domingo, 30 de dezembro de 2012

Luz - Oxford, Blackwell’s bookshop

Clicar na imagem para a ampliar
.
Em 2004, ainda havia livrarias a sério. Pelo menos em Oxford. A Blackwell’s era um notável exemplo. Tinha instalações em vários edifícios, com numerosas salas, umas enormes, outras bem pequenas e aconchegadas. Havia andares com livros em segunda mão; um antiquário; uma loja só com posters, postais, gravuras, mapas e livros de arte; uma pequena loja com livros de viagem; a grande livraria, com cinco ou seis andares e caves; e finalmente a loja de música, discos, DVD, CD, pautas e livros sobre a música e os músicos. No maior edifício, as salas e os andares estavam divididos segundo úteis disciplinas, estilos, línguas, nacionalidades e géneros. Havia sempre tudo. Quando faltava alguma coisa, demorava horas ou poucos dias a chegar. Podia-se abrir conta como se fôssemos conhecidos. Com a Internet, a Amazon e outras similares, mais os computadores, o Kindle, o iPad e outras tabletes, tudo isso desapareceu. Ou quase. A Blackwell’s está reduzida a duas lojas. Na principal, creio que na esperança de atrair clientes, já há café, refeições, sumos, crepes e outras bebidas. A loja de música, ilustrada nesta imagem, desaparece. O novo mundo tem certamente vantagens. A Amazon é uma delas. Mas tem também inconvenientes. E o desaparecimento das livrarias é seguramente uma delas. (2004)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Luz - Vindima em Covas do Douro

Clicar na imagem para a ampliar
.
Esta aldeia fica perto do Pinhão. O sítio tem uma antiga denominação, Gontelho, conhecida há séculos nos livros antigos. A aldeia e a região, incluindo as localidades vizinhas de Covelinhas, Gouvinhas, Ferrão, Donelo e outras, produzem excelentes vinhos, especialmente vinhos do Porto, há mais de trezentos anos. Esta imagem tem quase trinta. Só um olhar atento percebe as diferenças com os dias de hoje. Os trajos dos trabalhadores já estão ultrapassados, mesmo se não muito distantes de nós. Os cestos vindimos, mais ao fundo e à esquerda, praticamente desapareceram e foram substituídos por cestos mais pequenos (25 quilos em vez de 70), ou por caixas de plástico, ou por pequenos contentores. Os cestos já não são transportados a costas de homens, mas sim em camionetas e tractores. Os garrafões, de que aqui se vê um exemplar, ainda por lá andam... Os arames dos bardos já não se apoiam em pedras de ardósia (de que há ainda muitas no Douro de hoje), mas em postes de madeira, mais económicos, menos frágeis e mais capazes de resistir aos choques das máquinas. (1985)

domingo, 16 de dezembro de 2012

Luz - Muro das Lamentações, Jerusalém 2012

Clicar na imagem, para a ampliar
.
A minha visita ao Muro das Lamentações trouxe-me a confirmação de um facto por mim conhecido há muito: mesmo conhecidas por outras vias, mesmo vistas mil vezes em cinema, fotografia ou televisão, mesmo lidas dezenas de vezes em jornais ou livros, mesmo contadas vezes sem fim por outras pessoas, certas coisas, pessoas ou situações, quando visitadas pela primeira vez, surpreendem-nos sempre! Foi o que aconteceu neste Muro famoso. Foi o que senti quando me aproximei de pessoas como esta que rezavam diante do Muro, por vezes inteiramente coladas às pedras! O ambiente à volta é inesquecível. Há tensão, disciplina, silêncio, murmúrio de orações, medo de provocações e um sentimento pouco amistoso por parte dos que querem rezar em privado e são perturbados pelos numerosos turistas que querem ver, às vezes compreender, quase sempre fotografar. Em certos dias não se pode entrar, ou falar ou fotografar. Noutros dias especiais, os gentios são afastados. Há cânticos e melopeias. Há silêncios que parecem gemidos. Naquelas fendas entre as pedras, como a que se vê nesta imagem, jazem milhares de bilhetes com nomes e orações, pedidos e promessas... De vez em quando, uma operação de limpeza liberta as fendas para que tudo recomece. Há sítios que ficam aquém do que se espera e são verdadeiras desilusões. Há locais que correspondem ao que se pretende. Há ainda os que ultrapassam tudo o que se esperava. Nesta última categoria, incluo Veneza, o deserto do Sara, Hong kong, Nova Iorque, Chartres, a Patagónia, o Machu Pichu... Israel e o Muro ficam neste grupo, sem dúvida. Pelas boas e pelas más razões.   (2012)

domingo, 9 de dezembro de 2012

Luz - Port Meadows, Oxford 2004

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Já não é a primeira vez (nem será a última...) que trago aqui fotografias de Port Meadows e do seu baldio. Este pertence ao povo da cidade de Oxford há quase 600 anos! E lá resiste à construção, aos loteamentos, aos patos bravos... No Verão e nos fins-de-semana todo este terreno se anima com banhistas, leitores, ginastas, namorados, atletas, famílias em piquenique, ciclistas e passeantes que se dirigem aos Pubs da vizinhança!

domingo, 2 de dezembro de 2012

Luz - Perto de Petra, Jordânia 2012

Clicar na imagem, para a ampliar
.
No meio do deserto, uma tenda e uma família de beduínos. Duas pessoas e dois animais dão vida a esta aridez absoluta. Dizem-me os meus companheiros que a família e respectiva tenda tanto podem ficar aqui semanas ou meses, como partir amanhã, sem que ninguém ou quase saiba para onde vão. 

domingo, 25 de novembro de 2012

Luz - Belém, Igreja da Natividade, 2012

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Duas irmãs orientais diante de um azulejo com orações e indicações práticas na mesma língua. Tenho vergonha de ainda não ter decifrado a língua do painel e a nacionalidade das irmãs. Aquela igreja fica perto de Jerusalém, em Belém, na Palestina, isto é, na Jordânia, ou antes na Cisjordânia, quer dizer, por agora, em Israel! É um sítio mágico de peregrinação. Gente de todo o mundo, de chineses a etíopes, de índios americanos a bolivianos, de russos a brasileiros, de tudo havia por ali. O sítio é feio, o urbanismo horrendo, o conforto inexistente, as filas de espera monstruosas, a falta de água absoluta, as vigarices dos mercadores dos templos mais que muitas, o barulho dos autocarros insuportável, o pó intolerável, as facilidades de banho pouco recomendáveis... Mas lá que o sítio é mágico... Mesmo para um agnóstico!

