recolheu são verdadeiras ou não. Podemos confiar nela, que não inventou. Mas não sei se podemos confiar neles, que recordaram. Alguns testemunhos deixam eles próprios as dúvidas. Eu próprio conheço isso. Tenho recordações vivíssimas de factos passados com os meus três a sete anos. Lembro-me das circunstâncias, das roupas, da luz do dia, dos ruídos e até dos cheiros. Estou a ver a minha mãe, no Porto, em 1945, a calafetar as janelas com cortinas, jornais e cobertores, pois havia exercícios de prevenção e era necessário esconder as luzes de improváveis aviões inimigos. Lembro-me de um médico, tinha eu três anos, a limpar-me a cabeça de um horroroso eczema. Ainda hoje sei como eram as senhas do racionamento que durou até aos meus seis ou sete anos. Lembro-me do meu primeiro acidente, tinha eu três anos, que me deixou uma marca na mão para toda a vida. Lembro-me de ter querido sovar um irmão através de uma janela e de ter apenas conseguido cortar as minhas veias. Recordo o modo como, com os meus irmãos armados em cow-boys, quase queimámos vivo o Mário, que era o nosso índio. Será realmente que me lembro disto tudo? Não será que são memórias feitas mais tarde, ao ouvir histórias? André Gago, nesta colectânea, resume bem o problema: “Talvez não passe de uma fantasia, isto de pretender ter recordações de uma altura da vida a qual se diz ser impossível ser recordada. Mas, se não é uma recordação, é uma fantasia bem urdida”.
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Um dos indícios mais certeiros de que a memória da infância é um ajuste de contas com o presente reside no facto de quase todos os testemunhos fazerem, directa ou indirectamente, implícita ou explicitamente, a comparação das juventudes do seu tempo com as de hoje. Rogério Ribeiro diz simplesmente: “As crianças não tinham então o poder que têm hoje sobre os pais”! E Rui Reininho não tem dúvidas em afirmar que as crianças do seu tempo tinham menos liberdade e menos oportunidades: “Hoje é tudo mais agradável”! Já António Vitorino de Almeida tem a certeza de que “Antigamente, a infância era infinitamente melhor”! E Baptista Bastos, quando recorda Lisboa de há várias décadas, surpreende-nos: “A cidade nessa época era muito afectuosa. Tenho a memória de uma cidade que me inspirava um profundo afecto...”.
Creio que estão todos a falar de hoje, claro.
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Na minha experiência e numa visão simplificada, os adultos dividem-se em duas grandes categorias. Por um lado, os que dizem que os jovens, no seu tempo, eram mais cultos, mais empenhados, tinham “causas” e trabalhavam, enquanto os de hoje são uns valdevinos, inúteis, superficiais, sem valores, preguiçosos e abúlicos. Por outro, os que garantem que os jovens de hoje são autênticos génios, sabem tudo, têm tudo, são autónomos, portam-se como gente grande, têm uma visão do mundo e são quase enciclopédicos, enquanto os do seu tempo eram amorfos, oprimidos, viviam como numa reserva, limitavam-se a obedecer e quase não tinham existência. O que é realmente interessante é que não têm razão. Nem uns, nem outros.

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Prefácio de «Infância, quando eles eram pequeninos», Sarah Adamopoulos - Nelson de Matos, Lisboa 2008.

1 comentário:

Carlos Medina Ribeiro disse...

Passei há pouco pela Bertrand e pela Barata (ambas na Av. de Roma) em busca deste livro.
Nenhuma das livrarias o tem; aliás, nem sabiam da sua existência!

Na Barata, foi mesmo preciso eu 'pedir licença' e entrar no computador para escrever o nome da autora...
Nesse seguimento, o livro lá apareceu - mas não o tinham.