quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

“A nova garrafa de Vinho do Porto” - Desenho de Álvaro Siza Vieira, fabrico de Barbosa e Almeida

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COLABORO, COM HONRA e muito prazer, nesta cerimónia de lançamento ou inauguração da nova garrafa de vinho do Porto. As razões para o fazer eram muitas. A começar pelo vinho do Porto, a que me ligam respeito e amor indestrutíveis. A passar por Álvaro Siza Vieira, criador de espaço e senhor da luz. A acabar nesta interessante iniciativa de Carlos Moreira da Silva e da Barbosa e Almeida, apoiada pelo Instituto de Vinho do Porto e pelas casas exportadoras Sogrape, Taylor’s e Symmington.
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Tanto quanto sei e me permito deduzir, pretendem os promotores dar um contributo para uma relativa homogeneidade da garrafa de Vinho de Porto. Ao fazê-lo, não procuraram a via legal e compulsiva, mas preferiram o método doce, o gesto exemplar que, se o merecer, pode pegar por contágio. Também não tiveram uma ambição absoluta: entenderam, e bem, parece-me, que a garrafa de “vintage” já tinha atingido uma razoável maturidade e alguma homogeneidade, não se justificando assim equipará-la às restantes categorias de vinho. A partir de agora, se a experiência pioneira resultar e se esta nova forma tiver bom acolhimento por parte do comércio e dos consumidores, outros produtores de vinho poderão aderir e acrescentar novos esforços no sentido da homogeneidade.
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Estou convencido de que esta tendência ou esta proposta são bem-vindas. Não sendo uma regra absoluta, a verdade é que muitas categorias de vinho, nomeadamente as mais importantes e prestigiadas, assim como, também, as originárias das mais famosas regiões demarcadas, estabeleceram formatos e desenhos de garrafas comuns aos seus vinhos. A maior parte dos vinhos de Bordéus, da Borgonha e do Champanhe, por exemplo, adoptaram formas comuns de garrafa. Diante de certas garrafas de vinho, nem é preciso ler o rótulo para, imediatamente, pensarmos numa região de origem. Em Portugal, como talvez fosse de esperar, as coisas estão mais desorganizadas. Apesar de termos vivido várias décadas dominados pela fobia da diversidade e pela obsessão do regulamento legal e da imposição de regras e costumes, apesar disso, as garrafas de vinho escaparam à fúria normalizadora.
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É pena, pois há coisas que teriam a ganhar com isso e o vinho era uma delas. Em certas regiões e para certos tipos de vinho, foi-se estabelecendo uma norma, um costume facultativo, que tiveram, aqui e ali, relativos êxitos. Assim, por exemplo, a garrafa do Dão é comum a quase toda a região e a quase todos os produtores. No Doura e na Bairrada, deram-se passos nesse sentido. E no vinho do Porto também. Mau grado essas tendências, a desordem persiste. Ora, ao contrário do que me parece ser verdade de carácter geral – a diversidade é uma riqueza – uma relativa homogeneização poderia constituir um melhoramento dos atributos do Vinho do Porto, da sua imagem, do seu valor no comércio e da percepção que dele têm os consumidores e bebedores.
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Porquê?, perguntar-se-á. Não será muito melhor ter uma enorme ou infinita variedade de formas e feitios? Creio que não. A resposta está no factor de identidade. Há coisas que ganham em ter uma identidade forte. Ganham por muitas razões. Porque são mais facilmente reconhecidas. Porque ganham em personalidade e tradição. Porque transmitem a ideia de que existe uma vontade de estabelecer e controlar as regras de produção.
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O vinho vive também da confiança que, no nome e na origem, depositam os seus consumidores. As normas de cada vinho, a denominação de origem, as regras de comercialização e produção, todas estas ideias têm como objectivo o de criar uma identidade, defender uma qualidade e sublinhar uma capacidade reconhecimento. Diante de garrafas tendencialmente parecidas ou iguais, mesmo sabendo que o produto que está lá dentro pode variar, a nossa reacção é de confiança. Isto é, somos levados a pensar que o esforço de controlo e de acompanhamento da imagem é equivalente ao esforço feito na essência.
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Por outras palavras. Sabendo nós que o conteúdo é mais importante do que a forma e que esta deve obedecer àquele, também sabemos que a forma acaba por ter uma influência sobre o conteúdo. Perante a multiplicação e proliferação de formas de garrafas, de selos de garantia, de rolhas e de rótulos, é possível que se crie a sensação de que o sector está entregue à anarquia; que quem não cuida da forma, também não cuida do conteúdo; que quem não se preocupa com o acessório, também não se interessa pelo essencial. A acreditar no General De Gaulle – “Il n’y a que les grands hommes qui s’intéressent aux petites choses et au détails” – então concluo que a forma, o invólucro, a embalagem e o pormenor devem estar à altura do Vinho do Porto.
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Felicito pois os promotores desta iniciativa. Têm razão em dar alguns passos no sentido de melhorar a imagem e a identidade, através de uma relativa homogeneização da garrafa de Vinho do Porto. É, aliás, estranho, que a mais antiga região demarcada de vinho da história não tenha, há mais tempo, adoptado formas comuns das suas garrafas. Esperemos que este gesto tenha continuidade e desenvolvimento; esperemos também que os vinhos do Douro, em tão grande expansão actualmente, possam adoptar modelos comuns de garrafa e embalagem. Diga-se de passagem que, recentemente, a evolução dos vinhos do Douro, que tem revelado um número muito relevante de novos e excelentes vinhos, aumentou a diversidade de formas e feitios de garrafa, o que não me parece positivo. No Douro, vivem em anárquica união de facto as garrafas bordalesa e borguinhona, as de ombros altos e as de ombros descaídos, a de gargalo alto e a atarracada, o quase cantil, a bojuda e a longilínea.
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Felicito igualmente os promotores por terem pedido a Siza Vieira o desenho da garrafa. O seu nome e a sua arte trazem qualquer coisa a mais ao vinho do Porto, como já tinha feito, há tão pouco tempo, com o novo cálice, de felizes formas e de polémica imediata, mas que, profetizo, terá um futuro radioso. E o tempo dirá, como espero e como aconteceu com a Casa de Chá da Boa Nova, que as suas obras de arte resistam à idade e à polémica. De qualquer modo, não escondo a minha surpresa. Habituei-me a vê-lo ir buscar, com as mãos, a luz e a trazê-la, delicadamente, à nossa beira, como fez no Marco de Canavezes e em Serralves: não estava à espera que também ele me trouxesse o Douro à mesa e à boca. Eis que está feito, com a sua habitual magia.
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Durante cerca de dois séculos, os vinhos em geral e o vinho do Porto em particular foram a principal exportação portuguesa. Anos houve em que estes produtos representaram, em valor, mais de 80 por cento do nosso comércio externo. Quer isto dizer que os vinhos, especialmente o do Porto, foram responsáveis por parte importante das nossas importações de produtos manufacturados e industrializados para os quais não tínhamos jeito, recursos ou competência. Também aquele comércio foi vital para as receitas do Estado: foram aqueles impostos dos mais lucrativos para financiar as actividades da Administração. Pois bem, a grande maioria, perto da totalidade, daqueles vinhos foi exportada a granel, isto é, em geral, em cascos de madeira. Em pipas. Ainda nas décadas de cinquenta e sessenta do século XX – digo bem, XX – menos de 10 por cento do Vinho do Porto era exportado engarrafado! Foi na década de setenta que algo mudou: no final desta, já o Vinho do Porto exportado em garrafa era a maioria. Hoje, é praticamente a totalidade. O que teve implicações várias. Além do vinho, exporta-se também o vidro, a rolha, o cartão, a madeira, a cápsula, o rótulo, o desenho e o valor acrescentado disso tudo. Por outro lado, o vinho engarrafado é geralmente de melhor qualidade e mais alto preço, sem falar no facto de ser a partir de vinho a granel que, as mais das vezes, importadores estrangeiros fabricavam vinho do Porto de duvidosa qualidade. No conjunto, pelo trabalho e pela embalagem, o vinho engarrafado era de qualidade e valor superiores ao granel. Demorámos décadas a aprender! E a pensar no Barão de Forrester que, em meados do século XIX, no seu principal livro sobre Portugal, dizia: “Em casa de um gentleman português, é tão raro encontrar um livro como uma garrafa de vinho!”.
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Em nossa defesa, acrescente-se que a garrafa de vinho, tal como a conhecemos hoje, não é assim tão antiga. Se há certezas quanto à utilização do vidro em frascos e recipientes de vária espécie desde há 3.000 ou 3.500 anos (no Egipto, sobretudo), também se sabe que a garrafa de vidro para o vinho só começou a ser usada muito mais tarde, talvez a partir dos séculos XVI e XVII, tendo-se notabilizado nessa indústria os Árabes, os Venezianos, os Ingleses e os Alemães. Após uma lenta evolução na sua forma, a garrafa que hoje conhecemos data de finais do século XIX, princípios do século XX. Antes disso, as belas garrafas de vidro que conhecemos e que aparecem de vez em quando nos leilões, baixas, bojudas, arredondadas, gordas na base, cumpriam os seus deveres à mesa, mas não se adaptavam às exigências e às circunstâncias dos mercados de exportação, das viagens de barco, dos transportes deficientes de então e do repouso e envelhecimento em cave ou adega. Na verdade, o nosso atraso no comércio de vinho engarrafado não se mede em séculos. Foram talvez só setenta ou oitenta anos!
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Apraz-me ver, dia após dia, que o Vinho do Porto, repositório de tradição, é capaz de inovar e de se organizar. Sendo o mais antigo e mais valioso produto português de exportação, sendo seguramente o produto mais mundialmente identificado com Portugal e carregando consigo séculos de história, seria talvez de imaginar que as suas energias inovadoras se esgotariam. Pois bem, o contrário é a verdade. Nunca, como nos últimos anos, se consumiu tanto Vinho do Porto no mundo. Nunca se exportou tanto. Nunca se escreveu tanto como agora sobre este vinho. Nunca, como agora, se vêem “vintages” emparceirar com os melhores vinhos do século das melhores regiões do mundo. Nunca, como agora, se comercializaram e beberam tantos vinhos das mais nobres qualidades, das melhores vindimas e dos mais altos preços. Para que tudo isso tenha sido possível, um enorme esforço tem vindo a ser feito no Douro, nas vinhas e nas adegas, de renovação da produção, do plantio, do cultivo, do estudo da vinicultura e da viticultura, da aplicação da ciência e das tecnologias mais modernas a esta velha tradição. Se olharmos para a história recente, desde os anos oitenta, em que dois fenómenos abalaram as estruturas produtivas portuguesas, a integração europeia e a globalização, é-me permitido afirmar que foi o sector do vinho do Porto (talvez também, moderadamente, o do vinho em geral) o que melhor se portou, resistiu, e organizou e o que melhor encara o futuro.