terça-feira, 20 de novembro de 2012

António-Pedro Vasconcelos, «O Futuro da Ficção», FFMS, 2012

Por Maria Filomena Mónica
O PRIMEIRO aspecto a notar é ser este livro atravessado por uma profunda nostalgia, o que não fica mal a um romântico. O tom usado confere à obra, como aliás ao seu autor, um fascínio invulgar. Não fosse isto e alguns leitores poderiam olhá-lo como uma ostentação provinciana de cultura. Mas se ele cita muitas obras-primas é por o exercício ser necessário ao que pretende demonstrar, isto é, que, ao longo da História Europeia, houve ciclos de criatividade, de curta duração, seguidos por longas noites de silêncio.
O livro tem muitas qualidades. Refiro a mais óbvia, a familiaridade com que o autor fala do arco temporal que vai da Grécia clássica ao mundo moderno. O relato tem qualquer coisa de teleológico, o que, em vez de me irritar, acabou por me encantar, talvez por conhecer o António Pedro há tantos anos. Leia-se o que vem na pág. 23: «Hoje não é heresia reconhecer que o século que acabou foi o século do cinema». Depois da tragédia grega, da pintura renascentista, do iluminismo, dos romances realistas, da poesia simbolista, eis que chega a arte suprema, a 7ª, que «vai retomar, no século XX, o fio que se foi urdindo, ao longo de vinte e oito séculos, através de constantes migrações, a grande História da Ficção no Ocidente». Basta olhar John Wayne, em A Desaparecida, de John Ford, para compreendermos do que está a falar.
O autor sabe que precisamos de uma gesta para sobreviver, como sabe que modernamente nada nem ninguém encarnou melhor esse desejo do que Hollywood e John Ford. É quase inexplicável, mas aconteceu: desde 1940 que os filmes de Ford, centrados em cowboys e índios, tocaram o coração de pessoas que nada sabiam da forma como os EUA tinham nascido. A imagem do cavaleiro solitário, que, algures num espaço sem fim, apenas com um Colt à cintura, enfrenta o Mal, permanece um dos grandes mitos da cultura contemporânea.
Mas voltemos a outra das suas teses, a do desaparecimento do romance. Aqui, as nossas diferenças são maiores. É possível que o romance, tal como o herdámos do século XIX, esteja a morrer, mas não é certo. Aceito que as experiências de romancistas que se puseram a brincar com a estrutura narrativa ou enveredaram por malabarismos com palavras redundaram em fracasso. Foi por terem optado pelo experimentalismo pretensioso que alguns escritores recentes, como, por exemplo, Jeannette Winterson, que, em 1985, publicou um romance notável, Oranges Are Not the Only Fruit, deixaram de me atrair. Mas, na narrativa ficcional, há qualquer coisa – seja ela em livro, no palco ou na televisão - que nunca desaparecerá. Porque os homens jamais se cansarão de ouvir ou de ler histórias. Talvez neste ponto – deve ser o único – seja mais optimista do que o António Pedro. Não antevejo um mundo sem ficção, porque ela é essencial ao ser humano.
Falo por mim. Desde a infância que leio romances e nunca se me pôs a questão de saber se estaria a perder tempo. O que pretendia era entrar num mundo novo, conhecer pessoas diferentes, chorar com dramas alheios. Não teria sobrevivido à infância se não tivesse «sido» Tom Sawyer, muito menos à adolescência se não me tivesse identificado com Cathy. A ficção fala de nós e ainda, ou sobretudo, desse «eu» que poderíamos ter sido, para usar o título do mais famoso poema de Robert Frost, «The road not taken». Por vezes, compreendemos melhor o mundo através da ficção do que olhando-o através da janela. 
Abordei já algumas divergências. Quero ainda falar de outra, talvez a mais importante, que diz respeito à suposta degradação do nível cultural das massas populares. Para me ater apenas às televisões, é evidente que temos, diante de nós, uma programação pior do que a que, noutros países é oferecida. Reconheço que nunca, desde que entrámos no século XXI, vi nada que se possa equiparar às séries televisivas escritas por Alan Bennett, Dennis Potter ou John Cleese, nos anos 1970 e 1980. Mas esse mundo, onde apenas existia, ou quase, um canal generalista, desapareceu. O que não quer dizer que tudo quanto se vê na TV seja mau: basta recordar as séries produzidas pela privada HBO ou por Steven Bocho. Se Shakespeare estivesse vivo, optaria por escrever para a TV? E que faria Dickens diante das possibilidades abertas pelos DVDs? 
Quanto à ficção escrita, só o tempo separará o trigo do joio. Não há outra maneira, nem outro juiz. Por isso, não vale a pena chorarmos sobre uma eventual decadência. Bastou-me olhar a estante, que fica ao lado do meu computador, para ver algumas obras-primas, de autores tão diferentes quanto Doris Lessing, V. S. Naipaul ou Philip Roth.
Apesar de partilharmos inquietações, não aceito a visão apocalíptica do António Pedro. Em primeiro lugar, a civilização do espectáculo apenas tornou visível o que há muito existia, isto é, o gosto boçal por determinados entretimentos populares. Aquilo de que nos devemos ocupar é de oferecer aos nossos filhos e netos uma boa educação, o que pressupõe a existência de uma rede de escolas públicas decente, onde o Canon clássico seja ensinado. Tanto eu como ele pertencemos a uma minoria privilegiada, a classe média, o que nos pode levar a ter uma visão distorcida do mundo contemporâneo. Enquanto eu e ele líamos, e sublinhávamos, Stendhal, muitos raparigas e rapazes da nossa idade andavam pelos montes a guardar rebanhos. Antes de começarmos a chorar a perda de um mundo que nunca existiu, temos de nos perguntar quantas pessoas, há 100 ou 200 anos, tinham acesso à cultura superior.
Tão pouco aceito a sua ligação do termo «globalização» à diminuição da qualidade da produção cultural, tal como expressa numa frase que aparece perto do final (pág 59): «Os progressos da globalização trouxeram consigo uma atomização da cultura, uma proliferação das ficções e uma democratização dos meios de a produzir. Hoje, qualquer um pode ser criador. E, no entanto, nunca houve tão poucos criadores». Não é verdade. Foi o António Pedro que me recomendou um livro, fruto do fenómeno da globalização – neste caso, da emigração da América do Sul para a do Norte – que merecera a sua atenção, a obra The Brief Wondrous Life of Óscar Wao», de Junot Diaz (2007).
Termino com uma gracinha que diz muito sobre as diferenças culturais entre os países. Aquando do escândalo envolvendo Hugh Grant em Los Angeles – quando o famoso actor foi apanhado num carro, estacionado na via pública, dentro do qual uma prostituta se dedicava à prática de sexo oral - um jornalista perguntou-lhe se não tencionava consultar um psicoterapeuta. A resposta foi: «Não, em Inglaterra, preferimos ler romances»
[1]. O António Pedro pode estar descansado. Como em séculos pretéritos, talvez mais do que em séculos pretéritos, o mundo precisa de ficção. O público fragmentou-se, mas haverá sempre lugar para obras de qualidade. Não, não vamos esquecer de Aristóteles, nem, muito menos, ter de esperar dez séculos para o redescobrir.

domingo, 18 de novembro de 2012

Luz - De Aqaba a Petra, Jordânia 2012

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Na estrada de Aqaba para Petra e depois para Amã, capital da Jordânia. São centenas de quilómetros através, quase sempre, do deserto. Esporadicamente, uma aldeia ou uma vila. Ao longo da estrada, dos dois lados, vestígios humanos, de restos de tentativas a inícios de promessas. Há de tudo: comércios, uma tasca, uma loja de comes e bebes, uma estação de gasolina, uma repartição da polícia ou um posto militar. Tentativas de plantação de árvores, condutas de petróleo, tubos de rega gota a gota, um raro oásis de verdura e pomares com umas centenas de metros quadrados e umas tendas de beduínos. Por volta de Petra, sítio admirável, estamos em terra de Harrison Ford e Indiana Jones: não faltam fotografias e referências. De Aqaba ao Wadi Ram (o deserto ali ao lado), estamos em locais de Lawrence da Arábia e de Peter O’Toole. E também não faltam fotografias, cartazes, lojas com esses nomes e outras alusões de mau gosto. Aqaba é a única saída para o mar e o único porto que serve a Jordânia. Daí a auto-estrada que leva pessoas e sobretudo mercadorias até à capital e às cidades e vilas do Norte. Durante a longa viagem, inaugurei um novo estilo de fotografia (novo... para mim...), que consiste em fotografar, a partir do carro ou do autocarro, sempre em andamento, disparando a máquina digital, não digo ao acaso, mas com inusitada frequência. O que sai é em grande percentagem inútil. Mas aqui e ali aparecem surpresas! As cores dos edifícios, sempre inacabados, são o que há de mais fantasioso. Talvez para compensar a monotonia do deserto. Chamo a este estilo “road photography”, a completar com a “train photography”, que pratico no seguimento e sob a inspiração de algo mais sério, firmado e antigo que é a “street photography”.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

