sábado, 18 de maio de 2024

Grande Angular - Prova dos nove

 A mudança de governo e a transição entre governos de partidos diferentes são momentos excepcionais na vida da democracia. No mundo inteiro e também em Portugal. São testes ao funcionamento da democracia. Verifica-se o grau de consolidação do regime, assim como a solidez das instituições. Analisa-se facilmente a força das organizações partidárias e das clientelas políticas. Percebe-se a importância que se atribui à imagem, a expensas do conteúdo. Compreende-se o valor dos rituais, essenciais para a democracia. Tem-se a possibilidade de observar o grau de cortesia e as boas maneiras democráticas seja no Parlamento seja no governo. Quando a sucessão, a alternância e a transição correm mal é sinal de que faltam hábitos e experiência que só o tempo e a cultura acabarão por trazer.

 

No caso actual, a transição está a fazer-se mal. Já houve debates inúteis e de má-fé, como sejam os das contas de despesas, que não esclareceram ninguém. Pelo contrário, aumentaram a confusão. Mas tiveram, infelizmente, uma utilidade: os eleitores ficaram a perceber que aqueles debates não têm outra utilidade a não ser a de passar rasteiras e denunciar os torpes enganos dos adversários. O que poderia ter sido uma importante discussão sobre os fundamentos do orçamento transformou-se numa cena cruzada de engenharia financeira e de maquilhagem de contas, a fim de “passar na televisão” e de impressionar os eleitores. Que já não se deixam impressionar porque, simplesmente, não percebem. Nesse sentido, o melhor orçamento é o que incomoda o adversário, não o que faz melhores contas.

 

A transição também está a correr mal noutros sectores, não apenas nos debates parlamentares. Como, por exemplo, na Saúde, na Cultura, na Segurança Social e Trabalho, na Defesa Nacional e na Segurança pública… Para já não falar da Santa Casa da Misericórdia, que não é uma pasta de governo, mas certamente importante. Nestes casos, um problema central é ou foi o das demissões de responsáveis e das respectivas substituições. Os mandatos não acabam, as substituições são feitas intempestivamente, não se percebe muito bem o que assiste à decisão de demissão e nomeação. Muito facilmente se levantam dúvidas e suspeitas sobre a competência e a honestidade de quem sai, assim se destruindo reputações e carreiras. Muito rapidamente também se acusa o novo governo de corrupção, nepotismo e arrogância. Na transição em curso ainda não se atingiram limites conhecidos noutras ocasiões, pois tudo é ainda muito recente. Mas já assistimos a momentos confrangedores.

 

questão das nomeações de altos cargos da Administração Pública nunca esteve bem resolvida. Quem entra, facilmente demite, condena e arrasa, a fim de nomear quem quer. Chama-se a isso, na gíria nacional, confiança política. Quem sai, queixa-se de injustiça, nepotismo partidário e ilegalidade. Chama-se saneamento.

 

Quem entra tem bons argumentos. Não é possível fazer as “nossas” políticas com os funcionários de outros. Os altos funcionários têm de partilhar os planos de quem governa. Não é possível bem governar com ideias de um partido e dirigentes do outro. Se um governo perde eleições é porque o seu pessoal e os seus programas foram derrotados e trata-se agora de ter tudo novo. Há razão nisto tudo. Um governo novo tem de poder nomear directores capazes de pôr em prática os novos projectos.

 

Só que… As instituições são duráveis, não se limitam a fazer o que um partido manda. Há ideias e programas em curso durante anos e décadas, sem atenção ao que cada partido diz. A execução de políticas é, muitas vezes, a concretização de opções, sendo que estas podem mudar, mas a execução concreta, as regras, as responsabilidades e a prestação de contas dependem das instituições que consagram mais continuidade do que alternância partidária. As mudanças totais, ao sabor dos resultados eleitorais, são causa de desastres, de perdas de direitos e de prejuízos incalculáveis. Há projectos e programas que duram anos a consolidar, não podem ser apagados só porque um partido assim o entende.

 

A verdade é simples, mas difícil. Há situações em que se justifica a “confiança política”, isto é, as nomeações dependerem de critérios políticos. Como há situações em que não se justifica o recurso à “confiança política” que não é mais do que uma alcunha para a clientela política. Há cargos para os quais se exige partilha de ideias com o governante, mas também os há que exigem independência pessoal e competência técnica. Quer isto dizer que a solução perfeita reside algures na convergência de vários critérios. Conformidade com as orientações. Confiança política. Concurso público e isenção. Competência e seriedade. Convenhamos que não é fácil.

 

As melhores soluções não se encontram apenas em dispositivos aleatórios. São também regras conhecidas pela população. São hábitos de escrutínio público. Por exemplo, a formação de um novo governo não deveria exigir um voto parlamentar de aprovação ou de confiança? Quem fica satisfeito com a ideia de ver um governo “passar” sem voto positivo? O próprio programa de cada ministro não deveria ser escrutinado, pelo menos uma vez?

 

Não seria vantajoso para a democracia que numas dúzias de cargos superiores os indigitados tivessem de ser ouvidos em comissões parlamentares? Funções institucionais de especial relevo, na magistratura, na defesa nacional, na segurança pública, nas contribuições e impostos, nas provedorias, na diplomacia e nas informações, entre outras, não deveriam estar assim condicionadas a processos de audição pública parlamentar? As nomeações para grandes empresas e instituições autónomas não deveriam depender de audição pública prévia? Não seria conveniente abandonar a hipocrisia actual e estabelecer uma lista permanente de umas dúzias de cargos e funções que ficariam à mercê do poder discricionários dos ministros, com total dispensa de concursos públicos, mas condicionados a audiência pública? 

 

Não estamos a falar de governo de assembleia, nem nada parecido. Defende-se, isso sim, uma ideia de governo responsável perante o parlamento e de um parlamento com real competência política. Com o actual rumo dos hábitos parlamentares, o que está em curso é a transformação do Parlamento num a câmara de minas e armadilhas, de quezília e chicana. O parlamento, pelo caminho que leva, é uma espécie de auditório onde se preparam espectáculos públicos para a televisão. A função parlamentar é cada vez mais um exercício de “vida real” para entreter.

sábado, 11 de maio de 2024

Grande Angular - Desperdícios

É sabido que a situação de Portugal é difícil. Já esteve pior. E já esteve mais fraca. Apesar de algumas boas notícias relativas aos últimos anos (sobretudo de carácter económico e financeiro), sabemos que as dificuldades são grandes. Agravadas por uma situação internacional e mundial ameaçadora, muito perigosa e que todos os dias causa ruína e morte. Dito isto, tudo indicava que as autoridades políticas vissem os problemas, percebessem que não há tempo a perder e se entendessem sobre uma linha de rumo. Não unânime, pois claro. Negociada, com certeza. Mas capaz de aguentar os próximos anos e de retirar o melhor possível do que temos. Assim é que se esperava, sinceramente quase toda a gente esperava um arranjo político, sério e honesto, que fosse capaz de garantir alguma estabilidade governativa, uma base de apoio com um módico de solidez e um denominador comum capaz de orientar o melhor o que está à nossa disposição. Por exemplo, finanças razoáveis. Uma economia internacional que ainda oferece algumas oportunidades.  Meios nacionais e europeus pelo menos suficientes para suster um choque. E, apesar de alguma reserva de energia sindicalista e reivindicativa em certos sectores, uma disponibilidade segura da população para compreender um esforço colectivo. Desde que se percebam os objectivos, claro!

 

Em vez disso, temos de contar com expectativas estranhas e viciosas. A principal esperança do PSD e do Governo é que as coisas corram tão mal para as oposições, PS e partido do Chega, que tal seja um enriquecimento sem justa causa. A sua retórica é idiota: façam bem a oposição! Cumpram os seus deveres! É exactamente o contrário do que o Govenro espera.

 

A principal esperança do PS é que as coisas corram mal para o PSD e o Governo. E já agora também para o país. Se corressem bem, seria a sua tragédia. Seria a sua derrota. A retórica é simples: o Governo que cumpra o seu dever e governe bem. Exactamente o contrário do que pensa e espera.