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Alfândega, Porto, 10 de Dezembro de 2002

Luz - Fábrica têxtil moderna

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O têxtil é assim: uma fábrica moderna acaba sempre por parecer antiquada! Esta (INARBEL), em Felgueiras, no Minho, tem marcas próprias que exporta para duas dezenas de países, criou o seu próprio design, adoptou tecnologia moderna, automatiza tudo quanto é possível. Mesmo assim, os produtos que fazem não dispensam as mulheres e múltiplas operações manuais. (2006).

domingo, 25 de janeiro de 2009

Questões de clima

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O CLIMA ESTÁ INSUPORTÁVEL. Não o da chuva e do vento, da neve e do gelo. Para esse, há remédios. Mas o clima espiritual. Moral. Político. Como se lhe queira chamar. A crise financeira, internacional e portuguesa, deixou a nu fragilidades e irregularidades. A crise económica, também internacional e portuguesa, só agora começou e semeia já falências e desemprego, mas sobretudo comportamentos incompreensíveis. A crise institucional, ligada à fraude e à corrupção, associa-se dramaticamente às anteriores. Olha-se em volta, à procura de sinais. De optimismo e esperança, para uns. De castigo e autoridade, para outros. Não se vêem. Ou vêem-se mal. Todos se viram para o último reduto, o da justiça, aquele que nem sequer durante a revolução, por pudor ou receio, foi assaltado ou reformado. A expectativa não é satisfeita. A justiça não é pronta. Não é eficaz. Não parece isenta. Não mostra pertencer ao seu povo. Foge ao escrutínio. A sua autogestão sobrepôs-se à sua independência. O reconforto que deveria oferecer aos cidadãos não vem dali. Não se vive sem castigo ou recompensa, vegeta-se e faz-se pela vida. A qualquer preço.
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AS EMPRESAS que abrem falência sucedem-se a ritmo preocupante. Para algumas, os processos de ajustamento são desconhecidos. Os esclarecimentos dados aos trabalhadores são diminutos. De repente, quase sem aviso, são centenas ou milhares de empregos perdidos. E de vidas interrompidas. Pressentiam-se as dificuldades? Tentaram-se acordos de emergência? Procurou salvar-se alguma coisa? Nada. Não havia possibilidades de remediar? De ir contraindo? Será a eterna culpa da lei laboral? Ou simplesmente a certeza de que mais vale assim, bruscamente, à procura dos adiamentos e da pusilanimidade da justiça económica que nada resolve a tempo? Poderá também ser a lei da vida e do mercado. Mas nada permite compreender uns energúmenos que, de noite, furtivamente, fecham as fábricas, deslocam as máquinas e desaparecem. E a ninguém prestam contas, enquanto se preparam para mais um projecto, daqueles que têm subsídio europeu. De madrugada, quando os trabalhadores se apresentam ao serviço, estacam diante de portas fechadas. Sem explicação. Sem conversa. Ficam à chuva, à espera de instituições e de justiça que tardam. Há quem diga que “é fita” para a televisão. A verdade que essa é parte do problema. Temos olhos cansados, habituámo-nos a tudo, à miséria e à fraude, à corrupção e ao despotismo. A televisão, predadora de sentimentos, mostra imagens até à fadiga, à insensibilidade. Não se acredita, nem se vê o sofrimento dos outros, para não incomodar as nossas certezas ou para não revelar a nossa insegurança.
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QUASE SEM DISTINÇÃO, surgem novos processos de fraude ou de corrupção. Já não lhe conhecemos os nomes ou as designações. Há bancos que estão em vários, do “furacão” aos “off shores”, das “facturas” ao “apito”, da contabilidade paralela ao favoritismo, passando pela promiscuidade. Há gente que acumula irregularidades. Que todos conhecem, menos as entidades ditas reguladoras e a justiça. Ou, pior ainda, que talvez as entidades reguladoras e a justiça também conheçam. Com a crise financeira, a vulnerabilidade da economia nacional e do sistema bancário surgiram ao grande dia. Mas também a complacência dos banqueiros, na concessão de crédito, cuja responsabilidade é tão grande quanto a dos “raiders” e dos predadores que se vestiram de prestígio social, artístico e politico durante uns anos. O Estado acorre, mostra aflição e exibe compaixão. Mas com que critério vai agir? Na Bordalo Pinheiro, porque é património. E nas fábricas de sapatos, que não têm a sorte de ter um artista à nascença? E nas de componentes para automóveis? Na Qimonda, porque é a maior exportadora nacional. E nas outras tantas que semeiam o país? Como já se sabe que “deitar dinheiro para cima não chega”, que se faz mais? O crédito dos bancos, mesmo com garantias do Estado, parece reservado aos potentados que já tinham utilizado outros créditos anteriores para golpes financeiros. Que resta? Os processos de falência podem resolver ou aliviar qualquer coisa aos credores e aos trabalhadores? Mas era preciso que a justiça funcionasse, que esses processos fossem resolvidos em tempo devido, em tempo de vida.
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TODA A GENTE ESPERA pelos veredictos da Casa Pia (a qual, verdadeira culpada, nunca foi julgada...), do Apito Dourado, do Furacão, do Bragaparques, dos presidentes dos clubes de futebol, de vários autarcas e agora do Freeport, mas a verdade é que a debilidade da justiça é muito mais vasta e profunda do que esses casos ditos de primeira página. Na justiça de família e dos menores, no penal de todos os dias e na justiça económica e laboral: é aí que toma real dimensão a desorganização, a morosidade e a ineficácia do sistema judicial, de investigação e de instrução. O próprio primeiro-ministro pôs em causa a eficácia e a orientação ou do ministério público ou a de uma certa imprensa com acesso às “fugas” orientadas. Os processos de políticos, de grandes empresários, de banqueiros, de dirigentes de futebol, eventualmente de autarcas, de artistas e de atletas... não começam ou não chegam ao fim. Ou não se esclarecem. Ou chegam tarde. Ou prescrevem. E entretanto, o criminoso fugiu, o bandido desapareceu, o vigarista recomeçou vida... E os caluniados ficam sem reparação. As vítimas sem compensação. E os trabalhadores sem indemnização. É verdade que há milhares de casos resolvidos. E de processos acabados. Desses, ninguém fala. Mas é certo que o número dos que ficam para trás, dos que não se resolvem e dos que não reparam é excessivo. E suspeito.
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EM QUALQUER DOS CASOS que vem até ao proscénio, os protagonistas não se cansam de repetir que aguardam, “com serenidade”, que justiça seja feita. Todos afirmam que respeitarão a justiça portuguesa e que nela confiam. Muitos pedem que se faça justiça rapidamente e bem. “Até ao fim”, dizem. “Até às últimas consequências, doa a quem doer”, acrescentam. É o que se diz. É lugar-comum obrigatório. Mas a certeza é que ninguém espera com tranquilidade. Nem vítimas, nem culpados. Nem as partes em conflito. As sondagens de opinião, que garantiam aos magistrados, há vinte anos, um lugar invejável na escala do prestígio social, exibem hoje o pessoal da justiça nos últimos lugares, abaixo de jornalistas e advogados. Abaixo de polícias e políticos!
Se tivéssemos uma justiça à altura, toda a crise actual seria mais suportável. Não haveria mais emprego. Mas a sociedade seria mais decente.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 25 de Janeiro de 2009

