domingo, 2 de agosto de 2009

A certeza da saúde


POUCOS ANIVERSÁRIOS PÚBLICOS me proporcionariam mais prazer do que o do Serviço Nacional de Saúde. É certamente uma das realizações da democracia de que me sinto, como cidadão, mais orgulhoso. O SNS não é inédito, nem único. Não foi o primeiro, nem sequer é exemplar. Não é propriamente português, nem foi uma novidade para o mundo. Mas é, em certo sentido, o exemplo do que de melhor se pode fazer como reforma: estudar o que os outros fizeram; adaptar ao país; reunir forças e meios; associar a opinião pública, os profissionais e os interessados; iniciar com força e ir realizando com vagar e cautela. Tudo ao serviço de uma ideia central, de um desígnio político e social que pretende satisfazer necessidades sentidas das populações.

Mas este aniversário tem mais razões para me interessar. Ao analisar os 35 anos de democracia, o Serviço Nacional de Saúde sobressai como realização ímpar. Apesar de discutida, contestada, ameaçada, defendida e protegida, esta obra soube recolher os apoios de várias forças políticas, quase todas. Assim como o empenho de vários profissionais, quase todos. O SNS é, de todas as criações institucionais e políticas das últimas décadas, talvez a única que conquistou o carinho e a adesão de grande maioria da população. E mesmo os que gostariam de ver o SNS desmantelado têm dificuldade em afirmá-lo publicamente. Mais do que política, é uma vitória semântica, sem a fatuidade do habitual “politicamente correcto”.

O SNS faz parte de um sistema ou de um sector mais geral que é o da saúde. Ora, este é, de longe, entre todos os sectores dos grandes serviços públicos, de todas as áreas sociais, o que melhor se tem portado, o que oferece melhores resultados e o que revela provas empíricas e quantificadas da sua obra.

O sistema de saúde e o Serviço Nacional de Saúde, em particular, foram capazes, melhor do que outros serviços públicos, de se adaptar a uma sociedade que mudou intensamente, mas sobretudo rapidamente. Nestes trinta e cinco anos, cresceram as cidades de modo desordenado; envelheceu muitíssimo a população; diminuiu a natalidade; desapareceram comunidades rurais; quase morreram as actividades primárias; multiplicaram-se os serviços; democratizou-se a sociedade em todos os sentidos; a população conheceu movimentos inéditos de emigração, imigração e regresso de emigrantes; liberalizaram-se os costumes; progrediu a ciência e a tecnologia; aumentaram as desigualdades, apesar de todas as classes sociais terem conhecido um notável acréscimo de conforto e bem-estar; e surgiram novos costumes e novas doenças, assim como novas exigências sanitárias, nova procura de cuidados e mais meios de exame e diagnóstico. Em linhas gerais e sem pormenores, creio que a saúde e o Serviço Nacional de Saúde conseguiram adaptar-se, desenvolver-se e consolidar-se. A saúde portuguesa preparou-se melhor para a era da globalização, da União Europeia, do desaparecimento de fronteiras e do escrutínio internacional permanente, do que outros sectores da vida pública.

Quando o SNS começou, acabava-se a sociedade rural, surgia diante de todos nós a nova sociedade urbana. E novas comunidades. Nesta população integrada, urbanizada, eventualmente mais instruída e com mais facilidades de comunicação, a consciência da saúde e da doença aumentou. E aumentou a procura de cuidados médicos.

A alteração rápida dos padrões de ocupação do território e, por consequência, de distribuição da população, foi um dos factores que mais pressão exerceu sobre os sistemas de saúde. Foi também, talvez, uma das áreas de organização colectiva que sofreu mais vicissitudes, pois nem sempre se soube reformar paulatinamente, colhendo a cada passo as lições da experiência. Mesmo assim, a cobertura sanitária nacional reforçou-se e manteve-se sem rupturas graves.

