domingo, 28 de junho de 2009

Futilidades

É EXTRAORDINÁRIA a maneira como, entre nós e desde que os partidos políticos entrem em cena, qualquer pequeno problema de menor importância assume rapidamente as dimensões de catástrofe ou de espectro ameaçador. Ou de grande divisor de razões e sentimentos. Agora, foi a vez das datas das eleições. O que já se disse deixa invejoso um escritor de ficção científica! Partidos, comentadores e analistas multiplicam-se em sofisticadas reflexões acerca das vantagens e dos inconvenientes de 27 Setembro e de 4 e 11 Outubro. O nó da questão era a simultaneidade das eleições autárquicas e legislativas. Questão fútil e sem consequências, mas que teve a capacidade de excitar o condomínio fechado em que se transformou a política nacional. A marcação da data, pelo Presidente da República, pôs termo à discussão. Mas o que foi dito, durante semanas, não desapareceu. E revela o modo como se pensa a democracia.

Um conjunto de argumentos põe em relevo as vantagens partidárias. Se os votos forem separados, ganham uns partidos, se forem no mesmo dia, ganham outros. A mesma coisa, ou parecida, se as legislativas se realizarem antes ou depois das autárquicas. Quer isto dizer que ninguém tem legitimidade para preferir uma data ou uma ordem: imediatamente lhe saltam em cima com acusações de interesses ilegítimos e de oportunismo. Quem assim faz, esquece-se de que os argumentos são totalmente reversíveis.

Outro argumento é o dos custos. Nem sempre se percebe se estamos a falar de custos directos para os votantes, despesas para os partidos ou encargos públicos. De qualquer modo, quem alude aos custos, está em geral a pensar nos interesses dos partidos. Com efeito, quem quer as eleições separadas, garante que a democracia bem merece um punhado de euros, enquanto os que desejam actos conjuntos referem a poupança assim obtida. É, no entanto, certo que a despesa ou a poupança não parecem um argumento muito forte.

O aparentemente mais sério argumento é o da abstenção ou da participação. Também neste domínio, a consistência não é visível. Juntar eleições, para uns, significa mais participação; separá-las, para outros, teria o mesmo efeito. Não consta que haja solidez nas razões apontadas. Nem sequer estudos concludentes. A única dúvida razoável é a que alude ao cansaço: maçados com duas deslocações seguidas à distância de uma ou duas semanas, os eleitores poderiam optar por apenas uma. Mas são meras suposições. Além de que não se sabe muito bem se seria a primeira ou a segunda a sofrer dessa terrível fadiga. Como não se sabe se o cansaço é argumento mais importante do que a natureza das eleições e o que está em causa. Apesar de anónimas e limitadas aos emblemas dos partidos, as legislativas chamam mais eleitores. Mas as “grandes figuras” municipais também têm algum efeito.

Reflexão tortuosa é a que se apoia na previsão das intenções dos eleitores. Nas autárquicas, diz-se, os cidadãos querem escolher um presidente de câmara e bater no governo. É estranho, mas é o que consta. Nas parlamentares, os mesmos eleitores esquecem tão vis desejos e designam racionalmente o governo que preferem. As estatísticas eleitorais sugerem alguma coisa, nomeadamente o facto de poder haver diferenças na orientação de voto entre as duas eleições, assim como uma maior presença do PSD nas autarquias (o que não é uma regra absoluta). Mas não são constantes que permitam certezas.

O último dos argumentos é o mais brutal. Juntar eleições teria como efeito criar a confusão nos eleitores. Já desorientados com a existência de três boletins de voto (freguesia, assembleia municipal e vereação camarária ou presidente da Câmara), ficariam completamente perdidos com a eventualidade de terem de lidar com quatro. Muitos votos ficariam assim perdidos. Brancos e nulos, possivelmente. No partido errado, com certeza.

É comovedor este desvelo dos partidos e de alguns comentadores encartados. O esforço que fazem para cuidar dos pobres cidadãos, tão vítimas de manobras, tão deficientes mentais e tão incapazes de decidir por si! A minuciosa atenção que prestam aos eleitores, tão frágeis e vulneráveis, que perdem literalmente a cabeça perante quatro boletins de voto! Se repararmos bem, quase todos os argumentos conduzem ao mesmo: a incapacidade dos eleitores, a sua falta de discernimento, o seu cansaço fácil e a rapidez com que se confundem. Na verdade, esta discussão ridícula tem um só objectivo, o de começar a arranjar explicações para os fenómenos que os incomodam: derrotas eleitorais e elevadas taxas de abstenção. Na noite (ou nas noites) das eleições de Outubro, já sabemos qual a justificação que mais vezes se vai ouvir: a data das eleições é a culpada.

A propósito das datas e seguramente em consequência da abstenção nas europeias, já começou a ladainha piedosa dos que querem o bem dos cidadãos e a nobreza da democracia. Já se ouvem propostas para “melhorar o sistema” e dar novo “tónus” à democracia. Em vez de se inquietarem com a fictícia democracia europeia e a inutilidade do Parlamento europeu, propõem que o voto seja obrigatório! Em vez de pensarem na reformulação de alguns processos, designadamente no voto pessoal, sugerem punições para quem escolhe abster-se! Preparemo-nos, pois, para a próxima revisão da Constituição. Lá veremos dispositivos para reforçar a democracia. Sempre com um denominador comum: a cegueira perante as deficiências do nosso sistema e a vontade de resolver os problemas com normas legais e punitivas. Já agora, uma modesta contribuição: as eleições deveriam ser obrigatoriamente em dia de chuviscos. Mas não de mais, que levam as pessoas a ficar a casa, nem de menos, que deixam os eleitores ir à praia.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 28 de Junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Luz - Peregrinos, Fátima

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Respeito os peregrinos, com certeza, mas faz-me impressão o esforço físico, o sacrifício doloroso, que cada peregrino faz para pedir uma graça ou agradecer um favor da Providência! E creio que os sacerdotes deveriam ser mais activos em denunciar esses esforços sobre-humanos e em explicar aos fiéis que há limites para tudo! (1998).