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Prémio Stuart Carvalhais

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UMA DAS RAZÕES pelas quais estou aqui é o Stuart Carvalhais. Nasceu em Vila Real. Foi foragido. Fugiu do colégio. Foi à aventura. Foi um inconformista. Foi rebelde. Usou a pena, o lápis, o pincel, a sátira e a troça. Criou um estilo. Foi jornalista. Escreveu em tudo o que pôde e soube. Trabalhou e viveu em Paris por um tempo. Foi emigrante. Tinha carácter. Gostava de beber. Com todas estas qualidades, incluindo a de ser Transmontano, é justo que este prémio seja uma homenagem.

A segunda razão é a Casa da Imprensa, nobre instituição da liberdade de expressão.

Outra razão é o Corte Inglês. Perdoem-me a publicidade. Mas tem de ser. O Corte Inglês foi, recentemente, um formidável contributo para a criação do gosto dos portugueses. Diminuiu o nosso provincianismo. Fez-nos viver melhor com a Espanha. Foi especial ver os portugueses, há alguns anos, chegarem devagar, verem com receio e olharem com um misto de desconfiança e desejo. Num ou dois anos, o armazém passou a fazer parte da cidade. Garanto que não me pagam para dizer o que digo.

Quando a Susana Santos, membro do Júri pelo Corte Inglês, me convidou, não podia dizer que não. Ainda por cima, em júri presidido pelo António, artista entre os maiores do nosso país. Ele não sabe, mas sou seu admirador há muitos anos.

Gostava de aproveitar esta oportunidade para vos fazer sermão. Sobre as virtudes do riso e da sátira. Mas não o farei. Rir é quase como amar: ou é ou não é, ou se faz ou não; mas não se fazem discursos sobre isso.

Mas deixem-me só dizer-vos que sinto que vivemos tempos estranhos. Parece que a liberdade é grande. Que a permissividade ou a licença invadiram o nosso quotidiano. Que não há limites para nada. Que se pode troçar de tudo. E de repente, com os cartoons dinamarqueses, com uns filmes recentes, com manifestações de massa contra desenhos satíricos e com a sucessão de processos por “abuso de liberdade de imprensa”, ficamos boquiabertos. Afinal, onde está a licença? Onde está o sentido de humor? Onde está a liberdade?

Na segunda metade do século XIX português, havia jornais exclusivamente dedicados à troça. Jornais em que se ria e fazia troça de tudo e de todos. Sobretudo dos importantes, já que fazer troça dos fracos é de mau gosto. Recordo uns cartoons e umas bandas desenhadas de Bordalo Pinheiro, nas quais, entre outras coisas, se dizia e mostrava que D. Luís, esse mesmo, o Rei de Portugal, ir pôr no prego a Coroa e o Ceptro, a fim de pagar umas noitadas nos cabarés de então, se não me engano o Ritz (não este...) e o Nina! Pode imaginar-se o que aconteceria se algo de parecido aparecesse hoje nos jornais?

Naquele tempo, escrevia-se sobre a política, o governo, o parlamento, os deputados e os importantes com mais liberdade do que hoje. É pena e triste verificar este paradoxo. Mas vale a pena interrogarmo-nos. Por que é assim? Há mesmo menos liberdade? Sinceramente vos digo: não creio que a liberdade seja menor. Mas as regras são diferentes. O que mudou foi essencialmente o âmbito. Hoje, vivemos em sociedade de massas, em sistema de consumo de massas, onde tudo ou quase é visível. Troçar do Rei diante das classes dirigentes era possível, ninguém ficava incomodado. Tratar os deputados de preguiçosos e inúteis, de tal modo que só eles e poucos mais ouvissem, era aceitável. Ultrapassar mesmo certos limites da vida familiar e privada dos poderosos, desde que seja de modo a que apenas as elites sejam testemunhas, também estava conforme às regras não escritas das sociedades estabelecidas. Rir dos padres e dos bispos, brincar com os generais e os polícias, escarnecer dos capitalistas e dos sindicalistas também era de bom tom. Desde que em circuito fechado. Hoje, infelizmente, troçar de alguém, fazer caricatura, rir de pessoa ou entidade respeitável, começa a ser perigoso. Porque tudo se faz à vista de todos. Deveria ser mais uma razão para dar asas à liberdade de expressão, mas parece que não. Nos tribunais, sobram os processos ditos de abuso de liberdade de imprensa, nos quais, na verdade, o que está em causa é mesmo a liberdade, não o abuso.