 

A principal esperança do partido do Chega é que ninguém cumpra o seu dever, ninguém tenha qualquer espécie de bom resultado, que o Governo se mostre desastrado e que o PS se revele impotente. Deseja que haja mais corrupção e mais saneamentos. Que o governo não consiga aprovar leis e que o PS não aprove projectos.

 

Nos confins da Galáxia, a principal esperança das oposições de esquerda e extrema-esquerda é que a economia corra mal, assim como os serviços públicos e sociais, os que mais se fazem sentir. Com esperança que o governo fique à deriva e que o PS não perceba e não seja capaz de ter influência. Qualquer êxito do PSD, do PS e do Chega é uma derrota para as esquerdas.

 

De comum ao partido Chega e às esquerdas: que não haja aliança, nem coligação, nem entendimento entre o PSD e o PS. Claro?

 

O partido Chega espera que haja acidentes e incidentes com imigrantes. Confia no aumento do crime. Deseja ardentemente que as filas de espera nos hospitais não se resolvam, que os professores e os policias façam greve, que haja desordem na rua e que a corrupção cresça e se multiplique. Já percebeu que as suas únicas hipóteses são as que resultam de catástrofes nacionais. 

 

O PS tem as suas melhores pessoas a fazer leis que distribuam dinheiro, pensões, reformas e subsídios. Para ganhar créditos e para obrigar o governo a dizer que não. Apesar das boas condições, o PS sabe que só o desastre do PSD e do Governo lhe voltam a dar votos.

 

Entretanto, no meio dos comuns mortais, exige-se rápida acção e urgente intervenção nas ruas das principais cidades do país, a começar por Lisboa e Porto, onde situações de miséria, sem abrigo, ilegalidade, indignidade humana e pobreza proliferam, sem controlo nem remédio. Volta a haver bairros da lata em Portugal. Lamenta-se a diminuta, inoperante, impotente ou nula atenção prestada às cidades portuguesas, ao absoluto declínio das ruas e das praças, ao esterco nas ruas, à habitação miserável, sobretudo a falta de habitação. Em vez de acção, temos direito a debates teóricos sobre a engenharia orçamental.

 

Esperava-se pronta intervenção no SNS donde chegam notícias alarmantes quanto a filas de espera, questões laborais e salariais e gestão das consultas e das cirurgias. Em vez disso, demite-se o seu director, sem motivos nem fundamentação.

 

Pensava-se que as guerras na Ucrânia e em Israel, a crescente ferocidade ameaçadora da Rússia, assim como as ameaças americanas de suspender a NATO já eram suficientes para que o debate da Defesa Nacional e das Forças Armadas estivesse no domínio público e preocupasse boa parte dos cidadãos, mas, em vez disso, tivemos, do Ministro da Defesa, a idiota proposta ou reflexão, se é que se pode chamar a isso uma reflexão, sobre as capacidades correctivas das forças armadas e sobre o seu papel na recuperação de delinquentes.

 

Esperava-se acção forte e destemida do Presidente da República relativamente às deficientes e agravadas condições de governação, sem maioria e com confusão de executivo e de legislativo. Em vez disso, tivemos o inútil, incompreensível e excêntrico apelo à reparação das malfeitorias portuguesas durante 500 anos.

 

Em vez de acudir ao que é urgente, empurram-se os partidos uns para cima dos outros. E tivemos direito a um dos maiores absurdos de história de Portugal, uma das maiores idiotias que só não é risível porque é indigna e dramática: a acusação de alta traição à Pátria feita ao Presidente da República pelo partido do Chega.

Na Administração Pública, começou mais uma série de movimentos telúricos dito enxurrada, fornada e saneamento. Na política portuguesa, tal ficou com um cognome: chama-se confiança política!

 

Para atacar as dificuldades, havia tudo, quase tudo. Meios, conhecimento, tempo e necessidade. Há uma situação económica e financeira melhor do que se pensava ou receava, há a possibilidade de, com coligação de esforços e de votos, reorientar para o investimento, melhorar a produção, aperfeiçoar o Estado social. Mas, em vez disso, temos uma querela de adolescentes malcriados para saber quem é culpado e quem é responsável pelas poupanças existentes, pelos subsídios distribuídos, pelos impostos aforrados…. Havia tudo. Há tudo. Só não há maioria parlamentar, nem esforço conjunto para governar.

 

É mentira, mas é conhecido: são os pobres que desperdiçam mais. Ou antes, é aos pobres que o desperdício faz mais falta!

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Público, 11.5.2024

 

sábado, 4 de maio de 2024

Grande Angular - Escola única, livro único

 que é irreparável não tem reparação. É simples, mas é difícil compreender. Ou antes, dá jeito utilizar o conceito, na esperança de compensação. Que não se confessa, com certeza. Mas a reparação contemporânea do colonialismo, da escravatura e da “conquista” é muito útil para alimentar o “ego” ou obter vantagens económicas. Os países que pediram perdão e já começaram a reparar, têm todos ou quase todos interesses políticos, económicos e militares nos países beneficiários.

 

A escravatura é irreparável. Ponto final. Todas as suas vítimas estão mortas. Os que com ela ganharam também. Aceite por quase todos na altura (menos as vítimas, claro), é hoje repudiada por toda a gente. Os males que a escravatura fez, a violência que usou, a crueldade com que agiu, a injustiça que praticou e os milhões de vidas que destruiu, não têm reparação, a não ser demagógica ou com interesses disfarçados.

 

Pedir perdão pela escravatura é inútil e, sob a aparência de beatitude, é hipócrita. Não apaga crimes, não repõe justiça. Não castiga malfeitores. Não compensa vítimas, geralmente mortas há séculos. Relativamente à escravatura, à conquista, ao colonialismo ou ao racismo, essencial é não encontrar sucedâneos de igual natureza, mas sim respeitar as pessoas, aceitar a dignidade de todos e cultivar a liberdade.

 

Em vez de reparar o irreparável, importante é cultivar a liberdade e o pluralismo, não substituir pensamento único por único pensamento. Quase todos os movimentos de opinião dos últimos séculos têm um ponto comum: o desejo de reformar a educação, de dar uma orientação às escolas e aos programas, de redigir os novos manuais e de formar consciências. Os Republicanos pensaram em expurgar as escolas da perfídia monárquica, adaptando-as ao novo sistema de vida, à gloriosa República. Contra os malfeitores Republicanos, Salazar garantiu que não havia uma “escola neutra”, refez programas e criou o “livro único”, ajustando tudo aos novos tempos de “Deus, Pátria e Família”. Contra os Fascistas de diversos tempos, os Democratas não tiveram sossego enquanto não tentaram fazer uma escola de programas democráticos. Contra a Democracia liberal e plural, nunca os socialistas, comunistas e outros marxistas deixaram de se preocupar com uma escola formadora de consciências e com programas que anunciem a nova sociedade. Contra as tradições ocidentais dos últimos séculos, múltiplos movimentos empenhados na raça, no género e na idade, tentam hoje adaptar a escola aos novos valores, moldar espíritos das novas gerações e formar novos cidadãos. Entre as maneiras de o fazer, conta-se a elaboração de programas e a redacção de manuais.

 

Este processo de substituição não tem falhas. Quem pretende criticar o que lhe parece errado, elimina a ortodoxia e aprova nova orientação. Com o propósito de formar consciências. Afonso Costa e Salazar, Hitler e Mussolini, Estaline ou Mao Tsé-Tung tiveram em comum o apetite de orientação doutrinária. Ainda hoje, programas educativos e respectivos manuais traduzem a tentação de “moldar espíritos”.

 

Nas modas actuais, a inclinação dirigista, para não dizer totalitária, está sempre patente. A muito pouca gente ocorre admitir a ideia de uma escola livre, de programas abertos e de manuais plurais. Ou antes, de uma pluralidade de manuais, ficando os estudantes e as suas famílias responsáveis pelas escolhas. Não, não é essa a ideia preponderante. É, isso sim, o propósito de uma ordem alternativa. Para apagar o racismo, destruir o machismo e derrubar o capitalismo, são necessários a escola e os manuais devidamente orientados.