domingo, 21 de junho de 2009

Democracia e competência

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O “MANIFESTO" DOS ECONOMISTAS,
propondo um período de reflexão sobre os grandes projectos de obras públicas, foi bem aceite. O que sugerem é razoável. Nada acrescentou ao que muitos, incluindo eles próprios, vêm dizendo há meses. Mas, desta vez, o facto assume nova dimensão. Na verdade, fizeram-no em conjunto, em papel escrito e assinado, com um suplemento de responsabilidade. São treze antigos ministros do PS e do PSD: oito das Finanças, dois da Economia, dois da Indústria e um da Agricultura. Quase todos professores universitários. Sem demagogia, fazem o diagnóstico severo da economia e das finanças. Pedem seriedade e rigor. Alertam para a hipoteca que, graças ao endividamento, pesa sobre as gerações futuras. Propõem uma avaliação dos grandes investimentos. Sobre os fundamentos desta tomada de posição, pouco há a dizer. O governo deveria ouvi-los, ler o “manifesto” com atenção e seguir o que eles dizem. Sem orgulho, nem machismo. Sem teimosia, nem cruzada do tipo “Incineradora”. Consta, aliás, que é a operação em curso neste fim-de-semana: suspender o TGV e outras grandes adjudicações. É, evidentemente, o resultado das eleições europeias e a proximidade das legislativas. Mas também é um alívio. Sem dinheiro, inseguro quanto às decisões e temendo a ratoeira da sua propaganda, o governo queria pretextos para suspender. Entre o esforço de parecer um falso devoto de doçura e diálogo e a leitura atenta deste “manifesto”, o governo encontrou a saída.
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O mais interessante é o acto em si próprio. Tem todo o aspecto de ser um gesto de “profissionais sérios”. De “gente competente”. De professores honestos e isentos, preocupados com o interesse público. Parece e é. Mas faz logo pensar num velho fantasma: o do governo das competências. Por que razão não são estes homens responsáveis por decisões de grande envergadura? Por que não estão todos, ou quase todos, no governo ou no Parlamento? Por que motivo os ministros e os deputados não os ouvem? Será que os competentes se querem substituir ao governo e aos políticos?

A ideia do “governo dos competentes” é velha. Vem do século XIX. Andou pela Europa e passou por França e Portugal. Entrou, viva, nas primeiras décadas do século XX. De vez em quando emerge. É sempre uma ideia antidemocrática. Pressupõe que a democracia, interessada nos votos e especializada em demagogia, não é capaz de chamar a si as competências técnicas. Traduz a sensação de que os políticos, preocupados exclusivamente com o curto prazo, tomam decisões no seu interesse e no dos seus partidos, não a pensar no país, nem no longo prazo. Finalmente, implica a crença em que a decisão política é vulnerável à corrupção ou a interesses menos lícitos.
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Há aqui verdade. Mas também falsidade. Muitos políticos são ou foram técnicos. Muitas decisões técnicas podem estar erradas. Os técnicos não são invulneráveis à corrupção ou aos interesses particulares. Mais importante é o problema da responsabilidade. A dos técnicos será eventualmente perante os seus pares, nunca é perante a população. No entanto, é verdade que os motivos pelos quais os políticos decidem não têm sempre como fundamento as razões técnicas. Mesmo o ditador do Estado Novo percebeu que a decisão puramente política tinha as suas insuficiências. O antigo Conselho Superior de Obras Públicas foi uma resposta a essa preocupação.
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Ora, o regime democrático procedeu, gradualmente, a um esvaziamento técnico e científico dos seus processos de decisão. Os pareceres científicos e desinteressados, as avaliações técnicas e o conselho fundamentado foram paulatinamente afastados. As opiniões que interessam são as que apoiam a decisão política previamente tomada. Chamam-se grandes consultoras internacionais e agências de todo o tipo a quem se pede que fundamentem uma decisão, não que estudem várias e sugiram a melhor. Requisitam-se os serviços de escritórios de advogados e de empresas de consultoria a quem se encomendam e pagam substancialmente estudos que confirmem o que os políticos querem. Agências, escritórios e consultores têm o seu interesse primordial que é o de fazer negócios e serem escolhidos pelos governos para essas tarefas justificativas. Pior ainda: a lei que regula a selecção e a nomeação dos altos funcionários da Administração Pública, aprovada por quase todos os partidos, é o mais legal e eficaz instrumento de subalternização da competência e de consagração de fidelidade partidária como factor de decisão. Legalmente, os mandatos dos directores-gerais e outros funcionários superiores terminam com as eleições e com o fim da legislatura. Um novo governo tem total poder para demitir e nomear quem quiser, da “sua confiança política”, diz a lei. Enquanto este sistema durar, a competência técnica é um argumento menor.
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Os autores deste oportuno “manifesto” não defendem o “governo das competências”. Eventualmente, dizem que a competência técnica deve ser associada à decisão democrática. A responsabilidade pelas decisões, por mais sérias e graves que sejam, pertence aos políticos que devem prestar contas perante a população. Mas isso não se faz sem que haja informação suficiente para toda a gente interessada. O que não é o caso em Portugal. E isso também não deve dispensar o recurso à inteligência, ao estudo técnico e científico, à competência profissional e ao juízo isento. O que é raro em Portugal. De Alqueva a Sines, do aeroporto ao TGV, de algumas barragens à ferrovia, das auto-estradas aos estaleiros navais, das SCUT às redes de fibra óptica e dos bairros sociais aos metropolitanos: é longa a lista de investimentos públicos mal concebidos, mal estudados, com política a mais e estudo independente a menos, com muita demagogia e pouca ciência. A legislação é medíocre. Quase todos os diplomas legais têm de ser corrigidos nos dias ou semanas que sucedem à publicação. Há códigos de direito, que deveriam durar alguns anos, mas que são corrigidos dias depois da aprovação. As leis da Assembleia e os decretos-leis do governo têm estudos a menos, contas mal feitas, justificações dogmáticas e a investigação sobre as consequências a prazo é praticamente inexistente. Em suma, tanto o processo de feitura das leis como o método de tomada de decisões traduzem esta inegável realidade: no nosso país, a democracia é incompatível com a competência técnica e a ciência.
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É realmente difícil viver em democracia em Portugal. É por isso que a aspiração democrática é tentadora. É difícil que a democracia, em Portugal, conviva com a seriedade. É por essa razão que a democracia é aliciante.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 21 de Junho de 2009

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Luz - Mulher – Covas

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Numa aldeia do Norte, em Covas do Douro, perto do Pinhão, uma mulher transporta à cabeça a lenha que foi apanhar à vinha. (1979).