A democracia de massas, a sociedade política contemporânea, tem dificuldades em aceitar que o riso e a troça sejam formas superiores de expressão. As elites portuguesas, mal habituadas à troça, têm de compreender que se pode e deve troçar de tudo, sobretudo das coisas sérias. Se querem fazer um teste, tentem, junto de alguém que diz ter muito sentido de humor, meterem-se com ele. Logo verão. Há muita gente que só tem sentido de humor para os outros, contra os outros, sobre os outros. Isso não é de facto sentido de humor. Escárnio, talvez, mas não humor. As elites portuguesas precisam de aprender que a liberdade de rir é indispensável à liberdade. E todos necessitamos de perceber melhor que a troça é subversiva na exacta medida em que se opõe a uma das mais odiosas formas de opressão e que se traduz nesta horrenda frase: “o respeitinho é muito bonito”! Não, senhoras e senhores! O respeitinho é muito feio!

É com enorme prazer e honra que me associo à entrega do Grande Prémio de ilustração a André Carrilho. Nasceu num ano de boa colheita, 1974. É um dos maiores e mais internacionais artistas portugueses do género. Reparem como criou um estilo próprio. Notem como é excelente numa das principais exigências da arte: a de concentrar toda a verosimilhança numa alusão, num traço, alguns dirão na essência. E mais não digo, a não ser que admiro a sua obra e o felicito.

Tem um defeito: não é de Vila Real...


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Corte Inglês Lisboa, 22 de Junho de 2006

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Luz - Fábrica têxtil

.Clicar na imagem, para a ampliar
Esta fábrica é das antigas, das que vieram com a EFTA, há quarenta anos, na mira de salários baixos. (2005).

domingo, 18 de janeiro de 2009

Os melhores do mundo. E os piores.

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CRISTIANO RONALDO foi considerado, pela FIFA, o melhor jogador de futebol do mundo no ano de 2008. O título segue-se a vários outros de importância e prestígio crescente. O homem tem talento. É reconhecido. Talvez tenha mesmo génio a fazer o que faz. Muito bem. Entre os portugueses, Eusébio e Luís Figo tinham alcançado êxitos semelhantes. São homens de excepção e jogadores extraordinários. Mesmo quem não goste ou não frequente os desafios de futebol rende-se facilmente perante a chispa, o engenho e o merecimento daquele futebolista. E de seus dois pares. Numa altura em que centenas de jogadores de futebol portugueses, naquela que é uma verdadeira nova indústria de “nicho”, se exibem nos estádios de todos os países europeus, um deles chegou ao cume. Sendo o futebol o que é, muitos foram os que jubilaram com este triunfo. É natural.
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NÃO faltou quem tentasse de imediato generalizar o mérito. Ou socializar o êxito. A família, os amigos, o clube da Madeira, os “olheiros”, os treinadores, o Sporting, as escolas de futebol, os professores, as equipas técnicas, a Federação, o inevitável secretário de Estado, o governo e os jornalistas desportivos: todos passaram a merecer honras de genialidade. Todos reivindicaram uma quota-parte de responsabilidade. Ouvindo e lendo o que se disse, o talento do homem quase desaparecia. Considerar que se trata do triunfo de um sistema, de uma organização e de um povo é um puro esbulho. A verdade é que estamos perante uma aptidão individual excepcional e que, como tal, deve ser aplaudida. Mas há, entre nós, quem tenha por hábito enriquecer sem justa causa, para não dizer à custa de outrem. Misérias do mundo, nada de novo.
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MAIS interessante e muito mais deprimente foi a maneira como a discussão e os comentários que se seguiram procuraram de seguida alargar o problema e divagar sobre “este país”. Há um grande partido, formado por optimistas bacocos, que deu largas à sua cantilena. O raciocínio, se assim se pode dizer, é simples: em muitos sectores, somos os ou dos melhores do mundo. Um Nobel, um cientista, uma fadista, um jogador de futebol, um arquitecto e um atleta: aí estão exemplos do que somos e podemos ser. Sendo assim, por que razão anda por aí tanta gente a dizer mal de nós? Por que gastam os portugueses tanto tempo a flagelar-se e a queixar-se quando a glória está ao alcance da mão? Cita-se um conjunto incerto e não identificado de pirrónicos invejosos que não suportam o êxito de alguém e que supostamente consideram que somos os piores do mundo. Por que há tantos políticos, comentadores, intelectuais, economistas, trabalhadores e “gente normal” a dizer mal do país? As suas perguntas ficam sem resposta. Mas logo acrescentam os crédulos: em vez disso, temos é de dar sinais de esperança, pensar positivo, puxar para cima e mostrar a toda a gente que podemos estar entre os melhores do mundo. Podemos todos ser Cristianos Ronaldos! Podemos todos ganhar o Nobel!
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ESTES profissionais do optimismo não resistem. Uns são pagos para isso, nas redacções, nos gabinetes dos ministros ou nas agências de comunicação. Outros sonham com glórias vistosas, efémeras sejam elas. Sonham com uma voz que se ouça no mundo. Sonham com uma excepção que não merecem. Qualquer derrota, normal e frequente no mundo inteiro, é motivo para as mais obscuras lucubrações sobre o destino fatal do país. Do mesmo modo, a vitória de um concidadão presta-se aos mais surpreendentes desvarios sobre o génio português. É uma maneira de se ser infeliz. É o modo de ser dos saloios. No próprio dia em que Cristiano Ronaldo foi ungido do seu título, a RTP oferecia-nos um fantástico debate, dito de “Prós e Contras”, durante o qual foram pronunciados todos os disparates imagináveis. Na presença, como sempre, de um angélico e extasiado secretário de Estado, um conjunto de pessoas serviram-nos os lugares comuns habituais. Todos podemos fazer igual. Há, em Portugal, génios e talentos de sobra. A ninguém ocorre, evidentemente, aludir a um êxito excepcional, mil vezes mais importante do que qualquer prémio, como seja a descida brutal da mortalidade infantil, que colocou Portugal, nesse domínio, num dos primeiros lugares no mundo. A diferença entre esta vitória e a de Cristiano Ronaldo é que a última é um feito de talento pessoal e de excepção, enquanto a primeira resulta do trabalho de centenas ou milhares de pessoas, de organização, de trabalho meticuloso, de planeamento cuidado e de sacrifício humilde. Este é um feito de muitos médicos e enfermeiros, de paramédicos e condutores de ambulâncias, de analistas e administradores. E, sobretudo, de vários governos, que fizeram o que de melhor deles se espera: deixar trabalhar, não pretender meter-se em tudo e não procurar louros eleitorais.
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DURANTE décadas, Portugal foi um país singular. Distinguia-se dos outros. Pelo analfabetismo, pela pobreza, pela duração de uma ditadura, pela censura, pela polícia política e por outros feitos de igual calibre. Gradualmente, o país foi-se transformando e foi ficando “um país como os outros”. Com cada vez menos “história”, que, como terá dito Tolstoi, é o próprio das pessoas felizes. Com bons e maus, excelentes e péssimos. Com estúpidos e inteligentes, como em todo o sítio. Com êxitos e falências, como deve ser. Só se espera que seja sempre assim. Sempre e cada vez mais. Que os portugueses não queiram de novo distinguir-se! Que ambicionem pelo dia em que, sem prémio Nobel, a maior parte dos alunos tenham notas decentes a Matemática e Português. Que lutem pelo dia em que um processo no tribunal não dê, durante anos, notícias em todos os jornais do mundo, mas que, simplesmente, chegue à sentença sem ter história. Que trabalhem o necessário para que não tenham os mais baixos rendimentos da Europa. Que sejam habitualmente recompensados ou punidos, quando merecem. Nesse dia, talvez outro Cristiano volte a ganhar. E outros indispensáveis heróis surgirão. Mas o disparate que se seguirá será bem menor.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 18 de Janeiro de 2009