 

Explicar o colonialismo e a escravatura, por exemplo, é tarefa permanente. Ainda recordamos os manuais do Estado Novo. As suas “narrativas” e as suas explicações para os Descobrimentos, a colonização, a escravatura e a conquista traduziam o que se espera e conhece. Não faltavam a superioridade da civilização ocidental e a missão evangelizadora dos portugueses. O descobrimento e a conquista eram o resultado do esforço dos missionários e dos descobridores portugueses. O que os guiava, a eles e aos poderes metropolitanos, não eram o interesse, a cupidez, a ambição e a vontade política, mas sim a “missão” e a “vocação” do Ocidente em geral e dos Portugueses em especial.

 

Qualquer pessoa com um pouco de idade recorda esses manuais. Às escondidas, denunciava-se a explicação metafísica, beata e hipócrita, revelava-se o verdadeiro interesse imperialista e colonialista dos portugueses e dos ocidentais. Agora, há quase cinquenta anos, é constante o esfoço de construção de uma nova ortodoxia. Com novas actualizações. Já se exige a elaboração de novos manuais taxativos em questões de colonialismo, racismo, exploração capitalista, machismo e ditadura de género. Parece que é preciso demolir a ideologia dos Descobrimentos. Entre activistas e militantes, entre sociólogos e pedagogos, dá-se voz às exigências de novas escolas, novos métodos, novos programas e novos manuais a denunciar a “culpa” dos Portugueses, dos capitalistas, dos colonialistas e dos esclavagistas.

 

O tão urgente esforço de exigência de isenção para a escola pública, para o programa e o manual, está já substituído pela pressão de uma nova ideologia. Raras, muito raras são as pessoas que defendem um esforço de isenção. É verdade que nada é absolutamente neutro na vida, a escola também não. Mas, lutar por uma neutralidade ideológica é uma luta superior. Por que razão não haverá manuais mais ou menos marxistas e materialistas, ao lado de idealistas e confessionais? Por que não será possível conviver, na mesma escola, com todos os manuais possíveis, ficando às famílias a faculdade ou o dever de escolher?

 

As escolas que praticam obrigatoriamente o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e qualquer outra forma de imposição de valores não são progresso da liberdade, bem pelo contrário. São sempre formas, mais ou menos radicais, de imposição de valores e de intoxicação. A China e a Coreia do Norte, tal como o Irão e Cuba, são bons exemplos de sistemas escolares despóticos.  A proibição de ensinar Darwin e o evolucionismo, em vigor em várias regiões americanas, é do domínio do obscurantismo. Como são todas as tentativas de impor novas ortodoxias, mesmo as que se designam por libertadoras, democráticas e progressistas. 

 

Por que diabo se exige das autoridades que façam leis e aprovem novos programas e novos manuais? Descolonizar não deveria implicar a imposição de uma nova doutrina. Libertar não deve criar novos livros únicos. Reparar a escola opressiva, não se faz com uma escola de livro único. Nem sequer democrático.

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Público, 4.5.2024

sábado, 27 de abril de 2024

Grande Angular - A História feita crime

 Vários mestres nos advertiram: “Não devemos proclamar glórias que não são as nossas”! O tema é inspirador. Não nos devemos gabar do que outros fizeram bem. Nem arrepender do que outros fizeram mal. É verdade que podemos sentir emoção, quando pensamos nos feitos de portugueses ao longo de oito séculos. Mas os feitos são deles, não nossos. E os crimes deles a eles pertencem, não a nós. Imaginar que “nós” somos todos, Vasco da Gama, Luís de Camões, Fernando Pessoa e nós próprios, é de uma presunção estúpida que só a gabarolice nacionalista explica. Pensar que “nós” somos todos, os que queimaram aldeias e escravizaram populações, é de uma tal patologia narcisista que custa a entender.

 

Não espero fama, nem elogios, por ter descoberto o caminho para a Índia, nem conquistado territórios em África. Como não me gabo, nem me queixo, de ter escravizado e assassinado gente por todo o lado, sobretudo em África. Não me vanglorio de ter escrito “Os Lusíadas”, nem ter inventado o vinho do Porto. Não peço desculpa, nem perdão, pelo que outros fizeram de mal: pilharam, roubaram, escravizaram e assassinaram. Também não me sinto vaidoso por ter conquistado, pelo menos duas vezes, a independência de Portugal. Nem me sinto orgulhoso por ter colonizado, desenvolvido, modernizado e educado gentes e povos. Não fiz nada disso, outros fizeram. Não me queixo, por não ter tido sofrimento, outros tiveram. A dor por procuração é tão inconveniente quanto o orgulho por recordação. É mau princípio o de chorar culpas que não são as nossas. Ou devolver o que não roubámos. Não peço perdão a quem nunca fiz mal, nem pelo que não fiz. E não me gabo do bem que outros fizeram.

 

O que os portugueses de outros tempos fizeram e de que tanto se fala hoje inclui vários géneros. Uns actos eram “o que se fazia”, muitos eram “as regras do jogo” ou até glórias, outros já eram crimes na altura. E também há obras que começaram por ser glórias e são hoje crimes. Com o tempo, é fácil o bem transformar-se em mal e o mal no seu contrário. Confundir os géneros, tentar usar o mal e o bem dos outros, promover ou rebaixar hoje o que foi feito há séculos, disfarça, por regra, ambições contemporâneas, maus instintos morais e apetites políticos excessivos. Quem quer julgar, hoje, os reis e os escravos de há séculos, quer hoje qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro.

 

Há décadas que, de vez em quando, a questão das culpas históricas e dos erros de outrora, assim como do perdão de hoje, estremece a crónica dos dias. Por vezes, trata-se de bons sentimentos, de uma espécie de candura histórica. Outras vezes, por parte dos contemporâneos, é nem mais nem menos do que uma nova forma de extracção: as desculpas ajudam a obter um lugar na lista de compradores de minérios ou vendedores de armas. Umas vezes ainda, a questão é a da vingança útil, isto é, da oportunidade para obter recompensa e poder, invocando antepassados e compaixão, quando o que está em causa são ambições contemporâneas. Finalmente, para todos, os que querem pedir perdão e desculpar, os que exigem recompensa e indemnização, os que recordam um passado de dor e os que evocam grandeza nacional, de todos temos esta espécie de busca desavergonhada de clientela política. Pouco mais é do que o abuso dos reflexos irracionais do tribalismo, do nacionalismo e do racismo. Infelizmente, neste confronto descabelado, não há inocentes. Mas há vítimas: os cidadãos que agradecem alguma racionalidade na vida pública.

 

O mais curioso é ver que as questões práticas não têm respostas. Ou têm-nas de mau pagador e cínico cliente. Pedir perdão a quem? Aos africanos? Aos asiáticos? Aos índios? De quê? Porquê? Não conheço país que não tenha sido, pelo menos uma vez na história, conquistado ou conquistador, colónia ou metrópole. Como não conheço país, povo, Estado ou nação, que não tenha escravizado, não tenha vivido com escravos ou não tenha vendido os seus. Não conheço povo, país, Estado ou tribo que não se tenha feito graças à luta, ao domínio, à servidão ou à conquista. Será que toda a gente tem de pedir perdão a toda a gente? Se os portugueses têm de pedir perdão aos africanos, aos mouros, aos árabes, aos índios, aos indianos e outros asiáticos, quem nos pede perdão a nós? 

 

Pedir perdão a quem? Aos Estados? Às pessoas em abstracto? Às famílias de descendentes de escravos? Como distinguir entre quem foi vendido, quem transportou e quem vendeu? Sabendo que muitos escravos foram vendidos por conterrâneos, vizinhos, comunidades rivais, nobres e ricos, notáveis africanos, asiáticos ou árabes, como distinguir entre aqueles a quem se pede perdão e os que devem ser condenados? Supondo que se sabe a quem pagar, Estado, empresa, Igreja, associação, tribo ou família, falta evidentemente definir quem paga. O Estado? Os contribuintes? As empresas? Os milionários?