domingo, 14 de junho de 2009

Observar

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A NOTÍCIA é simples. O Tribunal de Contas fez um estudo de algumas obras públicas. Cinco ao todo: a ponte Rainha Isabel, em Coimbra; a Casa da Música, no Porto; o túnel do Terreiro do Paço, em Lisboa; o túnel do Rossio, também em Lisboa; e o aeroporto Sá Carneiro, no Porto. Foram detectados atrasos, no acabamento das obras, entre um a mais de quatro anos, o que dá, em média, o dobro do tempo de construção para cada obra. As derrapagens financeiras nos custos elevaram-se, no total, a 241 milhões de euros.
Entre as suas conclusões, o Tribunal de Contas sugere que seja criado um Observatório das Obras Públicas, com as funções de acompanhar e vigiar o processo de construção, o cumprimento dos calendários e a evolução dos custos. Uma entidade deste género estaria já prevista na lei, mas nunca teria funcionado.
O governo, pela voz de representante do Ministério das Obras Públicas, concordou e garantiu que tal Observatório seria criado e entraria em funcionamento no segundo semestre de 2009. Segundo a mesma fonte, a sua “operacionalização” está dependente de uma certificação de “software”. O Tribunal de Contas congratulou-se com a resposta pronta do governo.
Muitos foram os que celebraram a intenção do governo. Até um ex-ministro das Obras Públicas, João Cravinho, aprovou, não sem franzir o sobrolho: “O que é preciso é fazer cumprir a legislação. O fundamental é estabelecer, nas regras de contratação, as disposições que permitam tornar extremamente penalizadora a derrapagem".
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O PROCESSO de criação deste Observatório, cuja utilidade está por provar, só tem um paralelo: o das obras públicas que se propõe observar. Na verdade, há pelo menos cinco anos que este Observatório está em projecto e foi anunciado. O organismo de combate à derrapagem foi o primeiro a derrapar!
Em Novembro de 2004, com efeito, o então Ministro das Obras Públicas, António Mexia, foi ao parlamento anunciar a criação de um Observatório das Obras Públicas. Nada aconteceu, que se saiba. Dois anos depois, em Maio de 2006, o novo ministro, Mário Lino, anunciava a “criação de um Observatório das Obras Públicas com vista a garantir um maior rigor na observação, atenta e sistemática, da Obra Pública, o que permitirá conhecer as causas dos desvios nos custos e nos prazos de execução das obras, e promover o conjunto de acções conducentes à sua eliminação”. Ainda nesse ano, o governo renova as suas intenções de “integrar num só documento toda a legislação publicada, criar um Observatório de Obras Públicas, de modo a determinar as causas dos desvios nos custos e nos prazos de execução”. Mais um tempo e, em Novembro de 2006, novamente Mário Lino anuncia a fundação de um “Observatório de Obras Públicas que permita ao Estado avaliar o desempenho concreto de cada operador económico em cada obra”. Em Outubro de 2007, o ministro volta a anunciar, na Assembleia da República, a “intenção de criação do Observatório de Obras Públicas, que terá como objectivo analisar e acompanhar todos os contratos de empreitadas de obras públicas”. No ano seguinte, em Janeiro de 2008, o decreto que aprova o Código dos Contratos Públicos cria o Observatório das Obras Públicas. Passam os meses. Em Julho uma portaria do ministério define as regras de funcionamento do sistema de informação designado por Observatório das Obras Públicas: “A presente portaria procede à constituição e à definição das regras de funcionamento do sistema de informação designado por Observatório das Obras Públicas, nos termos do disposto no artigo 466.º do Código dos Contratos”. E assim chegámos a Junho de 2009. O Tribunal de Contas propõe e o governo aceita. É anunciada a criação do Observatório.
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OS EFEITOS deste Observatório, se vier a ser criado, são imprevisíveis. O modo de nascimento de certas organizações define já o que serão: pretextos ou empregos. Os observatórios entraram em moda há alguns anos e multiplicaram-se. Entre úteis e inúteis, a lista telefónica revela-os às dezenas.
O Observatório do QREN é uma estrutura de missão destinada a assegurar o exercício das actividades técnicas de coordenação e “monitorização” estratégica do Quadro de Referência Estratégico Nacional.
Em Abril de 2009, a Ministra da Educação, o Secretário de Estado Adjunto e da Administração Local e a Associação Nacional de Municípios Portuguesas acordaram em criar o Observatório das Políticas Locais de Educação.
O Observatório da Emigração é uma instituição criada em 2008 pela Secretaria de Estado das Comunidades em “parceria” com o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
O Observatório da Imigração é uma unidade criada no âmbito do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, que pretende aprofundar o conhecimento sobre a realidade da imigração em Portugal.
O Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, criado no âmbito do Ministério da Justiça, está sedeado no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde funciona desde 1996.
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde tem como finalidade proporcionar uma análise precisa, periódica e independente da evolução do sistema de saúde português.
O Observatório do Turismo é o órgão responsável pelo acompanhamento, divulgação e análise da evolução da actividade turística.
O Observatório dos Mercados Agrícolas e Importações Agro-Alimentares foi criado pela Assembleia da República.
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ESTE não é o catálogo. Ficaram muitos por enumerar, como o Observatório de Segurança de Estradas, o Observatório do Endividamento dos Consumidores, o Observatório das Desigualdades, o Observatório de Prospectiva na Engenharia e Tecnologia, o Observatório da Publicidade, o Observatório do Comércio, o Observatório da Ciência e do Ensino Superior, o Observatório das Actividades Culturais ou o Observatório do Emprego e Formação Profissional. Sem falar nos observatórios municipais, que os há, nos regionais, que também existem e nos privados, que não faltam.
Para quê criar observatórios dependentes do governo? Para que servem as Inspecções e as direcções gerais? Por que não contratar entidades independentes, exteriores à Administração Pública, privadas ou estrangeiras? Já agora, comparem-se os prazos e os custos de obras públicas com grandes empreendimentos privados, a ponte do Carregado, por exemplo, ou os grandes centros comerciais. O resultado é uma vergonha para a Administração Pública.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 14 de Junho de 2009