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O Nuno da Académica

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APESAR DE TER NASCIDO NO PORTO,
conhecia mal a minha cidade quando, em 1974, regressei a Portugal. Na verdade, tinha vivido até então em Vila Real e na Régua, depois em Coimbra, logo a seguir em Genebra, na Suíça. Ao voltar a Portugal, instalei-me em Lisboa. O meu interesse era, naquela altura, marcadamente político, por isso só a capital me interessava.
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Ao tentar refazer a minha vida em Portugal, um dos primeiros problemas era o da biblioteca. Mau grado ter acompanhado o movimento editorial português durante o exílio (assinava uns boletins mensais da Livraria Portugal...), muito me tinha escapado. E também me faziam falta os clássicos portugueses que, nas mudanças, haviam desaparecido. Por isso me dirigi a um ou dois alfarrabistas, a fim de me ajudarem à reconstrução. Um deles foi o Nuno. O meu pai, que vivia em Vila Nova de Gaia, aconselhou-me a Livraria Académica, que tinha pertencido, em tempos, a um conhecido dele. Agora, disse-me, está lá um rapaz novo, muito simpático e muito competente.
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Segui à letra o sábio conselho. Conheci então o Senhor Nuno Canavês, que uns anos depois se transformou no Nuno da Académica, para ser agora, simplesmente, o Nuno. Um amigo. Um conselheiro. Quando vou ao Porto, quase nunca falho uma visita. Já fui bom cliente, quando estava a fazer a reconstituição da biblioteca, hoje sou menos. Mas ele continua amigo. Quando tenho a sorte de lá passar aos fins-de-semana, quase sempre encontro uns fiéis amigos que fazem da casa uma espécie de tertúlia. Se alguém quer saber alguma coisa sobre aquela cidade, coisa séria ou divertida, é ali que deve bater à porta.
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Encontrou quase todos os livros raros ou difíceis que procurei e de que lhe fiz rol. Livros sobre o Douro e o Vinho do Porto, sobre Trás-os-Montes, sobre a política no século XIX, revistas, livros de fotografia, dicionários, livros de estrangeiros sobre Portugal, Jorge de Sena e Eça de Queirós, Torga e Orlando Ribeiro, nada falhou. Para além disso, do amigo e do livreiro atento, o Nuno é também um Transmontano estudioso e dedicado à sua região. É ele o autor da melhor e mais completa bibliografia de interesse regional que vai fazendo e actualizando, com a perícia de um profissional, mas com o carinho e a arte de um amador. A nossa província, o nosso “reino maravilhoso” tem para ele uma dívida que é também de todos nós.
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Em tempos de “fast food” e de “short books”, de resumos e fotocópias, é reconfortante saber que existe uma Académica, que o Nuno está à sua frente, que os seus amigos e os seus clientes o respeitam tanto pela amizade e pela fidelidade, como pelo profissionalismo e pela seriedade.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Luz - Prior Velho, panorâmica

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Um curioso retrato do urbanismo lisboeta, visto do Prior Velho, do alto de um antigo silo automóvel que foi transformado em arquivo e depósito da RTP. Tem um pouco de tudo: auto-estrada, hortas, casas antigas, quintas, confusão, prédios modernos e um campo de futebol! Mas sobretudo um enorme caos! (2006).

domingo, 11 de janeiro de 2009

Razões

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MANUELA FERREIRA LEITE tem razão. Ela e o seu partido têm chamado a atenção para questões essenciais que o governo parece ocultar ou dar menos importância. Como, por exemplo, a economia produtiva, as pequenas e médias empresas, as famílias e os grupos sociais mais frágeis. Tem igualmente razão quando alude à carga fiscal, sobretudo das empresas, mas também das famílias. Muitas das suas sugestões foram anunciadas antes da crise financeira internacional se ter tornado pública, pesada e generalizada. Outras foram apresentadas imediatamente após os primeiros acontecimentos.
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O Governo, como todos os governos, mas este um pouco mais do que todos, não gosta de ouvir a oposição, sobretudo quando ela tem razão. Por teimosia inexplicável, manteve a proposta do orçamento intacta, mesmo sabendo que seria rapidamente modificada. Deve ser a mais curta duração de vida de um qualquer orçamento, nacional ou estrangeiro. Mais breve até do que o famoso Programa Melo Antunes, que, em 1975, ainda durou um mês! Além disso, recorreu a uma arma dos governos, sobretudo dos ciumentos: reciclou as propostas de Ferreira Leite e do PSD, assim como, em menor medida, do PP, apresentando-as agora como suas. Estes passos de valsa e estas fintas de salão são habituais na política, não constituem sequer motivo para ponderação. Mas têm o condão de excitar os políticos, sempre atentos à sua originalidade e aos seus direitos de autor.
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De qualquer modo, um ponto merece ser sublinhado. Só uma discussão séria sobre as medidas de urgência e os gastos extraordinários pode dar algumas garantias aos cidadãos. Estes tempos de aflição são também propícios a muito aproveitamento ilícito ou, pelo menos, oportunista. Seria interessante que os fundos da crise não tivessem a mesma taxa de fraude que tiveram, nos primeiros tempos, os fundos da CEE. O que está a ser feito pelo governo, bem e mal ao que parece, está a ser despachado a grande velocidade. A isso obriga a dimensão das dificuldades, mas também a perspectiva eleitoral. Por outro lado, os agentes económicos, que já perceberam que pode haver facilidades, estão activos no pedir e mostram-se lestos nos projectos. Tudo isto põe vários problemas. Por um lado, é de facto necessário agir depressa, antes que morram os que precisam de apoio ou estímulo. Por outro, esta urgência é terreno fértil para os habilidosos. Seria desastroso que os planos de urgência fossem uma recompensa para os mais poderosos, para os que não precisam ou para os que se preparam para lucrar com a crise. Finalmente, a urgência e as eleições, em conjunto, são um alimento dos projectos inúteis ou menos úteis, das obras dispensáveis e das realizações com custos excessivos e benefícios minguados. Mais: há risco evidente de ajudar quem já não merece. Com efeito, adiar o fim inelutável de uma empresa pode significar simplesmente desperdiçar recursos e agravar as situações.
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Só um esclarecimento cabal das condições e dos mecanismos criados pode evitar as consequências nefastas fáceis de imaginar. Não é preciso um plano de “unidade nacional”, mas é necessário que todos saibam o que se faz e como se faz, incluindo a oposição, as empresas privadas, os profissionais e os sindicatos. Caso contrário, teremos inevitavelmente fraude e desperdício.
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JOSÉ SÓCRATES tem razão. À manifestação de disponibilidade para um debate com o Primeiro-ministro, expressa por Manuela Ferreira Leite, Sócrates mandou responder que não discute os planos do governo da maneira que ela pretendia, mas só o faz no Parlamento. Por uma vez, não é possível acusar o Primeiro-ministro de autoritarismo e de não querer debater com a oposição. Na verdade, é no Parlamento que estas coisas se discutem, é ali, ou deveria ser ali, que os esclarecimentos se fazem. À vista de todos, sob observação da imprensa, sem recados nem notícias dirigidas e com ampliação pela televisão e pela rádio. Com a possibilidade de conceder livre acesso à sociedade e aos grupos de interesses.
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A situação de Manuela Ferreira Leite, que não é deputada, é ou deveria ser considerada anormal. Em certo sentido deveria mesmo ser evitada. Mal ela foi eleita presidente do partido, logo se percebeu que acabaria por tropeçar neste problema. O fenómeno não é novo e traduz a pouca importância que se dá em Portugal ao Parlamento. É considerável o número de chefes de partido que, durante parte ou todo o seu mandato, não eram deputados. Vítor Constâncio, Jorge Sampaio, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Marcelo Rebelo de Sousa, Manuel Monteiro, Paulo Portas e Luís Felipe Menezes são exemplos conhecidos. Sem falar em Álvaro Cunhal que, quase sempre eleito, praticamente não punha os pés em São Bento. Ou antes, só o fez com alguma assiduidade durante o período revolucionário. Depois de normalizada a vida parlamentar, deve ter achado uma maçada e uma perda de tempo. Mas não há só os grandes chefes. Um número elevado de ilustres, se não forem para o governo, vão, depois de eleitos, à sua vida. Alguns não desejam mesmo ser eleitos, mas ficam à espera de um eventual lugar no Governo. Normal seria, por exemplo, que os ministros fossem todos provenientes do Parlamento. Talvez desta simples praxe resultassem melhorias significativas tanto para o Parlamento como para o governo. Neste último, por exemplo, teríamos menos directores-gerais que se dizem técnicos e não políticos, frequentemente incapazes de pronunciar umas frases sobre qualquer assunto político que não seja da sua restrita função administrativa e técnica. Simultaneamente, no Parlamento, veríamos talvez mais gente competente e menos pessoas que mal acabaram o tirocínio das juventudes partidárias.
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Tudo, no nosso sistema político, parece feito para diminuir o Parlamento. Até a eleição directa dos chefes, consagrada agora pela maioria dos partidos parlamentares, é, além de uma concessão despudorada ao populismo, uma facada no Parlamento. Sem falar, evidentemente, nos hábitos adquiridos de dar o primado à televisão para os debates, os anúncios de medidas e as tomadas de posição. Discuta-se no Parlamento. Dê-se liberdade aos deputados. E se assim se fizer, talvez um dia o Parlamento tenha vida.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 11 de Janeiro de 2009