 

Faz algum sentido exigir, da Grã-Bretanha ou da Universidade de Oxford, a devolução imediata da biblioteca do Bispo de Silves, roubada por uns piratas e uns nobres ingleses no século XVI? Ou exigir a pronta devolução do “Cabinet de Lisbonne”, composto por milhares de espécies, roubado por soldados e cientistas franceses no início do século XIX e actualmente no Museu de História Natural de Paris? Ou os milhares de artefactos religiosos, sobretudo de ouro e prata, saqueados nas igrejas portuguesas pelas tropas e levados para França? Se as autoridades portuguesas entendem tomar iniciativas relativamente aos países que os antigos, em seu tempo, pilharam, têm de começar já por nós e obter a devolução dos bens saqueados em Portugal.

 

Em vez de indemnizar ou recompensar, não se sabe bem quem, nem quanto, o melhor que temos a fazer é receber bem os estrangeiros, os imigrantes em particular. O que é um valor em si, não uma compensação por malfeitorias passadas. Se recebo imigrantes, quero, pelos méritos próprios e não para me reabilitar, conceder-lhes direitos e reconhecer a sua dignidade igual à minha. E exigir a reciprocidade, tanto cá como nos países de origem. Se procuro a paz e a justiça, hoje, quero que os imigrantes sejam legalizados, tenham acesso aos serviços públicos, paguem impostos e beneficiem da segurança social. O que farei porque é aquilo em que acredito, não por ter vergonha pelo que outros fizeram. Porque sei que o tráfico de gente é uma das fontes de crime e violência, lutarei contra os que, nacionais ou estrangeiros, lucram com a ilegalidade, o contrabando e a clandestinidade. E recuso-me pensar que o descontrolo é uma boa política de democracia e de compaixão. Não é. É o contrário.

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Público, 27.4.2024

sábado, 20 de abril de 2024

Grande Angular - Vítimas da injustiça. E da Justiça!

 Depois de fundada a democracia, há quase cinquenta anos, muito melhorou e quase tudo mudou. Mas a Justiça talvez não. Ou antes, a Justiça não soube, não quis ou não foi capaz de se adaptar aos novos tempos, aos novos direitos e aos novos deveres. Ou os governantes e o legislador não souberam tratar da Justiça. Seria bom que, neste tempo de balanços, não se esqueça a Justiça. Ainda por cima, com tantas anomalias diante de nós!

 

Há pouco tempo, a dissolução do Parlamento, a convocação de eleições e a demissão do Primeiro ministro foram actos políticos da responsabilidade do Presidente da República, que deles tem de prestar contas. Politicamente. Foram gestos contestados por muita gente e apoiados por outros. Mas tudo começou com um gesto, que muitos consideram errado e excêntrico, da Procuradora Geral da República. É judicialmente que ela tem de esclarecer e de prestar contas, algo que não tem feito. Mas deveria fazer. Não basta anunciar a sua não renovação de mandato.

 

Todos conhecemos também as decisões contraditórias, adversárias e conflituosas de vários magistrados sobre os casos mais gritantes da actualidade, nomeadamente BES e Marquês. De todas as suas decisões, os magistrados deveriam esclarecer, argumentar e prestar contas. Mas não o fazem. Julgam ser seu direito não o fazer. Consideram que as sentenças e os acórdãos bastam. O que não é verdade.

 

Há casos escandalosos de demora, de morosidade deliberada, de lutas burocráticas e de gestos despóticos prejudicando ora arguidos, ora vítimas, ora autores.  Todos os processos famosos, que vivem connosco há anos, fazem parte do quotidiano. Já ninguém espera que se resolvam. Todos pensam que vão prescrever. De comum a estes casos mais falados, o facto de envolverem pessoas poderosas. É provável que tenhamos, na Europa, um recorde de governantes, directores, administradores, banqueiros, deputados, autarcas, magistrados e polícias às voltas com os tribunais e a trato da justiça. Por que razão é tão difícil avançar, resolver e progredir?

 

Talvez um dia os historiadores saibam responder a esta pergunta tão simples: o que correu mal com a Justiça portuguesa? Na verdade, nada, actualmente, parece satisfatório. Sabemos que a justiça se adaptou mal às grandes mudanças das últimas décadas. À democracia, à economia de mercado, à integração europeia e ao novo regime constitucional de direitos dos cidadãos: a todas estas “novidades”, magistrados e instituições tiveram dificuldade em se adaptar. Porquê? Como foi possível?

 

Os profissionais da justiça, ajudados pelos políticos, souberam reforçar os seus poderes, aumentar a sua independência e consolidar os seus privilégios. Organizaram a sua autogestão. E não fizeram esforços para melhorar a sua eficácia, para serem mais justos, para prestar contas, para assumir novas responsabilidades e para melhor cumprir os seus deveres. Voltando à interrogação inicial: porquê? Como foi possível? Resistiram à mudança social e política? Tinham assim tanto poder? São conservadores? Foram os políticos que lhes concederam estatutos e privilégios? Os políticos têm medo dos magistrados?

 

São muitos os casos actuais, do BES ao Marquês, do BNP à PT, que ilustram as dificuldades da Justiça portuguesa. Mas de que se trata verdadeiramente? Da legislação? Dos magistrados? Das regras processuais? Na verdade, um dos pontos mais sensíveis é de recente identificação. A justiça portuguesa faz cada vez mais o caminho da luta de classes e de corpos profissionais, dos diferendos ideológicos e dos conflitos de interesses. Dos seus próprios e dos que partilham na sociedade. Só esta nova luta de classes, muito negativa para a sociedade, explica disfunções e atrasos, conflitos e ineficiências, todos os dias referidos na imprensa. Com uma nota negativa: os magistrados sentem-se no direito de não explicar razões nem argumentar decisões.

 

As generalizações são inimigas da razão e da verdade. Todos os juízes não são iguais. Como o não são todos os procuradores, todos os políticos, todos os tribunais e todos os polícias. São só alguns. O suficiente para deixar o sector em crise, a opinião pública desconfiada e os cidadãos incrédulos.

 

Pode parecer cândido. Mas a verdade é que quase todos sonhamos com a hipótese de independência de uma instituição. Excepto alguns “realistas” ou cínicos, muitos pensam que seria ideal haver instituições que não fossem necessariamente a tradução de interesses, de classes ou de negócios. Sabemos há muito que tudo tem envolvimento social. Não há sector de interesse ou actividade que não tenha conotações sociais. Direito, economia, literatura, filosofia, religião, arte… Regras e pensamentos seguem interesses ou tradições, pontos de vista e visões do mundo.

 

Mas o direito é um caso especial. Na verdade, é o grande instrumento de regulação das sociedades e dos comportamentos. E garante da liberdade. Sabemos como o direito já defendeu os traficantes de escravos ou os proprietários de lenha. Ninguém ignora que a legislação sobre a greve, o direito de voto ou o poder paternal traduz interesses, regras e privilégios. Nada disto é ignorado. Mas também é sabido que o progresso da humanidade se faz pela distância crescente relativamente aos interesses e às visões do mundo parcelares.

 

Ora, a Justiça atravessada pelas lutas políticas e de classes, ou incubadora das suas próprias lutas internas, é a pior notícia que a democracia pode dar ou receber. Nas sociedades democráticas, o progresso faz-se através de formas cada vez mais apuradas e universais. O direito e a justiça não se limitam a defender a ordem estabelecida e as escalas de poderes de facto, antes procuram afastar-se sempre dos interesses parcelares. O direito universal e o respectivo sistema de justiça procuram servir os interesses superiores de um país e de uma sociedade, o bem comum, assim como os direitos de todos os cidadãos, não apenas de uns grupos contra os outros.