Foi ainda durante estes anos que se fundou o Estado de protecção social, agora universalizado. A democracia trouxe consigo um fenómeno novo, o dos “direitos sociais”, entre os quais o “direito à saúde”. O que era uma faculdade, eventualmente uma caridade, transformou-se em direito. O SNS e os sistemas de saúde tiveram de responder, ainda recém-criados, a esta enorme pressão. A minha opinião é a de que venceram a prova. Outros países criaram os seus serviços nacionais de saúde antes mesmo de reconhecerem constitucionalmente os direitos sociais. Nós, portugueses, amigos e viciados nas formas jurídicas, chegámos atrasados, começámos pelos direitos reconhecidos juridicamente, só a seguir criámos os serviços respectivos. Mas, neste caso, não nos ficámos pela letra da lei, bela, morta e inútil: fez-se o serviço e os cidadãos puderam dele usufruir.

No quadro da evolução recente da sociedade, há cada vez mais procura de saúde e de medicina; mais consciência das questões de saúde; mais obsessão com a saúde, a harmonia física e psíquica; mais medo da morte; mais esperança de viver um século. E não sabemos se não há quem aspire à imortalidade. A obsessão com a saúde é tal que se transformou num dos temas mais procurados pelos produtores de televisão e cinema, assim como pelos espectadores. Numa só semana, em Portugal, é possível encontrar meia dúzia de programas nacionais e importados dedicados à saúde, aos hospitais e à doença. Descobriu-se, pelos vistos, que a saúde e a doença são fotogénicas! E os jornais vendem saúde e doença, em quantidades iguais.

A criação e o desenvolvimento do SNS não se fizeram sem conflitos e perturbações. Não vou resumir a sua história, outros o farão melhor do que eu. Mas recordamos seguramente os vários momentos em que profissionais, sindicatos, autoridades, autarquias, utentes e partidos políticos se envolveram em amargas discussões ou confrontos. De registar que, ao longo das décadas, muitas lutas institucionais quase se substituíram a episódios mais antigos de lutas das classes. O caso da saúde pública constitui uma boa ilustração deste fenómeno. É um dos sectores onde se registaram mais conflitos, protestos e fricções institucionais. Apesar de ser um dos sectores sociais onde mais progressos se realizaram.

A cobertura nacional e a universalização estão asseguradas. Os dados quantitativos do sistema revelam que Portugal está longe dos tempos de carência absoluta e de contraste flagrante com os outros países europeus. Os números de consultas e de urgências mostram um colossal crescimento da procura e da oferta. Os números de médicos, de enfermeiros, de centros de saúde, de camas hospitalares e de equipamentos estão hoje a par das médias europeias, mesmo dos países mais desenvolvidos. Em certos indicadores, Portugal revela uma situação mais favorável do que vários países europeus com mais meios e mais tradições de serviços públicos de saúde.

O crescimento da despesa pública e da despesa privada foi, nestas últimas décadas, muito considerável. Será talvez hoje, em proporção do PIB, uma das mais elevadas da Europa. É verdade que nem sempre gastar muito significa gastar bem. Mas os números não enganam. Com uma despesa nacional superior a 10% do PIB (que compara com pouco mais de 2% no início da década de 1970, pouco antes de ser criado o Serviço Nacional de Saúde), temos a medida do enorme esforço feito pela população. Esforço esse medido por duas realidades: a elevada prestação pública e a elevada despesa das famílias.

De qualquer modo, sentimo-nos obrigado a perguntar: será bem gasto? Haverá desperdício? Há quem diga que há muito desperdício. O Tribunal de Contas, por exemplo, denuncia, creio que com razão, um enorme desperdício de recursos. E muitas são as opiniões que sublinham o facto de a principal deficiência da saúde se situar na organização, não nos recursos humanos ou financeiros. Apesar deste desperdício, mau grado as deficiências de organização, de eficácia e de racionalidade, mantenho a afirmação feita acima: a saúde portou-se melhor do que outros sectores sociais e públicos.