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Os meus livros

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UMA DAS MAIORES FRUSTRAÇÕES da minha vida consiste em não viver com os meus livros todos! Reunidos e arrumados, debaixo do mesmo tecto. Actualmente, tenho-os distribuídos por três locais diferentes: a minha casa, o meu escritório e o meu gabinete na Universidade. Sendo que tenho ainda umas caixas deles guardadas num antigo escritório.
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Por reflexo atávico, nunca deito fora um livro. Seja qual for. Isto faz com que o problema do espaço é crescente e só se resolveria com muitas centenas de metros quadrados. Não me queixo da minha casa, nem do meu escritório, pois são razoavelmente grandes. O problema é que os livros são ainda maiores. Houve alguém que disse que, ao contrário do provérbio estúpido, “o saber ocupa lugar”! Ocupa sim! E muito!
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O arranjo dos meus livros é relativamente clássico. Em primeiro lugar, por temas de trabalho ou interesse. Por exemplo, tenho secções mais ou menos organizadas de: História de Portugal moderna e contemporânea; sociedade portuguesa; estatísticas; Douro; vinhos; política; fotografia. Depois tenho secções por género: ficção; poesia; ensaio; pintura. Ou então: grandes clássicos do pensamento.
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Outra secção, enorme, é a de dicionários, vocabulários e enciclopédias. Não vivo nem trabalho sem um permanente recurso a estes instrumentos. Como “estou dividido” entre três locais, tenho muitas vezes de comprar dicionários e enciclopédias repetidos. Há um costume que estranho e que consiste em, numa mesa de amigos, ou num escritório da universidade, se discute um qualquer tema e há uma controvérsia sobre um nome, um autor, uma data, enfim, um facto. Pode estar-se a discutir horas, aos berros, e quase ninguém tem o reflexo simples de ir buscar um dicionário e encontrar a resposta. Tenho amigos que são capazes de discutir durante duas horas a data de nascimento de Masaccio! Ou o cognome de D. Afonso II! Têm mais prazer nisso do que simplesmente encontrar a verdade e passar à frente!
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Gosto muito de revistas, que vou lendo todos os dias, mas fujo delas, isto é, não as guardo. Nem revistas nem jornais. Não consigo viver com pilhas de jornais e revistas que se deixam de lado “para um dia ler” ou “para um dia recortar”... Já sei que nunca lerei, nem recortarei. E ocupam espaço a mais. E são tentações para “fazer colecção”, colecção pela colecção (é preciso ter os números todos...), o que me irrita. As poucas “colecções” de revistas ou livros que tenho (como, por exemplo, a “Análise Social”) são as que se tornaram indispensáveis para trabalhar e escrever. Quando tenho mais de três exemplaras do “Economist” ou da “The New York review of books”, faço uma razia, tiro as páginas que realmente quero guardar e... tudo para o lixo!
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Dentro de cada secção da biblioteca, a intenção original, sempre reafirmada, nunca realizada, seria a de ter os livros arrumados por autor ou por época... Eis que não se consegue. Há um permanente desajuste entre o espaço previsto na estante, a dimensão da parede e a quantidade de livros que surge sobre esse tema... Já desisti. Há autores que, por acaso ou por necessidades de trabalho, estão bem colocados, com as suas obras seguidas... Há outros que estão divididos por várias estantes. Dentro das mesmas secções, claro, que nesse aspecto sou mais cumpridor.
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Há autores de quem tenho muitos livros. Sempre à espera de que sejam publicadas as “obras completas” em edição compacta, para poupar espaço. Assim fiz com Marx, Tocqueville, Malraux, Proust, Orwell, Chateaubriand, Tolstoi, Eça, Camilo e outros. O problema é que saem as obras completas, na Pléiade, na Aguilar, na Folio ou na Lello, compro-as imediatamente e... fico com todos, os dispersos e os reunidos em papel bíblia!
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O problema da diversidade de formatos não tem resolução. Por mais engenhocas que se seja. Já não vale a pena lutar. Ainda por cima, há cada vez mais a mania de fazer livros de formatos estranhos. Para dar nas vistas. De repente, aparece uma revista ou um livro (daqueles de mesa de café...) com 40 cm por 40 cm! Ou com 60 cm de altura! Não há nada a fazer. A não ser arranjar uma vala comum para esses descarados. Há gente assim, está sempre com invenções... Para os livros de fotografia, que são geralmente de grandes dimensões, mandei fazer uma estante adequada. O problema é que, pouco depois, começou a moda de fazer livros de fotografia em formato de bolso (alguns deles muito bons!). O que faz com que certas estantes mais se parecem com a boca de um velho e grande desdentado, com altos e baixos.
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Detesto livros no chão, livros em cima de armários, livros em locais pouco apropriados (quartos de banho, cozinhas, dispensas, garrafeira, etc.), livros nos corredores, livros nos vãos das janelas, livros em arcas, livros em caixas de cartão... Para já não falar de livros colocados na horizontal, por cima de livros arrumados na vertical! Ou de livros encostados na oblíqua! Por isso vou periodicamente condenando mais uma parede. Isto é, mando fazer estantes, do chão ao tecto, a fim de aumentar o espaço disponível. O que retira parede para ter algumas fotografias penduradas e bem visíveis diante de mim. Por vezes, quando olho, sinto-me cercado. Pior, sinto que vivo numa biblioteca. Que horror! E se, de repente, chegassem leitores?
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Raramente empresto livros. E só o faço a meia dúzia de pessoas de muita confiança. Se um dia alguém não me devolve um livro (em boas condições...), nunca mais! Vai direito para a lista negra! Raramente peço emprestados livros. Quando preciso, compro. Ou vou à biblioteca da Universidade. Mas, de preferência, compro. Reconheço que há qualquer coisa de perverso (ou de fetiche...) na posse de um livro.
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Gosto de comprar livros em boas livrarias, aquelas onde se faz perguntas e se obtém respostas. Onde se pode encomendar um livro. Acontece que já quase não há dessas livrarias. Compro também na FNAC, pois claro, onde a confusão e a desordem são totais, mas há lá empregados sabedores. Detesto comprar livros nos supermercados. E acontece-me frequentemente comprar livros em aeroportos. A princípio, irritava-me com a ideia de mandar vir livros da Amazon e de outros comerciantes da Internet. Mas depressa percebi que aquela via era genial. Encontra-se quase tudo o que se procura e compro muitos livros que não procurava, deleite supremo. Ainda por cima são baratos e chegam em boas condições. E é um verdadeiro prazer receber aqueles pacotes muito bem feitos, em casa, com os livros encomendados! Como é um prazer oferecer, à distância, um livro a alguém que se ama, por intermédio da Amazon, com embrulho e dedicatória!
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Detesto livros com traços de leitura feitos por outros. Notas, sublinhados, comentários ou exclamações. Quero lá saber o que outros disseram a propósito do que estou a ler! Eu próprio faço pouco uso dessas técnicas anti-ecológicas! Tomo notas em cadernos, folhas, etc., que por vezes guardo entre as páginas.
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Tenho alguns livros muito valiosos. Primeiras edições raras. Livros ilustrados dos séculos XVIII e XIX. Livros raros de carácter histórico. Mas em geral vieram parar às minhas mãos por amor, acaso, presente, destino, herança... Ou porque não existem edições modernas mais adequadas à leitura. Na verdade, não gosto de tratar os livros como se fossem peças de ourivesaria, de que, aliás, também não gosto. Ainda se fosse, por exemplo, uma “Bíblia” de Gutemberg, glosada e comentada por Lutero!... Ou “O Príncipe”, anotado à mão por Napoleão!...
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Ainda não consegui realizar um sonho estúpido que tenho: fazer fichas, em Access, de todos os meus livros. Depois, fazer, também em Access, fichas de leitura, à medida que vou lendo. Mas rapidamente compreendo que tal método acabaria por tirar prazer e interesse na leitura e faria de mim uma espécie de “Robot” ou de guarda-livros. Na verdade, o que distingue a minha biblioteca de uma qualquer biblioteca pública é exactamente isso: visto-a. Como um casaco usado. Vivo com ela na pele. Ela tem tanto a minha marca, como eu tenho a dela. É mesmo uma união a sério, para a vida, para o melhor e o pior.
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Um dia, um amigo de poucas leituras veio a minha casa, olhou em volta, coçou o queixo e disparou: “Você leu isto tudo?”. Confesso que, durante segundos, fiquei perplexo. Quase envergonhado. Com vontade de mentir e lhe dizer que sim, tinha ido tudo. Mas percebi a tempo que a reacção, além de covarde, era estúpida. Ler todos os livros que se tem em casa? Obras completas? Obras de referência? Manuais e tratados? Livros de estatística? Livros académicos? Dicionários? Enciclopédias? Percebi que só há duas hipóteses. Quem leu tudo o que tem casa, tem meia dúzia de livros. Ou está a mentir.
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Quantos livros tenho? Muitos!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Luz - Pórtico da Lisnave