 

Há uma procura muito complexa: a de encontrar um justo equilíbrio entre autonomia e independência, por um lado, e democraticidade e representatividade, por outro. Os magistrados sabem que a sua última responsabilidade é perante o soberano, o cidadão. Todos eles defendem, e muito bem, a sua independência, mas todos devem também admitir a responsabilidade. E prestar contas.

 

Não cuidemos apenas das desigualdades sociais e económicas. Nem só das vítimas das injustiças. Pensemos também nas vítimas da Justiça!

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Público, 20.4.2024

sábado, 30 de março de 2024

Grande Angular - O melhor mês

 Abril não é o mês mais cruel, como dizia T. S. Eliot. Bem pelo contrário, é o melhor. Pelo menos para nós. Também mistura memórias e desejos, como dizia o original. Mas não faz germinar lilases: aqui, Abril é o anúncio dos jacarandás. E dos cravos.

 

Começa amanhã o mês do meio centenário. Seguir-se-á um ano durante o qual tudo se dirá, da cruel verdade ao cómico dislate. Seminários, livros, programas de televisão, filmes, romarias, investigações e evocações, nada faltará. Se forem poucas as liturgias e raros os reflexos condicionados, talvez, dentro de um ano, saibamos mais sobre nós próprios.

 

Talvez sejamos capazes de perceber melhor por que razões a ditadura durou tanto tempo, por que motivos os portugueses deixaram que assim acontecesse. Ou antes, por que não foram capazes de melhor resistir e mais combater. Talvez sejamos capazes de saber melhor por que os portugueses ainda são mais desiguais, pobres, analfabetos e resignados do que outros na Europa. E pode também ser que venham mais argumentos que nos permitam compreender melhor as razões pelas quais, no grande continente que é a Europa, este povo pequeno, pobre e marginal resistiu, sobreviveu e insistiu na sua independência.

 

Se o meio centenário de Abril não for simplesmente, mesmo em nome da liberdade, a consagração dos actuais interesses, o respeito pela vassalagem e um festival de vingança e de intolerância, talvez as festas valham a pena. Abril não merece louvaminhas, muito menos represálias e desforras. Abril merece liberdade, tolerância e inteligência.

 

Bela maneira de comemorar Abril! Apesar da instabilidade e da desordem institucional, mau grado a fragilidade gerada pelos resultados eleitorais, a democracia resiste e funciona! Geneticamente marcado à esquerda, o 25 de Abril, cinquenta anos depois, sobrevive com saúde a vitórias das direitas, ao acréscimo das direitas radicais e à vulnerabilidade das soluções governamentais adoptadas. Não há melhor maneira de comemorar Abril do que esta de demonstrar que a democracia vive com a liberdade, com a revolução social e com o nacionalismo radical. Assim como com a integração europeia, a intervenção do Estado e o capitalismo liberal. 

 

No ano do meio centenário de democracia, um governo de maioria absoluta e com condições de estabilidade, isto é, o governo do PS foi derrubado e substituído por um governo sem maioria e com instabilidade garantida. Nesse mesmo ano, três parlamentos, o nacional, o madeirense e o açoriano, foram dissolvidos antes dos prazos previstos. O desperdício e a barafunda institucional ditam há muito a sua lei. Nem a democracia conseguiu mudar isso. Talvez seja uma consolação: os portugueses continuam a ser o que sempre foram.

 

A abstenção atingiu os 40% e já foi pior. Não é a mais alta da história, longe disso. Mas está entre o grupo das mais elevadas destes cinquenta anos. A abstenção é evidentemente desinteresse. Sinal dos tempos. Fraqueza de uma sociedade. Mas também advertência aos políticos e à política. Neste capítulo, Portugal não anda muito pior do que a Europa. Nem melhor.

 

Que belo modo de festejar o 25 de Abril! Toma posse um governo minoritário, enfraquecido e vulnerável como poucos antes dele. Mais parece um governo provisório dos idos de 1975. A solução encontrada para a presidência do Parlamento é engenhosa e imaginativa, não se pode negar. E revela civilidade de comportamentos. Mas não se pode esconder que seja também débil e de improviso. Se fosse a solução adoptada em caso de “bloco central” ou de qualquer coligação adulta e formal, muito bem. Sendo assim, como foi, é gesso em perna de pau!

 

Há mais factos a referir, neste ano de comemoração. A direita somada, moderada ou radical, em conjunto, atingiu uma das mais altas proporções da história: mais de 53%.... Nunca a direita radical, a direita de protesto, a direita nacionalista ou mais vulgarmente a extrema-direita, tiveram tantos votos com agora.

 

O mais antigo partido português, o PCP, com quatro deputados, quase desapareceu do Parlamento, onde já teve 44 eleitos. Após 103 anos de existência, um dos últimos partidos comunistas do mundo prepara-se para desfalecer. Curiosamente, ainda hoje é o partido mais temido por todos os outros, democráticos ou não, de esquerda ou de direita. E comporta-se como tal.

 

O partido mais antigo e mais claramente de direita democrática, o mais parecido que temos com a democracia cristã europeia, o CDS, quase desapareceu novamente e, se está no Parlamento, com dois deputados, é graças ao banco do pendura.

 

Todos os partidos ditos esquerdistas e revolucionários do 25 de Abril, criados um pouco antes ou logo a seguir, despareceram ou nunca chegaram ao Parlamento: LCI, UDP, MRPP, PCP (ml), POUS, OCMLP, PSR, além de outros. Nunca os partidos mais marcadamente marxistas, com ou sem deputados eleitos, somaram tão poucos votos como agora…

 

Este ano de comemoração vai ser de viva controvérsia. Não vão faltar os argumentos radicais. Progresso e miséria vão ser frequentemente referidos. Riqueza e pobreza não faltarão ao debate. Desordem e melhoramento serão facciosamente defendidos. Ainda bem. Pode ser que resulte, em fim de contas, mais conhecimento de nós próprios e menos idolatria.

 

Vamos ficar a saber que nunca o Serviço Nacional de Saúde esteve tão em crise como agora. Nunca os mais pobres foram tão mal servidos. Como saberemos ainda que nunca, como agora, tantos processos gigantescos de políticos e ex-políticos, de bancos, empresas financeiras e de serviços, de transportes públicos, de construção e de telecomunicações duraram tanto tempo, estiveram tantos anos em investigação e inquérito, à espera… Nunca como agora houve tanta desordem na imigração, tanta miséria na imigração ilegal e tanta desordem nas fronteiras. Ao mesmo tempo que, tal como nos anos 1960, os valores da emigração de portugueses para o estrangeiro atingem picos inimagináveis.

 

Mas também vamos ficar a saber que os últimos anos têm sido de rigor financeiro e de excedente público, de poupança e de diminuição da dívida. Que os rendimentos pessoais e familiares têm melhorado. Que a pobreza tem diminuído.  Que, apesar das escandalosas falhas, nunca houve tanta educação, tanta instrução e tanta formação como agora.

 

Abril é o melhor mês. Mistura memórias e desejos. Cravos e jacarandás.

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Público, 30.3.2024

sábado, 23 de março de 2024

Grande Angular - Vésperas

 As últimas eleições não trouxeram soluções, nem tranquilidade. Muito menos estabilidade. É quase universal a crença na agitação que se segue, os desequilíbrios parlamentares e sociais, a instabilidade necessária e provavelmente as novas eleições a curto prazo. Polarização política e fragmentação partidária estão nas cartas. A animosidade pública nunca foi tanta. A virulência do argumento político nunca ou raramente esteve tão presente como agora. E note-se que a vontade expressa de todos os partidos de distribuir dinheiros a todos os grupos sociais o mais rapidamente possível não é sinal de força nem de abundância: é sinal de fraqueza e de competição demagógica. Nenhum partido se mostra capaz, por si só, de orientar, dirigir e impulsionar um esforço nacional, assim como de congregar forças rivais. Os principais partidos esperam o desastre dos outros e nada parecem fazer para ultrapassar a instabilidade que se anuncia.