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O exemplo

DIA DE PORTUGAL... É dia de congratulação. Pode ser dia de lustro e lugares comuns. Mas também pode ser dia de simplicidade plebeia e de lucidez.
Várias vezes este dia mudou de nome. Já foi de Camões, por onde começou. Já foi de Portugal, da Raça ou das Comunidades. Agora, é de Portugal, de Camões e das Comunidades. Com ou sem tolerância, com ou sem intenção política específica, é sempre o mesmo que se festeja: os Portugueses. Onde quer que vivam.
Há mais de cem anos que se celebra Camões e Portugal. Com tonalidades diferentes, com ideias diversas de acordo com o espírito do tempo. O que se comemora é sempre o país e o seu povo. Por isso o Dia de Portugal é também sempre objecto de críticas. Iguais, no essencial, às expressas por Eça de Queirós, aquando do primeiro dia de Camões. Ele afirmava que os portugueses, mais do que colchas às varandas, precisavam de cultura.
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Estranho dia este! Já foi uma “manobra republicana”, como lhe chamou Jorge de Sena. Já foi “exaltação da raça”, como o designaram no passado. Já foi de Camões, utilizado para louvar imperialismos que não eram os dele. Já foi das Comunidades, para seduzir os nossos emigrantes, cujas remessas nos faziam falta. E apenas de Portugal.
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Os Estados gostam de comemorar e de se comemorar. Nem sempre sabem associar os povos a tal gesto. Por vezes, quando o fazem, é de modo desajeitado. “As festas decretadas, impostas por lei, nunca se tornam populares”, disse também Eça de Queirós. Tinha razão. Mas devo dizer que temos a felicidade única de aliar a festa nacional a Camões. Um poeta, em vez de uma data bélica. Um poeta que nos deu a voz. Que é a nossa voz. Ou, como disse Eduardo Lourenço, um povo que se julga Camões. Que é Camões. Verdade é que os povos também prezam a comemoração, se nela não virem armadilha ou manipulação.
Comemora-se para criar ou reforçar a unidade. Para afirmar a continuidade. Para reinterpretar o passado. Para utilizar a História a favor do presente. Para invocar um herói que nos dê coesão. Para renovar a legitimidade histórica. São, podem ser, objectivos decentes. Se soubermos resistir à tentação de nos apropriarmos do passado e dos heróis, a fim de desculpar as deficiências contemporâneas.
Não é possível passar este dia sem olharmos para nós. Mas podemos fazê-lo com consciência. E simplicidade.
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Garantimos com altivez que Camões é o grande escritor da língua portuguesa e um dos maiores poetas do mundo, mas talvez fosse preferível estudá-lo, dá-lo a conhecer e garantir a sua perenidade.
Afirmamos, com brio, que os portugueses navegadores descobriram os caminhos do mundo nos séculos XV e XVI e que os portugueses emigrantes os percorreram desde então. Mais vale afirmá-lo com o sentido do dever de contribuir para a solidez desta comunidade.
Dizemos, com orgulho, que o Português é uma das seis grandes línguas do mundo. Mas deveríamos talvez dizê-lo com a responsabilidade que tal facto nos confere.
Quando se escolhe um português que nos representa, que nos resume, escolhe-se um herói. Ele é Camões. Podemos festejá-lo com narcisismo. Mas também com a decência de quem nele procura o melhor.
Os nossos maiores heróis, com Camões à cabeça, ilustraram-se pela liberdade e pelo espírito insubmisso. Pela aventura e pelo esforço empreendedor. Pela sua humanidade e, algumas vezes, pela tolerância. Infelizmente, foram tantas vezes utilizados com o exacto sentido oposto: obedientes ou símbolos de uma superioridade obscena.
Ainda hoje soubemos prestar homenagem a Salgueiro Maia. Nele, festejámos a liberdade, mas também aquele homem. Que esta homenagem não se substitua, ritualmente, ao nosso dever de cuidar da democracia.
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As comemorações nacionais têm a frequente tentação de sublinhar ou inventar o excepcional. O carácter único de um povo. A sua glória. Mas todos sentimos, hoje, os limites dessa receita nacionalista. Na verdade, comemorar Portugal e festejar os Portugueses pode ser acto de lucidez e consciência. No nosso passado, personificado em Camões, o que mais impressiona é a desproporção entre o povo e os feitos, entre a dimensão e a obra. Assim como esta extraordinária capacidade de resistir, base da “persistência da nacionalidade”, como disse Orlando Ribeiro. Mas que isso não apague ou esbata o resto. Festejar Camões não é partilhar o sentido épico que ele soube dar à sua obra maior, mas é perceber o homem, a sua liberdade e a sua criatividade. Como também é perceber o que fizemos de bem e o que fizemos de mal. Descobrimos mundos, mas fizemos a guerra, por vezes injusta. Civilizámos, mas também colonizámos sem humanidade. Soubemos encontrar a liberdade, mas perdemos anos com guerras e ditaduras.
Fizemos a democracia, mas não somos capazes de organizar a justiça. Alargámos a educação, mas ainda não soubemos dar uma boa instrução. Fizemos bem e mal. Soubemos abandonar a mitologia absurda do país excepcional, único, a fim de nos transformarmos num país como os outros. Mas que é o nosso. Por isso, temos de nos ocupar dele. Para que não sejam outros a fazê-lo.
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Há mais de trinta anos, neste dia, Jorge de Sena deixou palavras que ecoam. Trouxe-nos um Camões humano, sabedor, contraditório, irreverente, subversivo mesmo.
Desde então, muito mudou. O regime democrático consolidou-se. Recheado de defeitos, é certo. Ainda a viver com muita crispação, com certeza. Mas com regras de vida em liberdade.
Evoluiu a situação das mulheres, a sua presença na sociedade. Invisíveis durante tanto tempo, submissas ainda há pouco, as mulheres já fizeram um país diferente.
Mudou até a constituição do povo. A sociedade plural em que vivemos hoje, com vários deuses e credos, com dois sexos iguais, com diversas línguas e muitos costumes, com os partidos e as associações que se queira, seria irreconhecível aos nossos próximos antepassados.
A sociedade e o país abriram-se ao mundo. No emprego, no comércio, no estudo, nas viagens, nas relações individuais e até no casamento, a sociedade aberta é uma novidade recente.
A pertença à União Europeia, timidamente desejada há três décadas, nem sequer por todos, é um facto consumado.
A estes trinta anos pertence também o Estado de protecção social, com especial relevo para o Serviço Nacional de Saúde, a segurança social universal e a escolarização da população jovem. É certamente uma das realizações maiores.
Estas transformações são motivo de regozijo. Mas este não deve iludir o que ainda precisa de mudança. O que não foi possível fazer progredir. E a mudança que correu mal.
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A Sociedade e o Estado são ainda excessivamente centralizados. As desigualdades sociais persistem para além do aceitável. A injustiça é perene. A falta de justiça também. O favor ainda vence vezes de mais o mérito. O endividamento de todos, país, Estado, empresas e famílias é excessivo e hipoteca a próxima geração. A nossa pertença à União Europeia não é claramente discutida e não provoca um pensamento sério sobre o nosso futuro como nacionalidade independente.
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Há poucos dias, a eleição europeia confirmou situações e diagnósticos conhecidos. A elevadíssima abstenção mostrou uma vez mais a permanente crise de legitimidade e de representatividade das instituições europeias. A cidadania europeia é uma noção vaga e incerta. É um conceito inventado por políticos e juristas, não é uma realidade vivida e percebida pelos povos. É um pretexto de Estado, não um sentimento dos povos. A pertença à Europa é, para os cidadãos, uma metafísica sem tradição cultural, espiritual ou política. Os Estados e os povos europeus deveriam pensar de novo, uma, duas, três vezes, antes de prosseguir caminhos sem saída ou falsos percursos que terminam mal. E nós fazemos parte desse número de Estados e povos que têm a obrigação de pensar melhor o seu futuro, o futuro dos Portugueses que vêm a seguir.
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É a pensar nessas gerações que devemos aproveitar uma comemoração e um herói para melhor ligar o passado com o futuro.
Não usemos os nossos heróis para nos desculpar. Usemo-los como exemplos. Porque o exemplo tem efeitos mais duráveis do que qualquer ensino voluntarista.
Pela justiça e pela tolerância, os portugueses precisam mais de exemplo do que de lições morais.
Pela honestidade e contra a corrupção, os portugueses necessitam de exemplo, bem mais do que de sermões.
Pela eficácia, pela pontualidade, pelo atendimento público e pela civilidade dos costumes, os portugueses serão mais sensíveis ao exemplo do que à ameaça ou ao desprezo.
Pela liberdade e pelo respeito devido aos outros, os portugueses aprenderão mais com o exemplo do que com declarações solenes.
Contra a decadência moral e cívica, os portugueses terão mais a ganhar com o exemplo do que com discursos pomposos.
Pela recompensa ao mérito e a punição do favoritismo, os portugueses seguirão o exemplo com mais elevado sentido de justiça.
Mais do que tudo, os portugueses precisam de exemplo. Exemplo dos seus maiores e dos seus melhores. O exemplo dos seus heróis, mas também dos seus dirigentes. Dos afortunados, cujas responsabilidades deveriam ultrapassar os limites da sua fortuna. Dos sabedores, cuja primeira preocupação deveria ser a de divulgar o seu saber. Dos poderosos, que deveriam olhar mais para quem lhes deu o poder. Dos que têm mais responsabilidades, cujo “ethos” deveria ser o de servir.
Dê-se o exemplo e esse gesto será fértil! Não vale a pena, para usar uma frase feita, dar “sinais de esperança” ou “mensagens de confiança”. Quem assim age, tem apenas a fórmula e a retórica. Dê-se o exemplo de um poder firme, mas flexível, e a democracia melhorará. Dê-se o exemplo de honestidade e verdade, e a corrupção diminuirá. Dê-se o exemplo de tratamento humano e justo e a crispação reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de trabalho, de poupança e de investimento e a economia sentirá os seus efeitos.
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Políticos, empresários, sindicalistas e funcionários: tenham consciência de que, em tempos de excesso de informação e de propaganda, as vossas palavras são cada vez mais vazias e inúteis e de que o vosso exemplo é cada vez mais decisivo. Se tiverem consideração por quem trabalha, poderão melhor atravessar as crises. Se forem verdadeiros, serão respeitados, mesmo em tempos difíceis.
Em momentos de crise económica, de abaixamento dos critérios morais no exercício de funções empresariais ou políticas, o bom exemplo pode ser a chave, não para as soluções milagrosas, mas para o esforço de recuperação do país.

(Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, Santarém, 10 de Junho de 2009)

Luz - Prédios nas Olaias, Lisboa

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domingo, 7 de junho de 2009

Critérios para logo à noite


HOJE, VOTA-SE.
Logo à noite, conta-se. À hora de jantar, as televisões e as rádios competirão em previsões, novidades e comentários. Uns partidos tirarão ilações para as legislativas, outros negarão tal hipótese. Várias serão as interpretações. Os próprios conceitos de vitória e derrota serão controversos. A matemática eleitoral é uma das mais incertas disciplinas que se conheça. A aritmética recua diante das capacidades humanas de interpretação e análise.

A tradição era a de os partidos afirmarem, na televisão, que tinham ganho. Todos. Ganhavam sempre. Os seus representantes e os comentadores mais comprometidos encontravam sempre critérios que garantissem a vitória. O principal era evidentemente o da maioria: o partido que vinha à frente, que obtinha mais votos e mais eleitos, era o vencedor. Mas mesmo essa medida foi contestada. Do vencedor, facilmente se poderia dizer que ganhou, mas teve menos votos do que antes; ou que o segundo classificado ficou mais próximo; ou, finalmente, que não obteve a maioria absoluta. Muitos mais critérios eram utilizados, em especial os que faziam comparações que permitissem as acrobacias necessárias. Comparavam-se os resultados obtidos com as anteriores do mesmo género (europeias, por exemplo), se era conveniente. Ou com as últimas em data, mesmo de género diferente (legislativas, por exemplo), se era vantajoso. Os que não podiam usar esses critérios encontravam outros. Tinham aumentado o número de eleitos, mesmo se obtiveram menos votos. Ou tinham ganho em comparação com o partido mais próximo. Tinham obtido mais votos do que as sondagens previam. Ou, último e atrevido critério, tinham tido mais votos do que se esperava ou do que “diziam por aí”!

Eleições houve em que todos os partidos tinham ganho! Corria mesmo um rumor que passava por ser a mais inteligente e sofisticada estratégia: as eleições ganham-se ou perdem-se na televisão, durante a primeira hora depois de conhecidos os resultados. Todos os partidos e muitos comentadores pensavam isso, com a ressalva de que cada um julgava ser o único possuidor de tão refinado dispositivo. Estes tempos eram, simultaneamente, divertidos e irritantes. Ver até onde pode levar a retórica e a demagogia despertava a curiosidade e podia ser motivo de entretenimento. Mas sentir que os porta-vozes dos partidos nos tomavam por parvos era menos agradável.

Esta maneira é ainda hoje dominante. E logo à noite veremos com certeza as habilidades de vários dirigentes a demonstrar que ganharam ou não perderam. Mas já não é o que era. Os jornalistas são um pouco mais assertivos. Há comentadores independentes. Os responsáveis pelas sondagens e pelas previsões deixam menos espaço para a imaginação criativa dos partidos. Além disso, houve casos que ficaram na história: chefes de partido que se demitiram em directo ou quase, assim reconhecendo uma derrota indiscutível. Paulo Portas e António Guterres foram dois exemplos. Este último ficou na memória, pois, tendo perdido as autárquicas, nada o levava a demitir-se do governo e a pedir que se convocassem novas eleições legislativas. Na verdade, essas demissões estavam nas cartas, no sentido de que os dirigentes em questão queriam aproveitar o primeiro pretexto para se irem embora.