domingo, 11 de novembro de 2012

Vinho do Porto, Ferreira, Gaia, 2006

 Clicar na imagem, para a ampliar
.
À janela da Sala de provas do armazém da Casa Ferreira, em Gaia. Em frente, do lado de lá do rio, a cidade do Porto (com a magnífica Casa da Alfândega à esquerda). Na prateleira, no primeiro plano, estão as “provadeiras”, com amostras de vinho, prontas para prestar provas. Estes copos foram, durante décadas, os próprios dos profissionais da adega que com eles faziam os seus testes e as suas provas. A dimensão, o pé, a largura em baixo e o diâmetro na boca permitiam fazer vários exercícios para melhor conhecer a cor, o aroma e a “perna” do vinho. Recentemente (vinte ou trinta anos) começaram a ser usados por conhecedores em suas casas, por vezes em bares e restaurantes especializados ou garrafeiras mais cuidadosas. Finalmente, há cerca de dez anos, a exemplo do que a região do Champagne tinha feito há décadas, as organizações do vinho do Porto (Instituto, empresas, produtores e Casa do Douro) entenderam lançar um copo novo e apropriado ao vinho do Porto. Encomendaram-no a Siza Vieira. Este fez algo de muito parecido com esta provadeira, com pequenas alterações no pé, na base e nas proporções. No essencial, é uma provadeira. (2006)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Farmácia, Saúde e Sociedade


     NADA na minha vida anunciava que eu viria um dia dirigir-me a um Congresso dos Farmacêuticos! Na minha vida profissional, nas minhas funções passadas ou nas áreas em que tenho algum estudo, nada encontro que me aproxime da vossa profissão. Mesmo assim, certamente por bondade do vosso Bastonário, aqui me apresento depois de ter aceitado o seu amável convite, que tanto me honrou. Apesar do título (“Farmácia, Saúde e Sociedade”), o meu tema será sempre mais a sociedade do que a Farmácia.

Permitam iniciar com uma recordação ou uma alusão à longínqua época dos meus doze anos. A minha Tia Maria de Jesus era sócia de uma farmácia. A Farmácia Castro, na Régua. Era aí que eu passava longas tardes, durante o Verão, a ouvir as notícias, a ver os clientes, a arrumar medicamentos, por vezes mesmo a atender fregueses (como se dizia então...), devidamente supervisionado pelo senhor Coelho, o sócio e farmacêutico. Muita gente vinha a essa farmácia aviar receitas, mas também pedir conselhos e ajuda. Mais do que tudo, as pessoas vinham conversar, saber notícias, passar um pouco da tarde. Queixavam-se da saúde, da própria e da dos outros, mas era a conversa o género mais procurado. Uns analfabetos vinham mesmo pedir que lhes lessem cartas de longe. A Farmácia era um local de sociedade e convívio, de ajuda e reunião, de distracção e coscuvilhice... As pessoas tinham conta na Farmácia, pagavam ao mês. Ali se deixava recados e encomendas. Algum correio podia ser dirigido para ali. Foi ali que aprendi coisas que não me ensinavam em casa ou de que só se falava entre dentes e em murmúrio.

Já direi em breve por que razão entendi aludir a estas recordações. Antes, acrescento que, mal comecei a pensar nesta reunião, me lembrei imediatamente não só da Farmácia Castro, da Régua, como também das farmácias Almeida, Barreira, Baptista e Galeno, todas em Vila Real. Como é possível, com tantas falhas de memória próprias da minha idade, recordar tão bem as farmácias de Vila Real que deixei para trás há mais de cinquenta anos? Ao lado das farmácias, vou evidentemente encontrar a livraria, a pastelaria, o café... São os locais de iniciação e socialização e as instituições de aprendizagem.

Não me ouvirão fazer a defesa imobilista das velhas instituições e empresas, nem me ouvirão dizer que antigamente é que era bom e que hoje “tudo andou para trás”. Não seria verdade. As novas cidades, o novo comércio, as novas grandes instituições têm muito de bom e de eficaz. Mas nem sempre são melhores. Ou antes; nem sempre são só isso. Há muito que aprendi que o “progresso”, com aspas, nem sempre é progresso, sem aspas. Com a evolução tecnológica e organizativa, ganha-se muito, mas também se perde. Perde-se em humanidade, em contacto de qualidade com os outros, os vizinhos e até os familiares. Em tempos de crise, como os que vivemos hoje, as instituições humanas, as redes de relações de amizade e de família, as empresas civis, as comunidades locais e autárquicas e o universo associativo seriam ou podem ser excelentes amparos para os que vivem com dificuldades. E por mais eficazes que sejam as grandes instituições e empresas, nunca se conseguirá, creio, obter a qualidade humana que tanta falta faz a quem sofre ou necessita de ajuda.

Como é evidente, tudo isto vem muito a propósito das farmácias. São quase por definição instituições de pequena dimensão, descentralizadas, distribuídas pelos bairros, pelas cidades e pelas vilas. São empresas humanas e humanizadas. São instituições que vivem mergulhadas na sociedade e nas comunidades locais. São, em poucas palavras, mais do que empresas económicas e mais do que agências comerciais. Não conheço os problemas dos farmacêuticos e das farmácias, nem pretendo elogiar-vos só por estar na vossa presença, mas é este o papel das farmácias que desejo sublinhar, recordar e promover.

É verdade que há problemas das farmácias. Problemas jurídicos, legais, comerciais, institucionais e outros. Sobre eles pouco poderei dizer e seria muito oportunista fazê-lo aqui. Sei que as questões das margens legais e das dívidas do Estado estrangulam as farmácias. Sei que há graves perturbações no abastecimento de medicamentos motivadas por interesses ilegítimos e de que sofrem não apenas as farmácias, mas, em primeiro ligar, os cidadãos, os clientes e os doentes. Sobre esses problemas, as farmácias têm a minha simpatia. Não por razões de oportunidade, muito menos corporativas. Mas porque entendo que é relevante o papel das farmácias na qualidade de vida e na decência tanto das comunidades locais como das sociedades modernas.

Gostaria que as farmácias tivessem mais liberdade, mais autonomia e mais capacidade. E que fossem sempre instituições dos bairros onde estão instaladas. Mais uma vez, não é melancolia reaccionária. Não é nostalgia. É vontade e esperança de ver sociedades institucionalmente enriquecidas. Há países bem mais desenvolvidos do que Portugal, como os escandinavos ou os Estados Unidos, onde é frequente ver farmácias e outras empresas de bairro prosseguirem a desempenhar um papel crucial na organização das comunidades e na salvaguarda de valores humanos e humanistas. Com certeza que as grandes superfícies, as grandes lojas e as grandes cadeias de distribuição trouxeram vantagens, algumas vantagens. Mas também trouxeram inconvenientes. Nem tudo o que é moderno é progresso. Como disse acima, há muito progresso negativo.