 

O Chega tem sido a surpresa da vida política nacional. E das eleições. Os seus próprios apaniguados devem estar surpreendidos. Como já tanta gente disse, se aparecem e se têm este êxito, é por motivos que devem ser investigados, sentidos e estudados. E sobretudo compreendidos.

 

Se a democracia não consegue detectar as razões pelas quais o Chega aparece e progride, é porque é cega e estúpida. Se a democracia não consegue integrar o Chega na luta política, nas eleições e nas instituições, é porque é sectária e fanática. Se a democracia não consegue eliminar as raízes do Chega, assim como as terras que lhe são férteis, é porque não tem força. Se a democracia não consegue, por actos e gestos, não por palavras, mostrar à população a carga demagógica e ridícula da política da “vassoura e da limpeza” do Chega, é porque é politicamente impotente e culturalmente medíocre.

 

Em poucas palavras: ou a democracia transforma o Chega ou o Chega transforma a democracia. Nestes cinquenta anos, a democracia portuguesa conseguiu integrar, dissolver e transformar partidos extremistas e radicais, revolucionários ou não. A democracia portuguesa, mesmo vulnerável, mesmo imatura, conseguiu integrar e transformar os seus delatores e os seus subversivos. Também poderá fazê-lo a estes. Se souber mudar, ouvir, ver, sentir e perceber.

 

Esperam-nos grandes combates. Enormes confrontos. Entre partidos. Entre instituições. Entre grupos e classes sociais. Muitos consideram que tal facto é útil e essencial para a democracia. Dizem que só assim as pessoas e as organizações se esclarecem e se definem. Que só dessa maneira toda a gente é chamada a revelar as suas posições. Para uns, trata-se sobretudo de questão moral: cada um deve dizer ao que vem e o que quer. Para outros, a separação das águas é condição de luta e de esclarecimento: só assim, com separação e afrontamento, o bem e a verdade vêm à tona.

 

O problema é que os grandes combates deveriam ser travados, não uns contra os outros, mas contra a pobreza, a corrupção, a violência e o preconceito. Ora, tanto à esquerda como à direita, há gente que perfilha estas lutas e estes objectivos. E tanto à esquerda como à direita há também preconceito, cobiça e corrupção. Separar todas as esquerdas de todas as direitas é simplesmente declarar a guerra das classes. Sem proveito aparente.

 

Não se trata, como já há quem o diga, da velha lengalenga que afirma que “já não há esquerda e direita”, o que aliás parece ser um traço específico da direita. Não, não é verdade. Sim, há esquerda e direita. Só que nem uma nem outra têm o monopólio da verdade, da honradez e da liberdade. Nem uma nem outra têm o exclusivo da maldade, da cupidez e do despotismo. Mas há certos momentos, certas fases da evolução histórica, certas situações sociais e políticas que exigem esforço comum, convergência de objectivos e de uns tantos propósitos, sem os quais a deriva política pode levar facilmente a desastres.

 

Não é verdade que a divisão entre facções, entre partidos e entre instituições seja condição essencial para poder meter ombros aos outros combates, os mais graves e mais urgentes. Na verdade, os combates entre facções já destruíram muitas democracias. Da Alemanha à Rússia, da Itália a Espanha e a Portugal, do Brasil ao Chile, não faltam exemplos de países e democracias que se perderam nas lutas entre facções e onde os resultados nunca foram favoráveis à liberdade, à paz e à honestidade.

 

Mais do que nunca, ou quase, Portugal necessita de convergência entre as principais facções. Para evitar cenas como as vistas e ouvidas estas últimas semanas, por exemplo na justiça. Aqui, a guerra entre instituições, entre profissões, entre estatutos e condições, só pode levar a histórias como estas, de verdadeira obscenidade, com acusações definidas e apagadas, com arguidos pronunciados e ilibados, com prescrições anunciadas, com decisões feitas e desfeitas várias vezes. Os protagonistas da justiça têm dificuldade em dar-se conta de si próprios. Sem intervenção política de carácter nacional, de consenso e convergência, pouco ou nada será possível. Sem revisão profunda da política de justiça, da legislação e da organização, pouco ou nada há a esperar da justiça como contributo para a liberdade e a democracia.

 

Tanto quanto a justiça, saúde e educação necessitam de esforço jamais visto. Os dois mundos entraram em colapso e, sem reforma e trabalho colossais, novos desastres estão à vista. Mais ainda, o país parece condenado a uma sucessão de poucos anos de progresso seguidos de muitos de atraso. Ou uma espiral de pequeno melhoramento seguido de longo retrocesso. Um passo em frente, diante da Europa, dois passos atrás, perante a mesma Europa. Esta espécie de triste sina, de fatalidade, não resulta da sorte, é obra dos homens e das mulheres. Das elites e do povo.

 

Polarização e bipolarização! Há muita gente que acarinha estes termos e o que eles anunciam. Esquerda contra a direita! Classe contra classe! Capital contra o trabalho! Trabalho contra o capital! Tocar a rebate pelos combates vitais! Promover a guerra entre classes, entre instituições! Nada disso trará qualquer coisa de boa ao país e à população. 

 

União nacional? Nem pensar nisso. Nunca deu bom resultado, a não ser, em certos países, em tempo de guerra. Unidade de todos os partidos? Não resulta. Coligação de todas as esquerdas contra coligação de todas as direitas? É uma solução, mas não se afigura especialmente produtiva. Coligação das forças políticas centrais e moderadas? Está nas cartas. Mas há quem não queira ver.

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Público, 23.3.2024

sábado, 16 de março de 2024

Grande Angular - A glória fátua do desastre

 As eleições realizaram-se a 10 de Março. Há uma semana. Os resultados conhecidos trouxeram grandes surpresas. Mas ainda não se sabe realmente quem ganhou. As previsões têm alta probabilidade, mas não são ainda certezas. O apuramento dos votos ainda não acabou. Não se percebe porquê, mas a contagem de votos de emigrantes fica para o fim. Poderia estar pronta desde as vésperas da eleição. Os resultados poderiam ser logo acrescentados aos primeiros dados conhecidos, evitando-se assim esta verdadeira desconsideração pelos eleitores a viver no estrangeiro. Tudo ficaria resolvido. Mas não. Ficam a faltar quatro deputados que podem mudar os resultados! E ficamos quase duas semanas à espera.  À espera... Os eleitores não percebem. Mas isso não importa.

 

Ainda não se pode dizer com segurança quem tem mais votos e mais deputados eleitos. Para efeitos de indigitação, não se sabe quem, pessoa e partido, vai ser chamado a formar governo. Assim, o governo não existe, nem se conhecem os futuros ministros. Por direito próprio, o Parlamento deveria reunir no dia seguinte à sua eleição. Apesar disso, entre nós, essa inauguração fica dependente de factores burocráticos e políticos pouco recomendáveis. Logo, o Parlamento ainda não reuniu, o que só poderá acontecer lá para 25 deste mês, pelo menos duas semanas depois das eleições. Não se conhecem ainda todos os deputados eleitos. Por isso, o Primeiro-ministro e os seus ministros ainda não tomaram posse. Pelo que não há programa de governo. Muito menos aprovação ou rejeição de uma moção de confiança ou de censura. O que quer dizer que não há sequer ideias sobre a possibilidade de se preparar orçamento novo ou rectificativo.

 

Sendo verdade tudo o que precede, não deixa de impressionar aquilo de que é capaz a imaginação dos políticos portugueses! Imaginação e espírito quezilento. Assim como egocentrismo impertinente e soberba partidocrática. Já vários partidos anunciaram que, sem conhecer governo, votariam moções de rejeição, não se sabe de quê, nem de quem. Outros garantiram que votariam contra o programa de governo e o orçamento que não conhecem pela simples razão de que não existem. Não se dão sequer ao trabalho de afirmar candidamente que “vão ler” ou “vão ouvir” … Não! Já sabem que não votam, nem querem.