ESTAS ELEIÇÕES europeias prestam-se a discussões infinitas. Sendo muito elevada, a abstenção distorce critérios de análise. Por outro lado, há menos cargos de deputado em jogo do que nas anteriores. Finalmente, o facto de, entre estas e as últimas europeias, se terem realizado várias eleições, complica os cálculos. Desde as europeias de 2004, fizeram-se uma legislativa (2005), uma autárquica (2005) e uma presidencial (2006). É difícil estabelecer comparações rigorosas e significativas. Como se avalia então a vitória?

A primeira regra é a mais simples: vence quem chega em primeiro lugar, com mais votos, maior percentagem dos votos expressos e mais candidatos eleitos. Este é o único critério indiscutível. Pode ter menos votos, menos eleitos ou menor percentagem do que nas anteriores europeias; e pode ter menos ou mais do que nas anteriores legislativas e autárquicas; se vem à frente, ganha. Ponto final. Quem ficar em segundo, pode ter mais do que antes; ou pode ter quase tantos como o primeiro; se ficar em segundo, perde. Ponto final.

A segunda regra consiste em determinar como se perde ou ganha, bem ou mal. Pode-se ganhar, mas ter menos votos do que antes: ganha mal. Pode-se perder mas ter registado uma grande subida de eleitorado: perde bem.

A terceira regra é a de dividir as eleições em campeonatos ou ligas. A primeira é a dos dois grandes: um ganha e o outro perde. Na segunda, a dos três pequenos, a ordem por que chegam BE, CDU e PP merecerá especial atenção. É muito provável que as campanhas para as legislativas e autárquicas, que começam amanhã, se venham a ressentir dos efeitos desta ordem relativa. A terceira, a dos partidos e movimentos não representados em qualquer parlamento, nacional ou europeu, veremos se alguém ou algum consegue ultrapassar as marcas do anonimato e as fronteiras de excentricidade.

A quarta regra é a de saber que os resultados nas europeias, digam o que disserem logo à noite, têm evidentemente efeitos nas próximas autárquicas e legislativas. Taxas de participação eleitoral muito diferente poderão complicar os resultados e as comparações, mas a certeza é essa: a temperatura agora medida ajuda a fazer o diagnóstico legislativo e terá influência nas decisões do eleitorado. Não é total, nem automática, mas é real. Aliás, veremos logo à noite como os partidos que perderem vão demonstrar que não existem consequências de uma eleição na outra. Enquanto o vencedor vai garantir que esta foi a “primeira volta”.

Finalmente, uma regra de ouro: se um partido der muitas explicações sobre os seus resultados, se aludir ao eleitorado urbano e ao rural, se referir o voto jovem e o idoso, se mencionar a inexistência de debates, se insistir na má campanha feita pelos outros, se sublinhar a má propaganda dos adversários e se denunciar o favoritismo da imprensa, é porque perdeu. Não falha!

«Retrato da Semana» - «Público» de 7 de Junho de 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Luz - Ruas e prédios, Lisboa

Lisboa – Sozinho, um homem caminha numa rua de terra batida por entre os novos prédios construídos na periferia da capital. Aquela área é agora conhecida por Alta de Lisboa. Os edifícios à esquerda são do Condomínio do Parque e aqueles a cinzento-escuro é dos Jardins de São Bartolomeu. (2006).

terça-feira, 2 de junho de 2009

O Presente, o Passado recente e o Futuro

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A CRISE acabou!

Esta frase pode surpreender muitas pessoas, que poderão até considerar que é uma provocação ou que estou a fazer graça. Acreditem que não. É a sério. E é exactamente o que eu penso.

Se a crise iniciada o ano passado, no segundo semestre, teve um certo número de características e ameaçou realmente o mundo inteiro de colapso financeiro, económico e institucional, já as não tem hoje e já não ameaça da mesma maneira. Há seis ou oito meses, era perfeitamente razoável recear uma falência explosiva dos sistemas e dos ordenamentos financeiros, sociais e políticos. Creio que passámos muito perto de um desastre maior.

É minha convicção que, hoje, já não corremos esse risco. Há sinais evidentes de que o pior fluxo de perigos e ameaças já cessou. Há indicadores que revelam uma lenta retoma, aqui e ali. Há a demonstração de que alguns governos (os mais capazes, os mais fortes, os mais corajosos) tomaram “o assunto em mãos”, com soluções rápidas, mesmo se não foram exaustivas nem definitivas. Há instituições, públicas e privadas, que resistiram à prova e mostraram uma bem-vinda solidez. Mas, sobretudo, há sinais de que a confiança voltou. Confiança dos cidadãos e consumidores, confiança dos agentes económicos, das empresas e das instituições públicas. Mas também confiança de todos nas instituições públicas. E este ponto é essencial: se a confiança voltou, a crise acabou. E esta confiança, essencial para se viver com alguma estabilidade e para se trabalhar em paz, não foi decretada: voltou porque os cidadãos, os consumidores e os produtores, fizeram os seus cálculos e as suas previsões. Algumas medidas oficiais e políticas de governos ajudaram, mas foi nos cidadãos que a confiança regressou.

Não me compreendam mal. Só é possível dizer que a crise acabou, se olharmos para a dimensão, a causa e a ameaça. Na verdade, está a acabar gradualmente todos os dias. Mas, se olharmos para as suas consequências, veremos com certeza que a crise ainda está viva. Ainda vai haver, no mundo e em Portugal, mortos e feridos, falências e desemprego, dívida e investimento reduzido. Países há em que estes efeitos são cada vez menores e talvez dentro de um ou dois anos se possa falar de recuperação. Mas há também países em que o período de recuperação será ainda maior. Como há países em que nem todos os efeitos da crise se fizeram já sentir. Sem falar naqueles em que os remédios serão, por vezes, tão violentos e ameaçadores quanto a crise propriamente dita.

A mecânica de um terramoto é uma razoável metáfora para melhor compreender esta realidade. As grandes ondas de choque acabaram, tal como os principais estremecimentos. No entanto, continuam os pequenos abalos. Os desmoronamentos, os incêndios e as inundações que se seguiram, ainda não acabaram. Não se conhecem os números de mortos. Como não se sabe quantos feridos houve e quanto tempo demoram a tratar. Além de que falta reconstruir. Esta é talvez a metáfora que melhor traduz o meu pensamento. Há países, como os Estados Unidos, que já iniciaram a reconstrução. Há outros, como Portugal, em que essa fase está mais demorada.