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É este o grande pórtico da Lisnave, na Margueira, o maior que jamais se fez em Portugal. Ainda pode funcionar, apesar de todo o estaleiro estar abandonado. Subi lá cima para tirar fotografias de Lisboa. (2006).

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Aniversário do 'Sorumbático'

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COMPLETA HOJE quatro anos de vida este simpático blogue! Ao seu Mestre, Carlos Medina Ribeiro, um abraço sincero de parabéns e votos de longa vida!
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Como se diz agora, mas nem sempre se faz, tenho de declarar interesses. Com efeito, o Sorumbático acolheu-me nas suas páginas e todas as semanas as minhas crónicas do Público são lá publicadas. Mais: por iniciativa do Medina Ribeiro, outros textos (ou mais antigos ou resultado de intervenções e conferências) são também lá publicadas. Não contente com isso, as minhas fotografias, reunidas sob o título de LUZ, são, por iniciativa do Medina Ribeiro, semanalmente editadas. Finalmente, foi ele que imaginou este projecto de manter, em paralelo, um segundo blogue, o Jacarandá, no qual reúno toda a minha colaboração e que serve subsidiariamente para "aliviar" o Sorumbático de textos excessivamente longos. Como nada sabia de blogues e ainda sou hoje razoavelmente incapaz, tem sido ele que me organiza este blogue. Por tudo isso, estou-lhe grato.
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Mas as razões para felicitar o Sorumbático não terminam aqui, nestes interesses egoístas. Na verdade, tenho honra em colaborar com ele e com todos os restantes cronistas. No conjunto, é uma equipa diversificada, plural e interessante. Tem pontos de vista críticos e independentes, inclui humor, novidades e recebe frequentemente visitantes interessados e interessantes. Apesar de não conhecer muitos blogues (visitei, ao todo, talvez três ou quatro dezenas), sublinho também a boa educação deste blogue e dos seus colaboradores. Parece banal, mas não é. Já vi blogues detestáveis onde a grosseria transborda e onde, sob a capa do anonimato, se dizem e publicam horrores.
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Longa vida ao SORUMBÁTICO!