 

O PCP vota contra. Ponto. O Bloco vota contra. Ponto. O PS faz oposição e vota contra. Ponto. O PSD diz que “não é não” e já anunciou há muito que não fala com o Chega, nem quer bloco central. O Chega diz que, se não for previamente consultado, vota contra. Convém repetir, pois parece inacreditável. Já há quem vote contra uma moção de censura, que não está escrita, que não se sabe se haverá, cujo autor se desconhece e cujo teor é um mistério. Não se sabe qual é o governo, nem qual é o seu programa, muito menos em que condições é formado, mas já se sabe que há quem vote contra. Parece que a força da oposição, das oposições, reside nesta maravilhosa frase digna de banda desenhada: “Não sei o que é, mas sou contra!”.

 

O PSD deixou-se enrolar naquela que foi a maior vitória dos Socialistas, que perderam a eleição, mas ganharam o combate. Com a ajuda dos mais pequenos e o contributo de umas pessoas avulso, conseguiram demover o PSD e obrigá-lo a afirmar, antes das eleições, que não fariam alianças nem governos com o Chega. Daí o famoso “não é não!”, autêntica corda para o suicídio. Pagou assim uma apólice de seguro de vida aos socialistas. E reforçou o papel do Chega na oposição, coisa que interessa de novo aos socialistas. 

 

De toda a maneira, isto tudo, que passa por ser o mais importante e é o mais falado, é próprio da coreografia do governo, da política e dos partidos, sempre mais interessados no adjectivo do que no conteúdo. Sempre mais preocupados com os processos do que com os objectivos. Sempre mais atentos às suas contas de “ganhos e perdas”, do que à realidade social e económica e à substância dos serviços públicos.

 

Estranho país este, esquisito sistema partidário este, em que os grandes partidos, de quem tudo depende, se revelam medrosos e covardes, enquanto os pequenos partidos, atrevidos como não se imagina, de quem nada depende, com menos de meia dúzia de deputados, ousam dar a entender que tudo depende deles, que “não estão dispostos para isto”, que “estão disponíveis para aquilo”, e que “não contem com eles para aqueloutro”.

 

Não conseguimos afastar esta sensação de que a classe política portuguesa não está à altura de resolver os problemas que cria. Uns, especialistas em minas e armadilhas, entregam-se à intriga com facilidade. Outros ainda, pretensos conhecedores da alma humana, dedicam-se aos adjectivos e aos processos da política, como se os meios fossem mais importantes do que os fins.

 

É lamentável ter de o dizer, mas há quem queira sempre o pior. São condenáveis as generalizações, mas somos obrigados a verificar que quase todos estão interessados no desastre, na impossibilidade de governo, na dificuldade da coligação, na impotência de qualquer solução, no adiamento de qualquer acção e na realização de novas eleições. O Chega quer subir ainda mais. O PSD julga poder assegurar uma maioria. O PS quer ter uma segunda oportunidade. Os pequenos partidos, à beira da evaporação, procuram uma saída. Todos convencidos de que, assim, liquidam o Chega e vão buscar os seus despojos. O que o país pode sofrer, durante os próximos meses, até anos, na economia, na sociedade, na política e na cultura, parece ser totalmente indiferente. O que importa é o casino da política e o puzzle das teorias.

 

Há duas hipóteses. Uma, a aliança da direita, entre PSD, CDS e Chega. Outra, dita de bloco central, entre o PSD e o PS. Quase ninguém quer uma. Quase ninguém quer outra. Acordos sólidos, mesmo se sectoriais ou parcelares, mas com palavra dada e documento escrito, conhecidos pelos eleitores e atraentes para os parceiros sociais? Também quase ninguém quer. Outras maneiras de participar, dialogar e colaborar, com ou sem participação no governo? Ninguém quer nem está para isso. O que terá dado a estes partidos, a esta classe política e a estes políticos para sacrificarem o seu país a interesses menores e a vaidades maiores? Querem a terra queimada e chamar-lhe paz e progresso…

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Público, 16.3.2024

sábado, 9 de março de 2024

Grande Angular - O que é o voto útil?

Parece que, ao contrário dos restantes, o dia de hoje é de reflexão. Serve para pensar no que foi dito e ouvido. E no que nunca foi dito. Os candidatos têm assim um dia de descanso, para fazer o que não fizeram antes: reflectir. Não servirá para grande coisa, dado que se vota no dia seguinte e já não há comícios ou acções. Os eleitores também têm o privilégio de um dia de reflexão. É inútil para o eleitorado em geral, dado que não se pode tornar público, nem partilhar com os outros os resultados dessa reflexão. Mas é um pensamento útil para nós próprios, no recato da nossa vida privada. Ajuda a esclarecer, quando é necessário. Ajuda a decidir, quando ainda há hesitação. Mesmo quando tudo leva a crer que a maior parte dos eleitores já decidiu. Ainda bem. Na verdade, o dia de reflexão parece ter sido forjado para os candidatos terem tempo de descansar, limpar espingardas, preparar as declarações de vitória ou de derrota, visitar os locais onde se vai carpir ou festejar. E preparar o que se vai dizer, à noite, na televisão, onde se joga a democracia.

 

O melhor da eleição é, evidentemente, o dia propriamente dito. Com bom ou mau tempo, cidadãos atravessam as ruas, cruzam-se nos passeios, esperam a sua vez nas filas diante das urnas e conversam. O ruído da cidade é menor do que habitualmente, os carros são mais pacíficos e as buzinas postas em descanso. Mas ouvem-se as vozes dos vizinhos, dos pais a chamar pelos filhos, dos amigos que trocam impressões sobre os resultados de “logo à noite”. Nos locais de voto, um ou outro figurão aproxima-se para votar, logo perseguido pelas televisões. Temos direito a declarações absolutamente inócuas, sempre cheias de esperança. Logo a paz se instala. Conforme os sítios, as classes e as idades, uns juntam-se para almoçar, outros para jantar. Uns reúnem-se em casa, outros em restaurantes. Logo à noite, entre o futebol, a Eurovisão, os Óscares, as telenovelas e outros desportos, as famílias dispersam-se em paz. Ficam os viciados em política que, a sós ou com amigos, passam metade da noite a ouvir comentários e ver sondagens. Alguns fazem apostas. Outros dirigem-se às televisões como se estas fossem pessoas vivas. Há uma velha crença, não destituída de razão, que diz que a verdadeira vitória eleitoral é a que se obtém na televisão durante a noite. Há evidente exagero. Mas também é verdade. São raríssimos os que já disseram: “perdemos”! São multidão os que dizem “ganhámos”! E todos dizem que fizeram o seu melhor. Já houve tempos em que a vigília durava até quase de manhã. Agora, em poucas horas sabe-se o essencial. 

 

Neste dia, com raras excepções, mesmo os adversários parecem respeitar-se. Até os rivais se saúdam. Será que se pensa que o dever foi cumprido? Ou que o direito foi exercitado? Pode imaginar-se que vingue um espírito desportivo, isto é, “vai haver quem ganhe e quem perca”? Por outras palavras, o dia de eleição, o dia de ida às urnas parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece. Parece ser também aquele em que toda a gente sente prazer em pertencer e sente orgulho em decidir. A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.

 

Estranhamente, ou talvez não, todas as atenções se dirigem para o “voto útil”. Tanto dos candidatos e partidos, como dos comentadores, dos jornalistas e dos analistas. Os partidos em primeiro lugar. Cada partido considera que o único voto útil é em si próprio. Para evitar os desmandos. Para impedir os exageros dos outros. Para liquidar as políticas dos adversários, fontes de todos os males. Uns partidos invocam o voto útil, em si próprios, para evitar a direita ou a extrema-direita. Outros, para evitar as coligações de esquerdistas e comunistas. Mas sempre voto útil. Também há os que garantem que o voto útil, em si, é o voto que obriga os outros a fazerem o que eles querem. É o argumento próprio dos pequenos partidos que afirmam que o voto útil é o que lhes permitirá obrigar os grandes a fazer as suas políticas. Já os grandes partidos consideram que votar nos pequenos partidos é inútil E que o voto útil é neles. Só eles podem garantir estabilidade. 