Não se pense também que as farmácias pertencem a uns senhores e umas senhoras de grande idade, com pouca formação e reduzidos conhecimentos, em formato de velhos caciques locais, uma espécie de museu vivo de outras épocas! Bem pelo contrário! Fui ver os números e verifiquei que a rede de farmácias e a profissão de farmacêutico poderá mesmo ser do que de mais moderno existe. Ostentam dados bem na média europeia, seja na cobertura territorial, seja na cobertura da população. Estão, na Europa, entre as que mais farmacêuticos diplomados empregam.  São, em Portugal, um dos sectores proporcionalmente mais qualificados e mais jovens. Mais de um terço dos seus trabalhadores têm grau superior. Cerca de 40% têm menos de 35 anos e quase 70% têm menos de 45 anos! Tomaram muitos sectores económicos ou sociais do nosso país exibir dados semelhantes!

Mais ainda. Sem falar da dimensão social e de convívio de que falava acima, a rede de farmácias presta formidáveis serviços públicos não remunerados, não contabilizados, sem encargos para os cidadãos e sem custos para o Estado. A intervenção das farmácias e dos farmacêuticos directamente em programas e acções de grande envergadura, como sejam o acompanhamento na diabetes, a troca de seringas, a recolha de radiografias, a destruição de medicamentos fora de prazo, a vacinação e outras boas práticas permitem incalculáveis poupanças, mas sobretudo inestimáveis vantagens de cuidado e humanização.

Permitam-me alargar um pouco a reflexão. Os critérios e princípios que se aplicam às farmácias e ao seu papel na sociedade não são exclusivos deste sector de actividade. Bem pelo contrário. Em tempos tão difíceis como os que vivemos, é indispensável que as instituições humanas, sociais e civis estejam presentes, não sejam destruídas e sejam aproveitadas. Não são as repartições nem as grandes organizações que vão salvar, no dia-a-dia, as pessoas e as famílias. Ao lado da grande política e dos grandes dispositivos financeiros e legais, são as instituições humanas que tratam das pessoas. E são as mesmas instituições que devem ser chamadas a participar e colaborar no esforço colectivo. Nesta crise, cujo fim não se conhece, é cada vez mais evidente e necessário governar com os cidadãos, as empresas e as instituições. É cada vez mais importante partilhar os problemas e as soluções, evitando assim esta prática corrente dos últimos anos de tomar medidas como quem atira armas de arremesso contra as populações. Os últimos governos têm-se distinguido nessa especialidade, a de governar sem dizer nada antes nem durante, só depois.

            Faça-se a analogia. Pense-se que a rede de farmácias é também a rede de empresas, de instituições, de associações e de sociedades. Imagine-se o papel que poderão ou poderiam desempenhar na análise dos factores de crise, na detecção de situações difíceis, na procura de soluções razoáveis, mesmo duras, mesmo difíceis. Esta força interior poderia ser um travão dos erros de análise, previsão e cálculo tão frequentes. Como poderia ser um ser um antídoto para a falta de conhecimento da realidade. Lamento que o meu país esteja a receber ordens da maneira mais primitiva que se possa imaginar. Chegam brigadas de técnicos e especialistas organizar os sectores e as áreas de actividade, trazendo consigo ementas de serviços de grande qualidade e de enorme competência, mas destituídos de conhecimento, de sensibilidade e de contacto directo. Lamento que o meu país não tenha sabido evitar o ponto a que chegámos. Lamento que as nossas elites, os nossos partidos políticos e as nossas autoridades não tenham prevenido, nem saibam ou queiram cuidar. Lamento que possa parecer que não há outra solução que não seja a de receber instruções...

            Esta ligação das autoridades e dos governos à população revela-se essencial, não para suavizar ou repetir erros e dívidas, mas para melhor cuidar dos cidadãos e associá-los ao esforço comum. É tanto mais essencial quanto a confiança dos cidadãos na política, nos políticos, nas instituições e nas administrações públicas está em perigoso declínio. Estudos a publicar brevemente mostram que, em dez a vinte anos, a confiança dos cidadãos desceu de valores próximos dos 50% a 70% para níveis de 14% a 30%.

            Viver com as farmácias, jovens, competentes e próximas da população, pode ser uma metáfora para a política necessária para todo o país em tempos de crise.

-
Congresso Nacional dos Farmacêuticos
Lisboa, 2 de Novembro de 2012

domingo, 4 de novembro de 2012

Luz - Vinhas no Douro, 2006

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Outra imagem de um conjunto de vinhas do Douro. As formas “gráficas” das vinhas são infinitas. Neste caso, sejam os taludes e respectivas vinhas na horizontal, sejam as vinhas “ao alto” denotam plantações recentes, talvez datando dos últimos vinte anos. (2006)

domingo, 28 de outubro de 2012

Luz - Vílnius, Lituânia, 1995

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Numa igreja da capital. Várias mulheres rezam. Ao fundo, umas imagens queimadas denunciam um potente reflexo de ouro e prata. Nesta cidade, é impressionante o número de belas igrejas que cruzamos por todo o lado. De pequenas capelas a imponentes catedrais. De todos os estilos e de todas as tradições. Passa-se com facilidade das influências romanas às germânicas e destas às russas. O culto é sobretudo católico. Mas também há ortodoxos e alguns protestantes. (1995)

domingo, 21 de outubro de 2012

Luz - Vila Nova de Gaia, 1979

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Cais de Gaia sobre o rio Douro. A poucos metros do início da ponte D. Luís. Três publicidades (e uma nesga de outra...) anunciam outras tantas caves de vinho Porto. É domingo de manhã. O longo cais de Gaia, atrás das personagens, revela o miserável estado em que se encontrava ainda há pouco tempo. Ainda não tinha sido objecto de enorme arranjo, reparação, reordenamento e limpeza, incluindo a construção de todos os bares e restaurantes que fazem a noite de Gaia e o almoço dos turistas. (1979)

domingo, 14 de outubro de 2012

Luz - Veneza, 1971

Clicar na imagem, para a ampliar

.
Rua da cidade. É o fim da tarde de um dia de Outubro. A rua, banal, está suja. Três mulheres diferentes. Só eu sei quem são e o que fazem neste improvável encontro, melhor dizendo, cruzamento. (1971)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Violência familiar


NÃO HÁ estatísticas. Nunca haverá. Mas estou convencido que a “violência doméstica” se define principalmente por dois factos. Primeiro: é a violência exercida pelos homens contra as mulheres. Segundo: é a violência praticada pelo Pai, pela Mãe, ou pelos dois contra as crianças. Por isso prefiro falar de “violência familiar”, predominantemente masculina. É bom evitar os efeitos perniciosos do eufemismo.

Também não possuo estatísticas, mas tenho a certeza que a violência familiar de carácter sexual é quase exclusivamente da responsabilidade dos homens, sendo as vítimas as mulheres e as filhas crianças ou adolescentes. Prefiro estes conceitos crus e realistas a outros termos mais suaves ou neutros.

Não há evidência empírica, muito menos números que mereçam confiança, mas o que se vê é pouco. O que se sabe ou o que é visível é apenas uma parte muito pequena desta sórdida história que é a da violência masculina contra as mulheres e as crianças da família. Quem é violento não diz nem confessa. Quem é vítima tem medo de dizer. Quem é agredido tem vergonha de revelar. Quem vê ou sabe não tem coragem para denunciar. Quem ouve falar acha muitas vezes normal. Quem regista não presta atenção. Quem investiga arranja quase sempre desculpas. Quem julga tem pretextos e escapatórias. Quem estuda dissolve na sociedade as culpas individuais.