Perguntemo-nos então: por que razão o SNS e os sistemas de saúde fizeram melhor? E como se prova essa superioridade de resultados? Na saúde, é fácil quantificar. Os progressos da saúde pública, ajudados, é certo, pelos progressos do saneamento básico e da educação, são simplesmente indiscutíveis. Os números certificam. Médicos e enfermeiros por habitante, consultas, actos médicos em geral, recurso aos meios de diagnóstico, camas hospitalares e estabelecimentos de saúde: todos se desenvolveram de modo favorável. Mais do que os progressos meramente quantitativos, temos os resultados efectivos: a esperança de vida aumentou, a mortalidade infantil e materna reduziu-se dramaticamente (naquele que é talvez o maior triunfo da sociedade democrática portuguesa), as doenças contagiosas diminuíram e as doenças de tratamento eficaz fizeram proporcionalmente menos vítimas. Morre-se menos e morre-se melhor. Os dados relativos à vacinação, aos cuidados pós-parto e à morbilidade por doença contagiosa, bem reveladores da eficiência e da qualidade de um serviço, são suficientemente claros para mostrar os progressos alcançados.

As comparações com a educação, a segurança social, a justiça, a administração e outros serviços mostram a superioridade dos resultados da saúde. Com a educação, em particular, que registou progressos quantitativos pelo menos tão surpreendentes, o cotejo é significativo. A educação está em muito pior estado, mais instável, com menos qualidade, mais medíocre nos resultados, mais disputada e contestada, em clima social e psicológico mais tenso e, por vezes, quase em guerra. Também a justiça revela uma situação em degradação constante e cada vez mais longe das aspirações e das necessidades dos cidadãos.

Se a medida do progresso e dos resultados parece indiscutível, pergunte-se a seguir: por que razão, então, a saúde exibe um balanço bem mais positivo? As razões são muitas, mas as principais podem ser isoladas. Em primeiro lugar, a maior estabilidade das políticas e das orientações. Apesar das divergências partidárias e mau grado a existência excessiva de um elevado número de ministros em três décadas, as mudanças erráticas e caprichosas de políticas foram menores. Não obstante o discurso político e partidário, que frequentemente anuncia mudanças radicais e reformas totais, houve mais estabilidade política neste sector.

A estabilidade profissional, social e orgânica foi também superior. Houve greves, é certo. Conflitos de monta. Animosidades venenosas entre ministros e profissionais. Conflitos que duraram meses e anos. Erros de decisão e de reacção. Nada faltou. Mas, tudo somado, tudo pesado, houve menos agitação estéril, menos despotismo governamental e menos oscilações gratuitas de orientação. E talvez mais sentido da responsabilidade por parte dos profissionais.

Casos houve e não foram poucos em que as normas e as orientações transitaram de um ministro para outro, de um governo para outro, apesar das diferenças políticas e partidárias. Nalguns sectores, isso foi essencial. Para a baixa da mortalidade infantil, por exemplo, foi determinante o facto de se ter mantido uma política constante ao longo dos anos. Como foi crucial o facto de os médicos, os enfermeiros, os profissionais e os cientistas terem desempenhado um papel relevante. Em casos como este, a sabedoria dos ministros foi a de ter reconhecido que a competência técnica deve pertencer aos técnicos. “Ao cientista o que é da ciência, ao médico o que é da medicina e ao político o que é da política”, poderia ser o lema resumo da vida do Serviço Nacional de Saúde.