Diz-se que nada ficará como dantes. Apesar da recorrência deste lugar-comum, a propósito de tão variadas situações, desta vez parece mesmo ser verdade. Quase ninguém se atreve a dizer que os níveis de consumo e de crescimento voltarão a ser o que eram. Quase ninguém ousa afirmar que a regulação e a supervisão financeira, com todas as suas debilidades, voltarão a ser o que eram. Tudo leva a crer que, nestas áreas, as mudanças sejam de monta.

É possível, muito provável mesmo, que uma outra mudança tenha, a médio prazo, efeitos muito significativos. Os centros da vida económica e financeira mundiais, que já se vinham gradualmente transformando há algum tempo, devem ter sofrido uma verdadeira deslocação. O poderio da China e a imensidão dos mercados asiáticos de força de trabalho e de mercadorias vão marcar o futuro. Só os Estados Unidos, com a sua rapidez de reacção e a sua imaginação criativa sem igual, além do seu poderio, parecem estar à altura desta mudança económica, política e geográfica. Será neste quadro diferente que as sociedades e os Estados europeus terão de se reorganizar. E não se pense que, sobretudo na Europa, é pouca coisa. É muito. É quase tudo. Desde o edifício europeu, também em crise há alguns anos, até às realidades básicas como sejam a competitividade, o ambiente, a imigração e o emprego. Sem falar no papel do Estado e nos contornos da regulação. A maneira como os países europeus e a União reagiram à crise do Outono e Inverno de 2008/09 mostra que a resposta europeia é sempre plural e por vezes débil. Talvez seja inevitável, mas é uma realidade. De qualquer modo, os Estados europeus souberam colaborar no esforço comum para evitar o desastre. Não é, aliás, seguro que se os países europeus tivessem reagido de modo concertado o tivessem feito com prontidão, força e liderança. É possível que até fosse uma maneira mais fraca e tímida.

Entre nós, foram tomadas, a tempo, creio, medidas excepcionais de apoio e suporte dos sistemas financeiros e institucionais. Não sei se todas as necessárias, nem sequer se todas as boas. Mas o principal efeito foi alcançado: evitar o pior, que é colapso das instituições e a perda generalizada de confiança. Depois disso, a recuperação custa a chegar. Dizem os comentadores mais qualificados que teremos um ou dois anos de maus resultados, antes de, eventualmente, as coisas começarem a melhorar. E, quando tal for verdade, serão necessários anos para erguer uma nova economia. Digo bem uma “nova economia”, pois todos são unanimes: não se trata de regressar ao que era dantes.

Sobre esta nova economia, pouco ou nada se sabe. Quais as vocações principais? Quais as nossas vantagens? A emigração para o estrangeiro aumentará? Voltaremos a receber imigrantes estrangeiros? Qual o futuro dos sectores primários e de recursos naturais, como o mar, a floresta e a agricultura? O turismo será o sector com mais potencialidades? Haverá sectores industriais de excelência e vanguarda? Os “nichos” de capital e tecnologia estrangeira, que se criaram em Portugal desde os anos 80 para 90, subsistem, reconvertem ou definham? Poder-se-á falar, no futuro, de um modelo económico português ou apenas de uma soma de experiências avulsas e empíricas? Como vão evoluir os sectores sociais, designadamente a educação, a saúde e a segurança social? O Estado voltou à economia para ficar ou retira-se?

Temos assim que, em Portugal, a recuperação começará mais tarde e será mais lenta. A que se deve? À nossa dimensão? À falta de capital? À falta de experiência? À reduzida capacidade de gestão financeira? À excessiva dependência do Estado por parte dos operadores económicos? Um pouco de tudo, sem esquecer o ano eleitoral.

Verdade é que este último ano, que ficará na história como um dos de mais negativo crescimento, vem no fim de um período de cerca de uma década durante o qual o nosso país se atrasou relativamente aos seus parceiros europeus. Atraso ainda mais significativo do que se pensa, pois que a comparação a 27 é menos desfavorável do que a 15. Após trinta anos, de 60 a 90, de um formidável crescimento, o maior da Europa; e de quarenta anos, de 60 a 2000, com o segundo maior crescimento, Portugal perde sistematicamente terreno em face dos parceiros. Alguns factos são sinais inequívocos. A emigração para o estrangeiro, por exemplo. Diminuiu até aos anos 90, quase desaparecendo. Em contraste, a imigração de estrangeiros para Portugal, pela primeira vez em vários séculos, atingiu níveis elevados. Depois, já no princípio deste século, a emigração de nacionais retomou a níveis médios e elevados.

As dificuldades da vida presente não se resumem à questão económica e financeira, e ao seu corolário, o emprego. Outro facto de relevante importância é a dívida. A partir de 2009, o endividamento público líquido português é de mais de 160 mil milhões de euros, quer dizer, cerca 100 por cento do produto interno. Só o serviço da dívida custa 8 mil milhões de euros! É esta a imensa dívida que nos preparamos para deixar à próxima geração. Não creio que nos sintamos honrados com tal feito.

Finalmente, há tensões sociais muito sérias. A crise e a polémica, instaladas no sistema educativo, têm vindo a criar um real desconforto colectivo. Os sistemas educativos actuais não se encontram em condições de cumprir os seus deveres. As próximas gerações encontrarão seguramente uma escola suficiente para todos, o que foi um progresso, mas não encontrarão uma boa escola. Na justiça, igualmente, reina a discórdia. Esta espécie de última instância terrena, esta garantia do castigo e da recompensa e este derradeiro árbitro de conflitos encontra-se num estado tal que começa a ser difícil distinguir entre o bem e o mal, entre o direito e o dever, entre o lícito e o ilícito.

Depois da década de ouro da economia portuguesa (1960 a 1973) e dos formidáveis trinta anos de 60 a 90, Portugal e os portugueses parecem cansados. A década que agora termina foi, em grande parte, de estagnação ou recuo. As nossas potencialidades parecem esgotadas. A crise internacional actual, que se veio acrescentar à portuguesa, tornou a recuperação ainda mais difícil. Apesar disso, é importante olhar para trás com rigor. Evitar a mera melancolia que nos leva a dizer que “as coisas, agora, estão mal” e saber retirar as lições da história.

Entre estas, realço algumas. A abertura, em primeiro lugar. Quando Portugal se abriu ao mundo, seja no princípio de 60, com a EFTA, seja em meados de 80, com a CEE, Portugal ganhou e mudou. A definição de um horizonte realista, em segundo lugar. Quando Portugal decidiu fundar um regime democrático e aderir à Comunidade Europeia, ganhou. Quando decidimos abrir ao turismo e criar sectores de exportação, ganhámos. O estabelecimento de prioridades, em terceiro. É verdade que faltou um planeamento ou uma estratégia global, mas a definição clara de algumas prioridades, como sejam o vinho ou a investigação científica e tecnológica nalgumas áreas, fez com que ganhássemos.