Também não há elementos credíveis sobre as várias modalidades de violência, mas tenho para mim que os fenómenos essenciais são, por um lado, a pancadaria física de toda a espécie e, por outro, a agressão sexual nas variantes conhecidas. Não é de bom tom dizê-lo, mas a combinação entre violência e violação tem o condão de atrair um grande número de homens, tanto actuais como antigos. É uma combinação que associa o poder ao animal, com a sofisticação da humanidade mais brutal. Creio que mesmo as especialidades mais requintadas de violência psicológica e simbólica têm, na agressão física e sexual, a causa, o instrumento e o fim como explicação principal.

Apesar da falta de dados, estou finalmente convencido que a violência sexual masculina e a violência familiar atravessam todas as classes sociais, todos os meios culturais, todas as regiões, todas as convicções políticas e todas as religiões. Analfabeto ou doutorado, patrão ou trabalhador, católico ou muçulmano, citadino ou campónio, minhoto ou transmontano, popular ou erudito: nos anais da violência masculina e familiar há de tudo!

Por mais sólidas que sejam as minhas convicções, não consigo perceber! Porquê? Que leva um homem a chegar a casa, desancar a mulher que é suposto amar, violar a filha púbere e bater no filho adolescente? Não percebo. Qual a razão? Será porque a maior parte desta violência é invisível? Será porque o cinema, a fotografia, a televisão e a literatura nos habituaram? Porque a maioria das vítimas se calam? Porque a opinião pública não considera esta violência importante nem grave? Será porque todos pensam finalmente que sempre foi assim? Porque as pessoas acham que a violência faz parte integrante das famílias? Porque o senso comum aceita que a violência seja um instrumento de educação e uma forma de expressão afectiva? De tudo um pouco. Mas nada disso me basta como resposta. A verdade é que há coisas difíceis de perceber. Porque são complexas e porque exigem muito conhecimento. E sensibilidade. Ou então a capacidade de se colocar dentro da pele dos agressores ou das vítimas. Ou finalmente porque são mesmo difíceis de entender. Não consigo perceber. Perceber é uma das mais fascinantes actividades humanas que se conheça. Perceber é meio caminho andado para compreender. Ora, compreender é aceitar. E aceitar é quase tolerar. E tolerar é concordar. Ou ficar indiferente. Esta também é uma armadilha da compreensão.

Creio compreender a violência política e social; a militar e a policial; a terrorista e a racial; a religiosa e a económica. Isto é, creio ser capaz de enumerar razões e causas verosímeis de fenómenos de violência nas variedades descritas acima. Mas não consigo perceber a violência familiar. Não consigo perceber como se troca o amor pela pancadaria. Por que se substitui o sexo pela agressão. Por que se prefere a violação à carícia. Por que se procura e obtém prazer na violação e na agressão da filha.

Os dicionários e as enciclopédias não ajudam muito a compreender. A não ser que se fizesse um dicionário de preconceitos e ideias imbecis ou um vocabulário de termos sórdidos do machismo. Com contributos qualificados. “Uma boa bofetada nunca fez mal a ninguém”, diz o popular com ar convencido. “Quando chegares a casa, bate-lhe! Se não souberes porquê, ela sabe!”, conta, com um sorriso cúmplice, o conhecedor das tradições árabes.” No fundo, bem lá no fundo, as mulheres querem é ser dominadas”, garante o fino psicólogo. “É conhecido: quando uma mulher diz ‘não’, quer dizer ‘sim’”, afirma o especialista em linguística analítica. Mais truculento, mas não menos generalizado, o perito em ideias gerais assegura que  “no fundo, são todas umas putas”. O perito em provérbios não esquece de atribuir às mulheres o famoso “quanto mais me bates, mais eu gosto de ti”, uma espécie de santo e senha para todas as selvajarias. E mesmo a música tradicional e a cultura popular contribuem para tão importante auxiliar da língua portuguesa. Uma das mais famosas cantilenas da história de Portugal reza assim:

Sebastião come tudo, tudo, tudo,
Sebastião come tudo sem colher,
Sebastião fica todo barrigudo
E depois dá pancada na mulher.

Tentei, para meu benefício, enumerar as possíveis causas da violência familiar e machista. São numerosas. O poder, com certeza. A frustração dos maridos. O ciúme, justificado ou não. O desejo de outras, concretizado ou contrariado. O medo de outros, de terceiros que possam olhar para as suas mulheres. Os falhanços e as negas. Os males da vida profissional. As maçadas do emprego. As dificuldades económicas. As vicissitudes do futebol. As perdas ao jogo. O álcool, sendo que este nunca vale por si, vem sempre com alguma coisa atrás. Resumindo e concluindo: nem uma atenuante, nem uma desculpa, nem um motivo que sirvam para fundamentar a eterna complacência da justiça, isto é, do Direito e dos magistrados, perante a violência contra as mulheres.

Pior que tudo e também difícil de perceber é o que se passa na cabeça e na alma das mulheres e das crianças agredidas e violadas. A começar pela culpa, sentimento horrível quando são as próprias vítimas a afligir-se! A dependência financeira é também um velho tema. O argumento dos cuidados com os filhos também. A fraqueza física é factor indiscutível. A concepção predominante dos deveres da mulher (cozinha e cama) ainda vigora. O medo de falar, de denunciar, de levar mais pancada, de ser violada, de ficar aleijada, de perder os filhos e de ficar sem emprego, este medo fundo que rói os ossos, mói a alma e paralisa as energias. É deste medo e do papel extraordinário que pode desempenhar a ajuda de outrem que fala este livro e de que se ocupam estes cinco contos que se lêem seguramente com proveito, mas que se deveriam ler como se de uma penitência se tratasse. De uma penitência positiva. De uma penitência que nos ajudasse a nunca ser cúmplices, nem sequer pela indiferença.
-
Prefácio ao livro Isto não é um conto – Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres, edição da Link e do Montepio, com textos de Afonso Cruz, Alice Vieira, António Figueira, Karla Suárez, Maria Teresa Horta e Patrícia Reis.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Apresentação de Fernando Henrique Cardoso