Não se pense que pretendo retirar o governo da política da saúde e do SNS. Se pensarmos que os interessados são mais de dez milhões e que estão em causa mais de 10% do produto nacional, rapidamente verificamos que é colossal a soma de interesses envolvidos. São ainda dezenas de milhares de profissionais especializados, centenas de instituições e de empresas, dezenas de milhares de trabalhadores. Sem falar nas autarquias, cada vez mais empenhadas nas questões de saúde. É natural que, com este panorama, sejam muito fortes os interesses em jogo, as contradições reais e os conflitos potenciais. Por isso o papel das autoridades e da legitimidade democrática é essencial para a realização de equilíbrios sociais e políticos, para a arbitragem de conflitos, para a regulação dos sistemas e para a concretização de um compromisso essencial com a população. Notemos que estes objectivos têm um denominador comum: a combinação entre a estabilidade do sector ou a continuidade das políticas, por um lado, e as mudanças graduais, por outro. Têm ainda as autoridades duas funções primordiais: a de evitar que quaisquer predadores tenham vantagens e benefícios injustificados e a de garantir que o cidadão ou o utente seja a principal preocupação e o primeiro critério do sistema e do Serviço. Não quero retirar a política nem os governos da saúde. Apenas quero dar-lhes o papel que é o seu. Com necessidades tão prementes e com tão vastos recursos em causa, é natural que a cupidez procure satisfazer-se. É à política que compete evitá-lo. Como é natural que aspirações ao poder surjam e que as exigências excessivas dos corpos profissionais se manifestem. É ainda à política que compete moderá-las.

Mas há mais. A saúde recebe mais benefícios de dois outros factos: o de ser um sistema mais aberto e o de estar mais ligado à ciência e menos à ideologia. O sector é mais “aberto” do que outros, os da educação e da justiça, por exemplo. Há alternativas e emulação, ou até concorrência. A pressão da sociedade é mais forte. A tradição científica é universal. A informação é global. Os padrões de organização e de trabalho são internacionais. O “ethos” científico integra a profissão médica e a organização hospitalar, o que contrasta com o excesso ideológico da educação e da justiça. Ao contrário das teorias pedagógicas e judiciárias, tantas vezes impregnadas de ideologia e de nacionalismo, as ciências médicas são universais e, por definição, abertas à discussão e ao confronto. A ser verdade, estes factos confirmam a ideia geral de que os sistemas fechados são mais dificilmente reformáveis, mais impermeáveis às aspirações sociais e às exigências técnicas e de mais difícil modernização. Isto não quer dizer que a saúde pública portuguesa não tenha defeitos, seja insensível às desigualdades, esteja sempre bem organizada, não desperdice e não conheça os fenómenos frequentes de privilégio. Não, não quer dizer isso. Mas quer dizer que, no cômputo geral, a saúde progrediu mais e melhor do que os outros sectores públicos e sociais.

Em resumo, três regras de ouro: prioridade à técnica e à ciência; estabilidade institucional; e continuidade de políticas. A haver mudanças, como se deve e é inelutável, que sejam paulatinas e graduais, baseadas na experiência.

Nunca se conseguirá que as condições sociais da doença e do cuidado médico sejam neutras do ponto de vista político, social, familiar e ambiental. Mas um objectivo das sociedades e dos Estados modernos consiste justamente em distanciar o essencial dos serviços de saúde das opções ideológicas e dos confrontos partidários. A saúde pública e a protecção social dependem das condições sociais e económicas, assim como das condições políticas. Foram condições políticas e sociais muito particulares que levaram à criação do National Health Service, na Grã-Bretanha, e do Serviço Nacional de Saúde, em Portugal. Isso é certo e reforça a ideia de que as políticas de saúde também dependem da política. Mas, para a sua eficácia, foi determinante que a saúde tenha sofrido menos contágio ideológico do que outros serviços sociais, como a educação, por exemplo. Não esqueçamos que o desenho do National Health Service foi feito por um Liberal, a pedido de um Conservador e posto em prática por Trabalhista!