domingo, 4 de janeiro de 2009

A luta e os problemas

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ALÉM DA CRISE económica e financeira, o confronto entre o Governo (e o Parlamento) e o Presidente da República foi o facto singular marcante do fim do ano e do princípio do novo. Emocionou toda a gente e muitos ficaram inquietos. Um conflito entre os órgãos de soberania, em tão difícil momento da nossa vida colectiva, é aquilo que menos se deseja. Mas não pensaram assim os partidos e o governo. De qualquer maneira, o facto não é inédito. Se olharmos para trás, veremos que, em praticamente todos os mandatos presidenciais e de legislatura, houve afrontamentos parecidos. Entre os Primeiros-ministros Mário Soares, Sá Carneiro e Pinto Balsemão, de um lado, e o Presidente da República Ramalho Eanes, do outro. Entre o PM Cavaco Silva e o PR Mário Soares. E entre o PM Santana Lopes e o PR Jorge Sampaio. A principal excepção parece ter sido quando o PM era Cavaco Silva e o PR Ramalho Eanes, mas foi de curta duração. Nos casos dos PM António Guterres e Durão Barroso e respectivos PR Mário Soares e Jorge Sampaio, houve divergências, mas, geridas discretamente, tiveram reduzido impacto público.
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Neste breve elenco, merece ser sublinhada uma coincidência: entre protagonistas do mesmo partido, os conflitos foram menores ou menos públicos. Casos houve, no passado, em que o Parlamento entendeu alterar os poderes do Presidente, como na revisão de 1982. Mas tal foi feito, bem ou mal, seguindo as regras estabelecidas. Desta vez, é a primeira em que o Parlamento e o Governo decidem condicionar o Presidente e mudar os procedimentos consagrados.
De qualquer modo, na actual crise, o facto em si, o conflito, não é inédito, nem sequer de molde a preocupar excessivamente os cidadãos. As rivalidades e a competição política entre titulares da soberania ou entre dirigentes partidários, mesmo se ocupando cargos nacionais de relevo, são frequentes e normais em democracia. Mais ainda, estes conflitos são inerentes ao sistema semipresidencialista desenhado pelos constituintes e seus revisores. O sistema está condenado a produzir este género de querelas. Surgiu, nos anos setenta, por várias razões. Por influência francófona, então vigorosa, hoje desaparecida. Por perversão intelectual dos juristas constituintes. Por tradição vinda do Estado Novo. Por artimanha e necessidade, quando se tratava de equilibrar as forças partidárias civis e as militares. E por receio do “caudilhismo”, que em Portugal leva vários nomes, entre os quais o de “sidonismo”. As circunstâncias genéticas estão ultrapassadas, ficou-nos o semi-presidencialismo. E seus inconvenientes.
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O QUE É GRAVE e preocupante, no caso actual, não é a luta em si, mas os problemas em causa. A forma é emocionante, mas o conteúdo é sério e as consequências inquietantes. O Estatuto dos Açores, uma questão menor, foi aproveitado para pretexto de afrontamento. A deslealdade governamental e parlamentar é um facto grave e, nas suas consequências, irreparável. Foi feita, legal e furtivamente, uma espécie de revisão constitucional, como é apanágio dos países ditatoriais. Alteraram-se equilíbrios fundamentais de poderes e competências sem respeitar as formas adequadas. O partido maioritário manipulou o Parlamento. Os partidos parlamentares usaram o Parlamento para funções menos nobres. O exame sucessivo da constitucionalidade é a única maneira possível de evitar que esta ilegitimidade sirva de precedente para o futuro.
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A POSIÇÃO do Presidente da República, por definição o garante da unidade nacional e do Estado, deveria ter prevalecido sobre a decisão do Parlamento, por natureza o representante da diversidade do Estado. Neste caso, em que estavam em discussão as relações entre partes do Estado, ou antes, entre o todo e uma das suas partes, ainda mais se justificaria que a posição do Presidente fosse respeitada e que o equilíbrio existente não fosse alterado. O Parlamento e o Governo entenderam sobrepor-se. A normalidade constitucional e a clareza dos processos políticos ficaram a perder.
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OS ÓRGÃOS de poder regional passam a ter uma posição política, processual e protocolar capaz de condicionar os órgãos de poder nacional. Merecem uma deferência e uma consideração (e aqui trata-se de poder político, não de cerimónia) que a Assembleia da República não merece. Adquiriram, a partir de agora, uma força única na República: nenhum órgão nacional, presidente, parlamento ou governo, pode legislar livremente sobre a região dos Açores (imagina-se que a Madeira virá a seguir).
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É DE LAMENTAR o comportamento do Governo. Não se sabe por que razão Sócrates e o PS quiseram alterar o estatuto naqueles pontos controversos. As razões óbvias parecem evidentes. Por um lado, os socialistas pretendem delimitar os seus territórios pré-eleitorais e acham que lhes convém um confronto com o Presidente. Por outro, nada mais fizeram do que manter a tradição: são reféns das regiões autónomas e dos seus dirigentes, no que, aliás, são acompanhados por todos os restantes partidos. Mas estas razões, por demasiado óbvias e mesquinhas, não chegam para perceber os seus pontos de vista. O Primeiro-ministro e o Parlamento devem aos cidadãos uma explicação. Não basta dizer que têm pontos de vista diferentes do Presidente, como afirmam os seus porta-vozes subalternos, têm de explicar os fundamentos da sua decisão e as vantagens de tão tosco estatuto.
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CONFRANGEDOR, neste processo, foi o Parlamento. E, com ele, evidentemente, os grupos parlamentares e os partidos. Foram incompetentes e fizeram tolices. Foi possível, por exemplo, aprovar uma lei que continha oito disposições inconstitucionais! Mostraram um comportamento contraditório e arrogante: vários partidos diziam uma coisa na televisão e votavam de modo diferente. Foram covardes e cederam à chantagem regionalista. Finalmente, cometeram acto impensável: automutilaram-se, isto é, abdicaram de competências e desistiram de funções de Estado.
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Habituámo-nos a tudo. Às querelas inúteis. À mediocridade dos partidos. Aos conflitos entre governo e presidente. À chantagem que as regiões autónomas exercem sobre a República, os órgãos de soberania e os partidos. Ou à pobreza de espírito e à subserviência dos deputados. Difícil, apesar de tudo, é habituarmo-nos a tão inepto Parlamento.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 4 de Janeiro de 2009

sábado, 3 de janeiro de 2009

As duas luvas

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TINHA DE SER. Depois do discurso de 29 deste mês, sobre o estatuto dos Açores, era quase obrigatório que a luva branca substituísse a de boxe, então utilizada. Há três dias, o Presidente Cavaco Silva acusou, com razão, o governo e o Parlamento (assim como os partidos políticos que o compõem) de deslealdade, de colocar os interesses partidários de ocasião acima do interesse nacional e de aprovar soluções absurdas.
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A intervenção do Presidente da República, a propósito do Ano Novo, traduz as suas preocupações essenciais (que pertencem ao domínio da economia), reflecte as suas especiais competências (económicas e financeiras) e traça um retrato inquietante da situação do país. Apenas alude, de passagem, aos partidos ou ao governo, quando os convida a deixar de lado as querelas desnecessárias e diz que nem sempre se percebe a agenda da classe política. Mas o elogio da verdade e a crítica das ilusões e das fantasias também lhes podem ser dirigidas.
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Para o resto, o mais importante, os seus comentários são oportunos. Recorda a quase estagnação em que vivemos e os oito anos de crescente atraso de Portugal relativamente aos países europeus. Recomenda precaução nos investimentos públicos. Apela às energias virtuais ou potenciais dos portugueses. E relembra aquelas que deveriam ser as prioridades estratégicas dos poderes públicos. As suas referências aos agricultores (que não recebem os fundos europeus a que têm direito), aos jovens sem emprego, aos pequenos comerciantes e aos trabalhadores desempregados são honestas e próprias da quadra.
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Uma reflexão breve sobre estes dois discursos sugere conclusões graves. Por culpa do Governo e dos partidos, as boas relações entre o Presidente e o Governo ou o Parlamento terminaram. Por vontade do Governo, que quis designar um adversário, a cooperação estratégica parece agora resumir-se às obrigações de cada um. O “sistema Sócrates” só tem agora um contrapoder real, o do Presidente da República.
«Público» de 2 de Janeiro de 2009

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Luz - Lisnave, interiores 2

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Esta é uma das oficinas abandonadas da Lisnave. Nos telhados, percebe-se, em letras feitas com telhas de vidro, o nome da empresa para ser lido de avião. (2006).