Senhoras e senhores,
 
A HONRA é minha! E nossa, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É um privilégio apresentar a todos os convidados e participantes deste Encontro um dos mais ilustres homens do século.
Fernando Henrique Cardoso é sobretudo um grande intelectual e um académico. Também foi um grande político. E um grande homem de Estado. Sendo tão difícil ser bem tudo isto, ele conseguiu. Mas fica predominante a sua estatura e a sua vocação de intelectual e académico. Em tempos de políticos profissionais de plástico e de pronto-a-vestir, só um intelectual é capaz de dizer “Falo sempre do jeito que falo, como um professor”! Só um académico tem o atrevimento de, depois de trinta anos de vida política intensa, intitular as suas memórias de “The accidental President”! Só um homem de cultura é capaz de evitar lugares comuns pomposos e dizer que uma das qualidades essenciais do político consiste em “ter os pés no chão e os olhos abertos”!
Quando jovem resistente e adversário da ditadura, Fernando Henrique Cardoso dedicou-se ao pensamento, à teoria e à ciência social. Devem-se-lhe alguns dos escritos mais interessantes sobre o desenvolvimento, o subdesenvolvimento e a dependência. E já então também sobre a liberdade e a democracia. Nunca Fernando Henrique subestimou a liberdade, em nome, por exemplo, do crescimento económico, da independência nacional ou até da revolução social. Num mundo dominado ainda por várias formas de imperialismo, a sua voz brasileira tinha eco longe, na Europa e nos Estados Unidos, incluindo nas Nações Unidas que o reconheceram como um dos mais interessantes e criativos estudiosos do desenvolvimento.
Afastado das universidades pela ditadura brasileira, Fernando Henrique Cardoso estudou e ensinou no Brasil e na América Latina, mas também nos EUA e na Europa, a começar pela Grã-Bretanha e por França. Era reconhecido como um dos mais importantes cientistas sociais da América Latina, das Américas e, se querem mesmo saber, do mundo.
Numa altura em que a direita, na América Latina e em muitos mais sítios, se preocupava sobretudo com o crescimento económico e a esquerda com as desigualdades e a revolução social, poucas foram as vozes que tentaram sempre manter as duas prioridades no horizonte do pensamento e da acção: a liberdade e o desenvolvimento: a democracia e o crescimento; a igualdade e a eficiência. Fernando Henrique tentou. E, em grande parte, conseguiu.
Quando a democracia regressou ao Brasil, Fernando Henrique Cardoso iniciou um percurso político notável. Foi Senador, Ministro dos negócios estrangeiros e sobretudo Ministro das finanças (da Fazenda, diz-se no Brasil). Este último cargo, não o queria! Foi nomeado de madrugada, enquanto dormia. Mas exerceu-o depois de modo inesquecível. Mais tarde, foi presidente do Brasil. À sua acção, como Ministro e como Presidente, ficou ligada a política monetária e financeira, o famoso Plano Real, que trouxe ao Brasil estabilidade, baixa inflação, mais igualdade, mais investimento e nova energia para o desenvolvimento! E além de tudo e sobretudo a consolidação e a estabilidade da democracia. O extraordinário percurso político deste grande país que é o Brasil fica em boa parte a dever-se a este homem e à sua acção firme. Ajudou à abertura do país ao exterior, abriu a economia pela destruição de monopólios e pela privatização de alguns grupos e teve acção efectiva nos sectores da educação e da saúde das regiões e das classes mais pobres.

Pelo que sabemos, do Brasil ou de Portugal, da Europa ou da América Latina, a associação entre liberdade e estabilidade, ou entre desenvolvimento e democracia, é uma das grandes dificuldades dos tempos presentes. Fernando Henrique nunca marginalizou a democracia, nunca subestimou a liberdade, nunca se alheou da população e do povo em nome da estabilidade política. E desempenhou um papel decisivo na reconciliação nacional entre adversários políticos dos tempos da ditadura. Isto, apesar de terem sido tempos de morte, de assassinato, de guerrilha e de tortura. Foi preciso pedir perdão, em nome do Estado, e perdoar, em nome dos cidadãos. Foi preciso reparar, mas também evitar a vingança a fim de preparar o futuro com mais coesão. Em tudo isso, Fernando Henrique Cardoso revelou uma extraordinária perícia e um humanismo a toda a prova.
Nos seus livros, na sua obra à frente do Instituto Fernando Henrique Cardoso, nas suas conferências e na acção muito variada de carácter humanitário e de defesa da cidadania, Fernando Henrique mostra-se sempre fiel a um estilo inconfundível, claro, directo, sem elipses barrocas, sem clichés e com uma fortíssima dimensão cultural. Consegue mesmo coisa extraordinária que é a de ter uma noção de política como decência, sem nunca cair no moralismo vizinho da hipocrisia. Nas suas “Cartas a um Jovem político”, consegue traçar as qualidades e os defeitos do político, sem ilusões, com marcado sentido do serviço público e do bem geral. Com a ternura do professor e o saber da experiência, Fernando Henrique diz-lhe que a política só vale a pena se for para melhorar o país e o povo! Se eu fosse jovem, deixar-me-ia tentar!

Senhoras e Senhores: o Presidente Fernando Henrique Cardoso.
-
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Encontro “O Presente no Futuro – Os Portugueses em 2030”
Lisboa, Centro Cultural de Belém, 14 e 15 de Setembro de 2012

domingo, 7 de outubro de 2012

Luz - Vale do Inferno, La Rosa, 2008

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Este “Vale do Inferno”, da quinta La Rosa, perto do Pinhão, nada tem de infernal. É um dos trechos mais impressionantes das margens do Douro cultivado. Estes socalcos e estes muros estão entre os mais bonitos, mais altos e mais bem conservados de toda a região. A família Berqvist, proprietária da quinta há mais de 100 anos, mantém estes socalcos e aliás toda a quinta com enorme cuidado. Estes tubos em cartão ou plástico brancos e verdes, que estão a ser aplicados pelas mulheres trabalhadoras, dão uma imagem bizarra... À distância, fazem pensar nas cruzes de um cemitério de guerra... Estes dispositivos ou “tubos” são conhecidos por “Snapmax”, marca da primeira variedade que surgiu na região e assim ficou. Colocam-se à volta do pé tenro da vide, servem para criar uma zona de calor, humidade e conforto. São como uma estufa, nome pelo qual também podem ser conhecidos. Além disso, servem de tutor do crescimento e protegem a videira dos roedores. (2008)

domingo, 30 de setembro de 2012

Luz - Vale do Douro, 2006

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Mais uma vista do Vale deste maravilhoso rio. Fotografia tirada de dentro do rio, a bordo de barco de turismo. A localização é no chamado “Douro superior”. Na margem esquerda, à direita nesta imagem, consegue ver-se uma inscrição numa pequena casa branca: “Quinta do Vesúvio”. Não é o edifício principal da quinta, quase monumental, é apenas uma inscrição de identificação. A Quinta do Vesúvio, mais uma da “Ferreirinha”, a Dona Antónia, era uma das mais famosas daquela senhora e daquele grupo ou família. Há poucos anos, foi vendida ao mais importante grupo de vinho do Porto, o dos Symington. À esquerda da imagem, na que é a margem direita do rio, as escarpas mostram paredes de granito, presente em certos troços de uma região com bem mais xisto. Na rocha, umas estranhas “pinturas” amarelas: são pólenes de árvores e arbustos que dão um curioso colorido a certas partes do vale. (2006).