Mas perdemos, tudo ou muito, com obras faraónicas e voluntariosas, algumas das quais foram drasticamente reduzidas, outras desapareceram, outras ainda demoraram décadas e custaram recursos incalculáveis. Perdemos quando não estudámos, não preparámos decisões e não aceitamos a crítica livre que nos levaria a cometer menos erros e a poupar recursos. Como perdemos com a teimosia que atrofia o sentido das realidades: foi o caso, por exemplo, dos vinte ou trinta anos perdidos com a guerra, a revolução e a contra-revolução. Como perdemos ainda, durante mais de cinquenta anos, com uma atitude obscurantista, por parte das elites políticas, institucionais, culturais e empresariais, que levou a que a população letrada e formada tenha ficado reduzida de modo único na Europa.

Apesar de ensombrado pelas dificuldades actuais, o balanço desta caminhada de quatro ou cinco décadas é globalmente positivo. O nascimento de um sector industrial; a modernização dos serviços de distribuição, financeiros e de telecomunicações; a consolidação de um serviço de saúde para todos os cidadãos; a redução dramática da mortalidade infantil; o estabelecimento de um Estado de protecção social universal; a alfabetização de todos os jovens; a criação do Estado democrático; a valorização do papel da mulher na sociedade; e a adesão à Comunidade europeia figuram entre os êxitos inequívocos deste balanço.

Num curto período de tempo, menos de quarenta anos, Portugal viveu um processo de profundas transformações. O país, o povo, a cultura e os costumes romperam com características antigas da nossa história. É verdade que todos os países estão em mudança e não há casos conhecidos de sociedades imóveis. Há, sim, ritmos de diversos. Ora, Portugal conheceu ritmos de mudança excepcionalmente acelerados.

Uma sociedade fechada deu lugar a uma sociedade aberta e plural. Uma sociedade fortemente homogénea, tradicionalmente centralizada e politicamente dirigida está em processo de abertura à diversidade étnica e religiosa, à pluralidade de culturas e à integração num espaço mais vasto. A excepcional coincidência, verificada em Portugal, de um Estado, uma nação, uma etnia, uma fronteira, uma língua, uma cultura e uma religião, foi profundamente abalada.

Um antigo vínculo ao universo Atlântico foi cortado e uma identidade europeia e continental está em formação. Um sistema de governo autocrático foi substituído por um regime democrático e parlamentar. Em certo sentido se poderá dizer que se tratou de uma novidade histórica.

Um país tradicional, predominantemente rural e fracamente urbanizado desapareceu, dando lugar a uma sociedade moderna e terciária. A população rural e a mão-de-obra agrícola, maioritárias, transformaram-se, em duas ou três décadas, em minorias. As actividades terciárias passaram directamente do terceiro para o primeiro lugar, um processo único na Europa ocidental. A população activa industrial nunca foi maioritária.

A mais jovem população, em 1960, da Europa ocidental, tornou-se numa das de mais rápido envelhecimento e, talvez a prazo, numa das mais velhas. Uma população, então com numerosas famílias alargadas a várias gerações e com elevado número de crianças, é hoje sobretudo formada por famílias nucleares, pais e filhos, sendo que o número destes é reduzido, entre um e dois. Por outro lado, uma sociedade muito “masculina” e patriarcal está a dar nascimento a uma sociedade com elevados padrões de igualdade entre os sexos.

Uma sociedade de emigração permanente foi substituída por uma que também acolhe migrantes estrangeiros. Uma economia proteccionista, largamente dirigida pelo Estado, é hoje uma recordação. O mercado e a iniciativa privada são efectivos, numa economia que é a mais aberta de todas as europeias.

Uma sociedade em que a solidariedade era deixada aos indivíduos, às famílias, às igrejas e a formas locais de assistência, deu lugar a uma outra em que os cuidados do Estado providência são universais. Em trinta anos, a cobertura universal dos cidadãos e das regiões foi garantida. O número de pensionistas e reformados saltou de 120.000 para mais de 2 milhões e meio. A assistência ao parto, as vacinações e os cuidados de saúde são acessíveis a todos. A escolarização dos jovens é total e universal. A mortalidade infantil, que era a mais elevada da Europa, é hoje uma das mais baixas do mundo!

Este elenco permite ter consciência da imensidão e da profundidade desta mudança. Foi muito e em pouco tempo. A amplitude destas transformações é surpreendente. Nos anos sessenta, Portugal oferecia à observação geral a imagem de uma sociedade rígida, conservadora, quase imutável, economicamente atrasada, socialmente opressiva e culturalmente bloqueada. Ora, a verdade é que, num prazo de três décadas, o país mostrou extraordinárias capacidades de mudança e exibiu uma surpreendente plasticidade que lhe permitiu fazer o percurso descrito sem tragédias irrecuperáveis.

E o futuro? Não me peçam receitas. Não tenho capacidades para tal. Nem creio que uma só pessoa, isolada, as tenha. Estratégias e desígnios dependem de muitos, dos mais esclarecidos, dos mais informados, desde que saibam ouvir e falar com todos, assim como aproveitar todos os contributos. Portugal vive tempos difíceis, que, ao contrário do que se diz vulgarmente, não geram imediatamente oportunidades. Mas os que souberem tomar as decisões adequadas e os que, com independência, confiarem em si próprios, terão mais possibilidades de sair desta crise mais depressa e em melhor estado. Os que perceberem, já hoje, que a crise acabou e que devem estar preparados para amanhã, vencerão seguramente. Os que ficarem à espera de quem os guie e os que não souberem demover obstáculos, sairão provavelmente derrotados. Creio que isto é verdade na empresa, na ciência, na tecnologia, no ensino ou nas artes. Como na política. Por isso creio também que a independência é agora um dos mais decisivos trunfos para a ultrapassagem das dificuldades. Independência da pessoa, da empresa e da associação. O Estado será talvez capaz de amparar, como eventualmente o terá feito recentemente. Mas não creio que seja capaz de desenvolver e criar. Os quarenta anos a que me referi acima são um bom exemplo. Quando muito ou tudo depende do Estado, este transforma-se num obstáculo. Quando se limita aos grandes enquadramentos e deixa a acção e a organização aos cidadãos, o desenvolvimento é uma realidade. É por isso que viver encostado a um obstáculo pode ser confortável quando há intempérie. Mas é um travão que se paga caro quando se procura avançar.
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Lisboa, 29 de Maio de 2009 (intervenção na reunião anual da UNIARME)