 

Em segundo lugar, os analistas e comentadores. Descobriram eles que, neste misterioso “voto útil”, se encontrava uma gazua teórica para explicar quase tudo o que não percebem. Verdade é que, entre jornalistas, comentadores e analistas, se inventou esta categoria: os eleitores do “voto útil”. Por outras palavras: o “voto útil” é aquele que não tem razão de ser doutrinária, nem emocional, muito menos cultural ou de classe. Haveria um grande grupo de pessoas, ninguém sabe quantas, que não vota por convicção ou sentimento de pertença. Vota num, porque quer evitar o outro. Porque quer derrotar um inimigo, não porque queira um amigo. Quer derrotar quem não gosta, ou quem tem poder a mais, não procura que ganhe aquele de quem gosta.

 

O candidato apela ao voto útil porque simplesmente não sabe que mais dizer. Tem receio de afirmar que os eleitores devem trair as suas convicções ou os seus partidos tradicionais. Não ficam à vontade se lhes disserem que o voto não corresponde a crenças, muito menos doutrina. Inventaram o voto útil. O comentador justifica tudo, analisa tudo, explica tudo. Ou quase. O que não consegue explicar, como sejam as transferências de votos estranhas, as perdas de convicção ou o desgosto nos anteriores favoritos, tudo isso passa para a grande categoria de voto útil. Os candidatos não se dão conta do atestado de imbecilidade que estão a passar aos eleitores que consideram úteis. Os comentadores não percebem que estão a esconder a sua ignorância e que isso se vê.

 

Votar tem alguma utilidade? Tem! Nem que seja em branco. Ou nulo. Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre. Qualquer destes votos é útil, porque a utilidade do voto de cada um é ser o meio de afirmar a sua liberdade, de fundar a sua dignidade, de ser cidadão e de escolher.

 

Se há uns votos que são “úteis”, o que são os outros? Inúteis?

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Público, 9.3.2024

Grande Angular - O que é o voto útil?

Por António Barreto

Parece que, ao contrário dos restantes, o dia de hoje é de reflexão. Serve para pensar no que foi dito e ouvido. E no que nunca foi dito. Os candidatos têm assim um dia de descanso, para fazer o que não fizeram antes: reflectir. Não servirá para grande coisa, dado que se vota no dia seguinte e já não há comícios ou acções. Os eleitores também têm o privilégio de um dia de reflexão. É inútil para o eleitorado em geral, dado que não se pode tornar público, nem partilhar com os outros os resultados dessa reflexão. Mas é um pensamento útil para nós próprios, no recato da nossa vida privada. Ajuda a esclarecer, quando é necessário. Ajuda a decidir, quando ainda há hesitação. Mesmo quando tudo leva a crer que a maior parte dos eleitores já decidiu. Ainda bem. Na verdade, o dia de reflexão parece ter sido forjado para os candidatos terem tempo de descansar, limpar espingardas, preparar as declarações de vitória ou de derrota, visitar os locais onde se vai carpir ou festejar. E preparar o que se vai dizer, à noite, na televisão, onde se joga a democracia.

 

O melhor da eleição é, evidentemente, o dia propriamente dito. Com bom ou mau tempo, cidadãos atravessam as ruas, cruzam-se nos passeios, esperam a sua vez nas filas diante das urnas e conversam. O ruído da cidade é menor do que habitualmente, os carros são mais pacíficos e as buzinas postas em descanso. Mas ouvem-se as vozes dos vizinhos, dos pais a chamar pelos filhos, dos amigos que trocam impressões sobre os resultados de “logo à noite”. Nos locais de voto, um ou outro figurão aproxima-se para votar, logo perseguido pelas televisões. Temos direito a declarações absolutamente inócuas, sempre cheias de esperança. Logo a paz se instala. Conforme os sítios, as classes e as idades, uns juntam-se para almoçar, outros para jantar. Uns reúnem-se em casa, outros em restaurantes. Logo à noite, entre o futebol, a Eurovisão, os Óscares, as telenovelas e outros desportos, as famílias dispersam-se em paz. Ficam os viciados em política que, a sós ou com amigos, passam metade da noite a ouvir comentários e ver sondagens. Alguns fazem apostas. Outros dirigem-se às televisões como se estas fossem pessoas vivas. Há uma velha crença, não destituída de razão, que diz que a verdadeira vitória eleitoral é a que se obtém na televisão durante a noite. Há evidente exagero. Mas também é verdade. São raríssimos os que já disseram: “perdemos”! São multidão os que dizem “ganhámos”! E todos dizem que fizeram o seu melhor. Já houve tempos em que a vigília durava até quase de manhã. Agora, em poucas horas sabe-se o essencial. 

 

Neste dia, com raras excepções, mesmo os adversários parecem respeitar-se. Até os rivais se saúdam. Será que se pensa que o dever foi cumprido? Ou que o direito foi exercitado? Pode imaginar-se que vingue um espírito desportivo, isto é, “vai haver quem ganhe e quem perca”? Por outras palavras, o dia de eleição, o dia de ida às urnas parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece. Parece ser também aquele em que toda a gente sente prazer em pertencer e sente orgulho em decidir. A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.

 

Estranhamente, ou talvez não, todas as atenções se dirigem para o “voto útil”. Tanto dos candidatos e partidos, como dos comentadores, dos jornalistas e dos analistas. Os partidos em primeiro lugar. Cada partido considera que o único voto útil é em si próprio. Para evitar os desmandos. Para impedir os exageros dos outros. Para liquidar as políticas dos adversários, fontes de todos os males. Uns partidos invocam o voto útil, em si próprios, para evitar a direita ou a extrema-direita. Outros, para evitar as coligações de esquerdistas e comunistas. Mas sempre voto útil. Também há os que garantem que o voto útil, em si, é o voto que obriga os outros a fazerem o que eles querem. É o argumento próprio dos pequenos partidos que afirmam que o voto útil é o que lhes permitirá obrigar os grandes a fazer as suas políticas. Já os grandes partidos consideram que votar nos pequenos partidos é inútil E que o voto útil é neles. Só eles podem garantir estabilidade. 

 

Em segundo lugar, os analistas e comentadores. Descobriram eles que, neste misterioso “voto útil”, se encontrava uma gazua teórica para explicar quase tudo o que não percebem. Verdade é que, entre jornalistas, comentadores e analistas, se inventou esta categoria: os eleitores do “voto útil”. Por outras palavras: o “voto útil” é aquele que não tem razão de ser doutrinária, nem emocional, muito menos cultural ou de classe. Haveria um grande grupo de pessoas, ninguém sabe quantas, que não vota por convicção ou sentimento de pertença. Vota num, porque quer evitar o outro. Porque quer derrotar um inimigo, não porque queira um amigo. Quer derrotar quem não gosta, ou quem tem poder a mais, não procura que ganhe aquele de quem gosta.

 

O candidato apela ao voto útil porque simplesmente não sabe que mais dizer. Tem receio de afirmar que os eleitores devem trair as suas convicções ou os seus partidos tradicionais. Não ficam à vontade se lhes disserem que o voto não corresponde a crenças, muito menos doutrina. Inventaram o voto útil. O comentador justifica tudo, analisa tudo, explica tudo. Ou quase. O que não consegue explicar, como sejam as transferências de votos estranhas, as perdas de convicção ou o desgosto nos anteriores favoritos, tudo isso passa para a grande categoria de voto útil. Os candidatos não se dão conta do atestado de imbecilidade que estão a passar aos eleitores que consideram úteis. Os comentadores não percebem que estão a esconder a sua ignorância e que isso se vê.

 

Votar tem alguma utilidade? Tem! Nem que seja em branco. Ou nulo. Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre. Qualquer destes votos é útil, porque a utilidade do voto de cada um é ser o meio de afirmar a sua liberdade, de fundar a sua dignidade, de ser cidadão e de escolher.

 

Se há uns votos que são “úteis”, o que são os outros? Inúteis?

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Público, 9.3.2024