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Encontro “O Presente no Futuro – Os Portugueses em 2030” (Sessão de Abertura)


Senhoras e Senhores,
  
EM NOME da Fundação Francisco Manuel dos Santos, saúdo todos os presentes, convidados, oradores, relatores, voluntários, parceiros, agências e empresas organizadoras. Dou-vos as boas vindas e exprimo os meus votos de uma excelente jornada de debates e convívio.
Saúdo o mais velho convidado deste Encontro, com 88 anos. Saúdo a família que inscreveu três gerações, pais, avós e filhos ou netos. Saúdo o mais novo convidado, que, com um mês de vida, ainda não me pode perceber!
Após três anos e meio de existência, esta Fundação tem hoje uma iniciativa de grandes dimensões. Esta é a nossa primeira grande conferência. Pretendemos criar uma tradição ou um hábito. Gostaríamos de realizar um Encontro deste tipo todos os anos.
Este Encontro foi organizado sob a orientação científica de Maria João Valente Rosa, com a ajuda de um Conselho Científico e a colaboração de muita gente liderada pela comissão executiva de José Soares dos Santos e Pedro Castro.
O “Presente no Futuro – Os Portugueses em 2030” foi o tema escolhido. Aproveitámos a publicação pelo Instituo Nacional de Estatística dos resultados finais do Censo 2011. Assim como os trabalhos da PORDATA. E as previsões e projecções da população para 2030 e 2050 preparadas por Maria Filomena Mendes e Maria João Valente Rosa. É uma boa altura para olharmos para nós e para tentarmos descortinar o que podemos ou queremos ser dentro de duas ou três décadas. Com as projecções que serão analisadas ao pormenor durante estes dias, vemos que a população portuguesa se encontra numa fase de extraordinária importância. Alguns cenários sugerem que Portugal pode perder entre dez a trinta por cento da sua população em vinte a trinta anos!
A missão desta Fundação tem, à cabeça, o estudo, a divulgação, a informação, o conhecimento e o debate. Com esta Conferência, cremos estar a cumprir essa missão. Tanto mais que consideramos que o povo português não está devida e suficientemente informado, nem tem oportunidades bastantes para debater os seus problemas e as suas opiniões. Talvez seja esta uma tradição ou um antigo fardo, mas não nos conformamos. Se a nossa primeira preocupação, o nosso objectivo central e o nosso desígnio fundamental é a liberdade, também sabemos que a informação, a opinião independente e o debate público são condições e instrumentos de liberdade. É para isso que queremos colaborar. Porque não acreditamos que as autoridades e as forças políticas sejam suficientes para proteger a liberdade. E parece até que as instituições políticas não estão à altura da gravidade dos problemas, das carências dos Portugueses e da procura de soluções. Por isso temos a certeza de que todos devemos contribuir.
Parece haver algo de estranho. Enquanto, lá fora, no país e na sociedade, se vivem momentos particularmente difíceis, aflitivos mesmo, nós estamos aqui a discutir o que será dos Portugueses dentro de vinte a trinta anos! Enquanto o mundo, lá fora, sofre e luta pela sobrevivência, nós, no conforto deste Encontro, estudamos e discutimos os cenários para 2030! Parece absurdo, mas não é.
Foi uma decisão nossa: prever, projectar e antecipar... Para melhor decidir hoje. Para tudo saber hoje. Para formar opinião hoje. Isto, porque queremos preparar as próximas décadas. E porque pretendemos cuidar de um bem valioso: a liberdade de escolha.
Não me ocorre discutir aqui a política nacional, nem, por exemplo, as recentes medidas oficiais decorrentes dos acordos de assistência internacional. Não é para isso que aqui estamos. Mas sei, sabemos que os Portugueses estão preocupados. Inquietos. Por vezes até aflitos. Vivem um dos momentos mais difíceis da nossa história recente, uma das mais sérias crises sociais e económicas. Muitos não sabem como vão viver amanhã, em 2013 ou 2014, e nós estamos aqui a discutir 2050! Parece irónico, mas não é. Partimos do princípio que as melhores soluções, mesmo para os problemas do dia, são as que forem pensadas com profundidade, com participação e com conhecimento ou informação.
Mais ainda, as decisões tomadas hoje vão moldar o país que teremos em 2030. Nas migrações, por exemplo. Na habitação e no urbanismo. Na organização da educação e da formação profissional. O que fizermos hoje, como o fizermos e quando o fizermos, não terá apenas efeitos nos défices, nos rendimentos ou na segurança de amanhã ou depois. Será o princípio do que seremos dentro de duas décadas.
Se não soubermos cuidar hoje da informação, do debate, da opinião livre e da coesão social, então perderemos mais tarde o bem mais precioso: a liberdade de escolha.
-

Fundação Francisco Manuel dos Santos
Lisboa, Centro Cultural de Belém, 14 e 15 de Setembro de 2012

domingo, 23 de setembro de 2012

Luz – Tourada, Terceira, Açores, 2011

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Não gosto de touradas, muito menos quando os bichos estão presos com cordas puxadas por uns tantos rapazolas, bem protegidos atrás dos muros, das árvores ou dos candeeiros. Mas também reconheço que esta modalidade, sem sangue nem farpas ou bandarilhas com arpões, tem muito menos violência do que as outras touradas, a pé ou a cavalo. Já aqui publiquei uma ou duas fotos relativas a uma destas corridas em São Mateus, perto de Angra do Heroísmo. São festas sociais ou romarias onde se come, bebe, intriga, namora e faz negócios. (2011)

domingo, 16 de setembro de 2012

Luz - Tonéis, RCV, Gaia 2007

Clicar na imagem, para a ampliar
.
Armazém antigo da Real Companhia Velha, em Gaia. Enormes tonéis de vinho do Porto à direita e pipas empilhadas à esquerda. Estas últimas contêm “Colheitas” de 1981 e de 1982. A “Colheita” é uma das especialidades de vinho do Porto. Pertencem a um só ano, uma só vindima, tal como os “vintages”. Mas, ao contrário destes, fazem longos estágios em madeira, isto é, em pipas e tonéis. (2007).

domingo, 9 de setembro de 2012

Luz - Terceira, Açores 2011

 Clicar na imagem, para a ampliar
.
Num intervalo de uma tourada à corda ou corrida de touros á corda, em São Mateus, a poucos quilómetros de Angra do Heroísmo. Há duas centenas ou mais destas corridas ao longo do ano. Realizam-se nas aldeias, nas vilas ou nos bairros das cidades. Parece mesmo que existe uma “coordenação” a fim de evitar que haja muitas corridas ao mesmo tempo. É tradição própria da Ilha Terceira, mesmo se noutras ilhas se pode esporadicamente organizar uma tourada parecida. As primeiras destas touradas de que há registo datam do século XVII. Há verdadeiros fanáticos que percorrem a ilha de tourada em tourada. E de cerveja em cerveja, acrescente-se... Os touros são largados nas ruas, durante pequenos percursos, de quinhentos a mil metros, amarrados a uma corda que se vai esticando até certo limite. As pessoas aproximam-se e fogem quando o touro chega. Não consta que haja feridos graves. Não se maltratam os touros de modo excessivo. Terminada a tourada, os animais voltam para as pastagens e ainda podem ser utilizados mais umas tantas vezes. É cerimónia social e romaria, mais do que arte tauromáquica. Dentro de casa, em cima dos muros ou atrás das grades, os visitantes e os turistas não correm grandes perigos. A maior parte, aliás, está atarefada e consumir enormes piqueniques e imensas grades de garrafas de cerveja. Uns rapazolas mais destemidos lá vão tentando impressionar as moças... Só uma vez vi um levar umas “marradas” sérias. (2011).