Voltemos aos problemas. Entre os mais evidentes do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde em geral, conta-se o desperdício de recursos financeiros e humanos. Portugal começa a estar em linha com os indicadores de saúde europeus, o que é excelente, mas mantém alguns pontos negros. A baixa produtividade dos profissionais e dos equipamentos é notória. Há, em Portugal, mais profissionais de saúde do que em muitos países europeus. Gasta-se proporcionalmente mais do que a média europeia e da OCDE. No entanto, nas observações internacionais, Portugal continua a manter notações negativas no que às filas de espera diz respeito. Tal como à produtividade dos profissionais e ao rendimento dos equipamentos. É pois uma questão de organização e de orientação. Também será, inevitavelmente, uma questão política. Com efeito, o desperdício significa geralmente que existem pessoas, organizações e empresas que beneficiam com a aparente desorganização.

Além das questões clássicas da desigualdade social no acesso e do atendimento desumanizado em muitos estabelecimentos, outro dos problemas que afecta a saúde em geral e o Serviço Nacional de Saúde em particular é o da confusão entre medicina pública e privada. Ainda hoje estou convencido de que esta confusão é prejudicial para os doentes, para a produtividade do sector e para as finanças públicas. Os dois sectores não devem, a meu ver, declarar guerra, nem ignorar-se. Mas as suas relações deveriam ser mais saudáveis. Para isso, a primeira condição é a separação completa. A segunda é a organização de um sistema que permita a liberdade de escolha. Mas uma liberdade de escolha real, entre dois sistemas, entre dois métodos, entre duas produtividades e entre dois médicos. Se a liberdade de escolha é entre o médico A e o médico A em dois locais diferentes, não estamos a falar de escolha real.

De toda a maneira, a pressão financeira tem efeitos em todo o sistema e em todo o Serviço. Filas de espera? Taxas de ocupação dos blocos cirúrgicos? Recurso aos genéricos? Uso da unidose? Desenvolvimento dos tratamentos paliativos? Troca de informação entre serviços e tipos de cuidados? Especial atenção a doentes crónicos? Esforço na despistagem e na prevenção? Em qualquer destes aspectos, parece haver consenso quanto aos meios, os objectivos e até as estratégias, mas a questão financeira avoluma-se sempre.

Gostava de poder dizer: para a saúde não deve haver limites! Ou então, em tom mais de comício, “Para a saúde, tudo”! Mas não digo. A verdade é que a saúde gasta muito, talvez de mais. E não é possível pensar que a factura da saúde possa continuar a subir, sem limites nem contenção. Isto é verdade em Portugal, como em todos os países do mundo. E a verdade é que, nos países ocidentais que conhecemos e com os quais nos comparamos, todos os sistemas de saúde estão sob enorme pressão financeira e demográfica. Por isso as reformas, o aperfeiçoamento de desempenho e o rigor na gestão são tão importantes. São mesmo necessários, se queremos salvar o Serviço Nacional de Saúde.

Ainda por cima, vivemos num sector em que a redução de necessidades é impensável. As aspirações são ilimitadas, como em quase tudo na vida. Mas na saúde, há uma espécie de ratoeira. É o paradoxo da saúde: “Mais saúde e mais vida implicam mais doença”! O prolongamento da vida e da saúde envelhece a população e, como é sabido, são os idosos que mais gastam. Parece que 80% dos custos com a saúde de um indivíduo ocorrem nos últimos cinco a dez anos de vida de um idoso. Eis um facto indiscutível. E que pode ser a causa do desastre financeiro da saúde pública. Por isso é necessário acudir a tempo.

Há uma enorme pressão sobre a medicina; pressão sobre a saúde pública; pressão sobre as finanças públicas; pressão sobre os equipamentos, as instalações e o pessoal. E não creio que seja possível inverter a situação. Até porque os políticos fizeram da saúde um dos sectores privilegiados para as suas propostas e as suas promessas. Paralelamente, outros factores influenciam o crescimento da procura: as descobertas científicas, os novos medicamentos, os novos equipamentos e os novos cuidados. Além disso, os produtores de equipamentos, de medicamentos e de cuidados exercem uma permanente pressão sobre os utentes e sobre as autoridades para aumentar os consumos. E não creio que seja possível inverter esta tendência para mais procura, mais oferta e cuidados cada vez mais caros. Mais: as novas doenças do meio e dos modos de vida têm uma influência marcante na procura. A população mais idosa continua em crescimento, o que está na origem de cada vez mais doenças crónicas e cada vez mais doentes prolongados. Também aqui não é possível inverter a tendência.

Chegámos já, no mundo ocidental, a uma situação de grande dificuldade. A subida geral de custos e o aumento veloz da procura criaram um problema de muito difícil resolução, que é o da sustentação financeira. A ponto de que quase todas as forças políticas de vocação governamental pretendem reduzir custos e estreitar os benefícios e as coberturas sociais. Ora, a carga política dos cuidados de saúde é muito elevada. Repare-se que quase todos os partidos políticos ocidentais, também os portugueses, fizeram do princípio do serviço nacional de saúde um seu património ideológico. Está hoje incluído naquilo que vulgarmente se chama o “modelo social europeu”. Mas o seu financiamento integral e universal colide com a capacidade financeira dos Estados e a disposição do contribuinte. Há, aqui, uma contradição evidente, que só pode agravar-se nos próximos anos. Não sei qual é a solução. Nem creio que esta seja conhecida por alguém. Sei que não se pode continuar assim, com as tendências actuais. Mas também sei que as populações europeias reagiriam muito mal se fossem espoliadas dos seus serviços sociais de saúde.

Os dados conhecidos sobre o grau de satisfação das populações relativamente aos serviços de saúde são controversos e contraditórios. Mas deles se podem recolher alguns ensinamentos. A saúde é quase sempre o sector prioritário. Mas também aquele sobre o qual existe muita queixa. Esta é, todavia, muito especial. Na verdade, as pessoas queixam-se do sistema, mas querem o sistema que têm. Os utentes queixam-se dos médicos, mas querem guardar o que têm. Os cidadãos queixam-se dos hospitais, mas estão gratos aos seus.

Os estudos publicados regularmente pelos serviços oficiais, mas também alguns trabalhos independentes, como os de Manuel Villaverde Cabral (que ouviremos dentro de pouco tempo), mostram um razoável estado de satisfação, sobretudo se estiver em causa o caso pessoal e familiar de cada um. Não tenho dúvida de que o rumor urbano, a imprensa sensacionalista e a demagogia política criam uma situação ou um clima nem sempre conforme às experiências individuais.

De qualquer modo, as responsabilidades políticas parecem indiscutíveis. Preservar o Serviço Nacional de Saúde é um imperativo social, político e nacional. Para tal, é indispensável melhorar, cuidar e reformar, a fim de evitar a espiral de custos e a falência. Os pontos-chave são o desperdício e as deficiências de organização. A relação entre os sectores públicos e privados está também no centro dos problemas que necessitam de mais atenção. Assim como, do ponto de vista do utente, a sua liberdade de escolha. Esta não pode, nem deve ser incompatível com a existência de um Serviço Nacional de Saúde robusto e humanizado. Este é, creio, o objectivo essencial do tempo presente.

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Os 30 anos do SNS
Centro Cultural de Belém
Lisboa, 8 de Julho de 2009

1 comentário:

Américo Tavares disse...

Tudo somado, aumento da procura e da oferta de cuidados de saúde, penso que deveria haver a possibilidade de escolha, por parte do doente, do Centro de Saúde onde pretenderia ser atendido, não necessariamente o correspondente ao local de residência. Por uma razão, havendo faltas graves de médicos nuns sítios, poderia o doente eventualmente procurar uma melhor assistência noutro lugar, em vez de ficar quase sem ela, pelo menos do tipo da que é dada pelo seu médico habitual.

Em certos locais será muito difícil melhorar ou manter a qualidade dos cuidados pela manifesta falta de profissionais que era mais do que previsível, atendendo à distribuição etária que era conhecida, embora agravada por factores menos fáceis de prever, como, por exemplo, o aumento populacional descontrolado de certos subúrbios.