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Carta endereçada à Directora do "Público" (*)

Senhora Directora, 
POR VÁRIAS vezes, no decurso das últimas semanas, fui surpreendido por escritos alusivos à “História de Portugal” da autoria de Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, publicada em 2009. A maior parte desses textos apareceram no Público e o seu principal autor é Manuel Loff. Sei bem que a liberdade de expressão não pode ser limitada de ânimo leve, nem sequer pela qualidade. Mas é sempre triste ver que a inteligência, o rigor e a decência têm por vezes de ceder perante essa liberdade última que é a de publicar o que se pensa. 
 Quando tive a honra de apresentar o livro, na Sociedade de Geografia, anunciei o que para mim era um momento histórico. Com efeito, esta “História de Portugal” quebrava finalmente o duopólio fanático estabelecido há muito entre as Histórias ditas “da esquerda” e da “direita”. 
As várias formas de “nacionalismo” e de “marxismo” e respectivas variantes tinham dominado a disciplina durante décadas. Apesar de algumas contribuições magistrais (e a de José Mattoso é das principais), ainda não se tinha escrito uma História global, compacta e homogénea que rompesse com a alternativa dogmática, que viesse até aos nossos dias e que, especialmente para o século XX, “normalizasse” a interpretação da 1ª República e do Estado Novo. Ambos estavam, mais do que qualquer outro período, submetidos à tenaz de ferro das crenças religiosas e ideológicas e ao ferrete das tribos. 
Com esta História, estamos longe daquela tradição que cultiva e identifica inimigos na história. Agora, deixa de haver intrusos e parêntesis. Os regimes políticos modernos e contemporâneos, de Pombal à Democracia, passando pelos Liberais, pelos Miguelistas, pela República e pelo Salazarismo, eram finalmente tratados com igual serenidade académica, sem ajustes de contas. 
Um dos feitos desta “História” consiste na “normalização” do século XX, marcado por rupturas e exibindo feridas profundas. Por isso me curvava diante dos seus autores, homenageando a obra que ajuda os Portugueses a libertarem-se de fantasmas. Mas, sinceramente, já não esperava que ainda houvesse demónios capazes de despertar o pior da cultura portuguesa.
-
(*) Enviada no dia 1 de Setembro de 2012 e publicada no dia 3.

domingo, 2 de setembro de 2012

Luz - Stand de rua, Moscovo 2010


Clicar na imagem, para a ampliar
.
Os curiosos que procurem os seus heróis preferidos. Procurem-se heróis. Estão lá todos... Lenine, Estaline, Mao Tsé Tung, a Gorda do circo, Buda, um Marine, todos os bichos imagináveis incluindo um T-Rex, “La République”, o Tio Sam, Ghandi e o Papa... Do outro lado da estrada, fica a Universidade de Moscovo, o mais acabado e imponente edifício de puro “gótico estalinista”. (2010)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

«Imagens perdidas»


Angela Camila Castelo-Branco, com quem colaboro há alguns anos em tudo o que é fotografia, publicou esta versão no blogue dela, “Grand Monde” – ver [aqui]. 
-.oOo.-

Revista Egoísta, edição de Junho de 2012


Deserto do Sara, Argélia 1973


Imagens Perdidas
Fotografias de António Barreto

Selecção e organização de Ângela Camila Castelo-Branco


        Há propostas de trabalho que nos atraem, mas inquietam. Patrícia Reis, na sua persistente vontade de surpreender, resolveu quebrar os preceitos habituais de formato de publicação da revista Egoísta, decidindo que a edição de Junho de 2012 seria redonda como a Terra. No seguimento da apresentação de um outro portefólio de fotografias de António Barreto, realizado para a revista anual da Fundação Eugénio de Almeida (América’78 - Kodachromes de António Barreto), a editora desafiou o fotógrafo a contribuir com um conjunto de 12 imagens para o número 49 da Egoísta, sob o tema “Noite”.


Se o tema, dado a múltiplas interpretações, permitia fazer correr livremente a imaginação, já o formato da publicação desestruturava, a priori, toda a lógica de concepção e enquadramento concebido no acto fotográfico. A fotografia, enquanto  resultado de um espaço figurativo perspectivado pelo fotógrafo, obedece também a uma organização que é limitada pelo plano focal do aparelho. Captamos imagens através de visores de vários formatos: rectangulares, quadrados ou redondos. Na ausência de manipulação, seja por distorção, sobreposição de negativos, montagem, ou intervenção do Photoshop,  o resultado final é sempre confinado a dois formatos: quadrado e rectângulo; redondo é que nunca, se exceptuarmos os primeiros rolos da Kodak ou as fotografias obtidas a partir das câmaras Pinhole.

Apesar de ter presente que o olhar do fotógrafo constitui o essencial do acto fotográfico, seleccionar e organizar um conjunto coeso, que obedecesse ao critério atrás descrito, proporcionou discussão e obrigou a uma reinterpretação das imagens. Uma tarefa trabalhosa e entusiasmante, tanto mais que António Barreto participou e teve sempre voz activa na decisão da escolha final.

O presente conjunto de fotografias respeita uma narrativa evolutiva em diversos momentos e situações da actividade humana. Nem sempre aquela mudança resulta no desaparecimento de uma actividade, quase sempre evidencia a transformação ou adaptação da mesma a uma outra realidade. O fotógrafo mostra-nos a agricultura, o comércio, o trabalho, o pão que nos chega à mesa e o lazer, em especial a terra da qual tudo podemos esperar: a aridez oxidada dos desertos, a passividade com que é rasgada e preparada para receber as sementes, a generosidade com que nos recompensa nas colheitas.

As 12 fotografias aqui intencionalmente geminadas, procuram mostrar “Imagens Perdidas”. São fragmentos de vidas e rotinas dispersas no tempo, intemporais portanto mas, apesar de tudo, imagens que se sentem à vontade no presente. Assim, o homem montado num jumento transportando folhas de palma, segue o seu caminho pelas areias do deserto, indiferente à estrada de asfalto que o ladeia (M’zab, Argélia 1973). Por ventura, a sua resistência ultrapassa a das modernas viaturas, cujas carcaças sucumbem à areia dos desertos, como testemunha o esqueleto de um “carocha” no deserto do Sara, fotografia do mesmo ano na Argélia. Ainda no norte de África, e daí para o sul da Europa, apenas dois anos separam a fotografia do costureiro “berbere”, que ganha a vida com uma máquina de costura em Beni Esguen, da fotografia em Lisboa onde conversam à janela de um primeiro andar do número 141 da Rua Augusta os alfaiates da Eugénio de Moraes, Lda.

Das vindimas no Douro ao casal que semeia na Beira Litoral, a agricultura sempre presente, imagens marcantes de um país que, contudo ainda hoje importa quase metade dos produtos alimentares que consome. Com o olhar fixo na câmara de António Barreto, o vendedor de alhos, em Ponta Delgada, é observado com espanto por um rapaz descalço que calcorreia a calçada negra da cidade com a mesma vivacidade com que os meninos em Argel se apressam a levar o pão para a mesa que os espera. Em Angra do Heroísmo, ao olharmos com uma certa nostalgia a fachada do Café Atlântico, distribuidor de espumantes e vinhos das Caves Monte Crasto, esquecemos que os líquidos que a boca pede são fruto de trabalho árduo suportado por homens que, até ao fim do ciclo da vindima, podaram, enxertaram, cavaram, colheram e transportaram às costas os cestos carregados com 60 quilos de uva.

Trinta a quarenta anos nos separam destas fotografias que parecem fazer parte de uma realidade longínqua. Mudaram os transportes, substitui-se a força braçal pelas máquinas, intensificou-se a produção, alargaram-se fronteiras... Para melhor ou pior, em continua batalha de criatividade, o engenho e a arte do homem transformaram a natureza!

Ângela Camila Castelo-Branco


M' zab, Argélia 1973



      Douro 1975                   Beira Litoral, ca. 1975


      Argel, Argélia 1973                Tourém, Trás-os-Montes 1982


     Ponta Delgada, Açores ca. 1980       Angra do Heroísmo, Açores 
                                                                  ca. 1980

                          Beni Isguen, Argélia 1973          Lisboa 1975

                Grécia 1975                 Budapeste, Hungria 1974


António Barreto
 © Fotografia Ângela Camila Castelo-Branco